Blog do Paulo Ruch

Cinema, Moda, Teatro, TV e… algo mais.

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Foto: Fernanda Sabença

Conhecemos a favela pelas páginas dos jornais, pelos noticiários e reportagens de televisão, porém nada é comparável a se entender melhor o mundo das comunidades ao vê-lo retratado nos palcos de um teatro. O espetáculo “Favela”, cujo texto é de Rômulo Rodrigues, e direção e idealização de Márcio Vieira traça um amplo e genérico painel do cotidiano, dos comportamentos, conceitos e preconceitos daqueles que constroem suas vidas nos locais fundados nos morros cariocas pelos soldados que lutaram na Guerra de Canudos (ao término do embate no arraial de Canudos, Bahia, rumaram para o Rio de Janeiro, e por não receberem mais o soldo que lhes garantia a sobrevivência, alojaram-se no atual Morro da Providência, que antes era chamado de Morro da Favela, existente na citada Canudos; o termo “favela” refere-se à planta típica daquela região, e consolidou-se como indicativo dos novos padrões habitacionais a partir da década de 20). O celebrado livro de Zuenir Ventura, “Cidade Partida”, teceu em páginas de que a “Cidade Maravilhosa” era “dividida”, sendo como precípua motivação a desigualdade socioeconomica. Entretanto se formos além dos arquétipos e estigmas infiltrados por pensamentos dominantes, chegamos à razoável conclusão de que as duas “partes” da cidade não são tão diferentes assim em demais prismas. Se no alto dos mencionados morros ouvem-se tiros que espoucam aleatoriamente, nas nossas casas salvaguardadas ouvimos também tiros disparados por alguém acima de qualquer suspeita. Se na elevada esfera política, debateu-se de modo inacreditável a “cura gay”, contrariando postulados científicos, e nos levando a “viagens” por séculos passados, no altiplano de casas apertadas com lâmpadas dependuradas por fio solitário somos “alvejados” na sensibilidade por jovem homossexual e viciado (Felipe Frazão) que “acredita” que fora “curado” de seus “pecados” graças à aceitação de sermões “religiosos”. Se no asfalto batem com força e impiedade as portas nos nossos rostos quando suplicamos emprego para colocarmos comida no prato, ainda que com canudo limpo debaixo do braço, o que diremos dos que, com ou sem canudo, marcados de maneira inglória por dormirem e acordarem entre vielas escuras ou pouco iluminadas, subidas e descidas acesas ou apagadas suplicam o mesmo? O fato de morarmos ao lado de calçadas bem asfaltadas, ou com pedras portuguesas soltas que provocam tombo feio em atriz famosa nos dá o direito de julgamento sobre jovem perdido no próprio rumo, a quem se apresentam apenas dois míseros caminhos: um com a tocha branda, mas segura, e a outra flamejante, todavia perigosíssima? O jovem perdido é interpretado com intensidade, credibilidade e brilho por Gabriel Chadan (Murilo). Gabriel na ribalta é moço branco de olhos verdes símbolo de “força da natureza” interpretativa. Seu primo Jeomar é defendido por Michel Gomes, um ator convicto de suas pujantes potencialidades dramáticas, representando o que “a priori” lhes falei, ou seja, um “filho da Engenharia” sonhador que a “engenharia da existência” lhe exclama: “NÂO!”. Há uma espectadora além de nós, Dona Jurema (Dja Marthins). Jurema, com seus braços e cotovelos apoiados em parapeito de janela pequena, serve como interferência adequada nos acontecimentos costumeiros dos moradores da favela, sendo bastante vezes mal compreendida, embora haja sabedoria na sua voz. Dja Marthins compõe a “vizinha faladeira” (no melhor sentido) com carisma, candura, humor, dando lufadas de leveza a instantes por vezes temerários. A bem-vinda presença do intérprete Lincoln Tornado (Juvenal), no papel de um talentoso compositor que representa a condição do “homem bom”, galanteador, que estremece o coração das meninas desavisadas. Lincoln canta e atua bem. Configura Juvenal com ilimitadas emoção, qualidade de ser sensível, graça e sedução. O MC Jota João Augusto é o rapper, exímio e adorável dançarino das ruas, honroso capoeirista com seus fascinantes “dreads”. A conectividade globalizada nas redes sociais “subiu a ladeira”, e um moço brigado com as leis, personificado por Walace Fortunato com naturalidade, verdade cênica e fortaleza pessoal, assim como o faz com similar talento seu colega de transgressão (Rafael Zolly). Se há espaço para a umbanda, há espaço para a igreja evangélica. Portanto, há espaço para a intolerância religiosa. Na birosca de Seu Eusébio (uma personificação delineada com altivez, refinamento e garbo por Cridemar Aquino), há moças desinibidas, nada desenxabidas, atrevidas, dentre elas a Jane de Gisele Castro (em atuação firme, segura e que nos mostra o seu total domínio de conhecimento da personagem). Se minoria que reside na “planície” fica estupefata no dobrar de alguma esquina com atitudes de discriminação racial, nas esquinas da favela esta “sombra” existe também. A hierarquização da sociedade e o “status” não são flagelos monopolizados pelas classes A e B, e sim por todo o “alfabeto”. O “sonho americano” deixou de ser sonho até para os americanos. Não existe mais “american way of life”. Nem Hollywood escapou. Ana Bertinnes em louvável constituição da mãe esperançosa do sucesso do filho no “estrangeiro” que o diga. O morro é democrático na música (tem samba, pagode, rap, funk, funk melody – direção musical de Marcio Eduardo). O elenco se esbalda com primor no canto (preparação vocal de Pedro Lima) e na dança (supervisão coreográfica de Sueli Guerra). A esposa Meire (Carla Cristina, ótima, divertida) apanha, perdoou o agressor Osmar (Leandro Santanna esbanjando criatividade, fulgor e composição detalhista na expressão corporal), entrementes a sentença da “cidade dos homens” não perdoa. Há amor de Romeu e Julieta. Shakespeare na favela. O elenco formado por Kawane Weza, Dilene Prado, Nilson Mello, Helena Siffoni, Renata Tavares, Cláudia Leopoldo, enfim, todos (21 atores), sem exceção, cada um ao seu modo, contribui com excelência para que a história ganhe a sua justa importância. O diretor Márcio Vieira explora com competência ímpar a plenitude do conjunto dramatúrgico alinhavado com inteligência por Rômulo Rodrigues, e desenvolve com brio cênico os elementos que formatam a envolvente trama. A iluminação de Djalma Amaral baseia-se com acerto e bom gosto no naturalismo dos planos abertos, e no lirismo e poesia dos sombreados, meias-luzes, e outras ora fortes ora suaves na birosca supracitada, não deixando de citar os sempre bonitos focos que valorizam cenas significativas, sejam elas no proscênio, sejam elas na miríade de janelas soltas no espaço de pedras. O cenário de Derô Martin exerce deslumbre por seu cortante viés real onde é possível encontrar beleza onde muitos creem não haver. Simulações de casebres assimétricos com tijolos e cimento expostos, paredes pichadas, o boteco e seus indispensáveis componentes, os tubos de PVC à mostra, as antenas caladas, as fiações que “roubaram” tênis e supostos restos de pipas, uma faixa com anúncio de baile funk, um cortinado branco que remete aos cultos evangélicos, um nicho com linda luz vermelha a enaltecer São Jorge/Ogum, e um banco de madeira frágil. Os artistas movimentam-se amiúde, utilizando inclusive a plateia, contudo há momentos pausados, “tête-à-tête”. Os figurinos de Caio Braga açambarcam um globo multicolorido de tons, tecidos e estilos. O discreto, o sensual, o engraçado, o provocativo, o sisudo e o recatado. A peça recebe de braços abertos variada gama de vestuário condizente com a ambiência destrinchada. A trilha sonora (Marcio Eduardo) com direito a músicas da banda de Gabriel Chadan “Fulanos e Ciclanos”, MC Jota João Augusto (diz a letra do rap com proficiência) e Arlindo Cruz (“Meu Nome é Favela”) imprime colaboração lógica usando temas incidentais que servem tanto para situações tensas quando rotineiras. Destacam-se sobretudo as canções lindamente entoadas pela coletividade ou por único ator ou em duo. “Favela” cumpre relevante papel social ao esmiuçar e elaborar maior entendimento sobre visão distorcida de que se tem sobre a realidade dos morros. Sem preterir o cômico, exibe com profundeza retrato fiel pungente e dilacerante de um mundo não longínquo ao nosso. Muito pelo contrário. E se estamos próximos, podemos ser iguais. E já que a vida é feita de escolhas, escolhamos a igualdade. Com as bênçãos de São Jorge.

16 comentários sobre “” A vida é feita de escolhas, e com as bênçãos de São Jorge, a minha foi ver ‘Favela’.”

  1. Alcidéa de Oliveira disse:

    Bela crítica, linda, sensível e verdadeira!!!! Este espetáculo é simplesmente maravilhoso por tudo que representa e como representa!!! Assisti duas vezes e, se tiver oportunidade, assistirei novamente!!!! Com as bençãos de São Jorge eu também escolho e indico Favela!!!!

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    1. pauloruch disse:

      Olá, Alcidéa. Muito obrigado pelas tão generosas palavras. Fico feliz ao saber que o meu texto lhe agradou, e que compartilha das mesmas ideias e pensamentos que cultivo. Sim, “Favela” é espetáculo para ser visto e revisto. Abraços!

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  2. Kawane Weza disse:

    Que bela visão!

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    1. pauloruch disse:

      Olá, querida Kawane. Você é uma ótima atriz. Tão doce, meiga e verdadeira naquilo que faz. Acreditamos piamente na sua personagem. Parabéns. É uma preciosa pérola na peça. Um beijo!

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  3. dja marthins disse:

    olha que eu me apaixono” facinho, facinho”… cuidado. bj
    falando sério agora, fico muito feliz com o reconhecimento de um trabalho q nos é tão caro e gostoso de fazer. é uma denuncia sim porem com seriedade, verdade, sutileza, humor e
    amor, alias como a vida deve ser vivida.

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    1. pauloruch disse:

      Dja, querida. É muito honroso para mim ler um comentário tão imerso em generosidade e delicadeza. E usara as palavras corretas para definir “Favela”. Um beijo, e obrigado!

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  4. Norma Sueli da Silva disse:

    É fascinante, como é o crescimento da vida das jovens na comunidade.Parece que é um exemplo a seguir, a mãe tem filho aos 12 anos e seguidas pelas filhas, que triste. Tem que haver mais cursos, para que essas jovens tenham escolhas de melhorar, e não achar que é normal engravidar cedo, assim como sua mãe. A Dilene Prado com sua personagem, retrata bem isso.

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    1. pauloruch disse:

      Olá, Norma. É verdade. Bastante apropriado o seu comentário. As jovens mulheres das comunidades necessitam de forma urgente de uma ampla orientação quanto à gravidez indiscriminada. Um planejamento familiar coerente, lógico, não intrusivo. A Dilene Prado, em ótima atuação, representa com credibilidade esta problemática social. Muito obrigado pelo comentário. Abraços!

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    1. pauloruch disse:

      Muito obrigado, G.L. U23. O “isso!” demonstrou sua total aprovação. Abraços!

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  5. Dilene Prado disse:

    Muito linda cada palavra você resume não só o que somos no Favela o quanto é visto nas favelas e no asfalto sendo que alguns preferem não ver essa realidade não conhecer e não se igualar. Fico feliz em saber que gostou do Favela e parabéns Pulo pela sensibilidade ao escrever cada detalhe sobre Favela, sutil, emocionante, primoroso. Um forte abraço!

    Obrigada pelo carinho Norma eu sou total de acordo quanto a opção de ter mais cursos o problema e ter um curso que atraia realmente a garotada de hoje em dia que estão pulando a etapa da adolescência para a fase adulta. Conheço algumas meninas de 12 anos que querem mas a mãe não tem condições de levar até o curso mesmo sendo gratuito é um assunto delicado e complicado. Mas eu peço a Deus para que oriente essas “crianças”. Bjs

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    1. pauloruch disse:

      Olá, minha querida Dilene. Que bom ler tão carinhosas e gentis palavras. Sinto-me gratificado, recompensado e feliz ao saber que gostara do que escrevi com tanto respeito e admiração pelo lindo trabalho que realizaram. Parabéns, Dilene. Parabéns a todos da equipe de “Favela”. Abraços, e muito obrigado!

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  6. Maria Helena Giffoni de Abreu disse:

    Paulo obrigada, achei otimo o seu texto, total entendimento do que esta sendo contado, fazemos com amor e acreditamos nas estórias vividas pelos personagens.Bjs.

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    1. pauloruch disse:

      Olá, querida Maria Helena. Que enorme prazer e honra, assim como com relação aos demais atores de “Favela”, receber um tão generoso comentário seu. Fico feliz ao saber que gostara do texto que fiz com bastante carinho e respeito sobre o trabalho que realizaram com esmero, dedicação e amor, e que dissera que entendi o espetáculo. Muito obrigado. E mais uma vez, parabéns Maria Helena! Beijos!

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  7. Gisele Castro disse:

    Parabéns pela análise, Paulo! Bastante profunda e sensível. Os personagens do espetáculo representam as vozes das comunidades: seus sonhos, o dia a dia, suas escolhas, enfim, o universo de uma favela, com muito bom humor. E seu olhar captou bem essa realidade. Obrigada pelo reconhecimento do nosso trabalho. Fico muito feliz e lisonjeada.

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    1. pauloruch disse:

      Olá, Gisele. Acabo de ler um resumo real do que o espetáculo “Favela” nos quis dizer. Soube com maestria defini-lo em poucas palavras. Lisonjeado também estou ao ter o seu reconhecimento, e de todos aqueles, atores, autor e diretor que se mostraram contentes com o meu texto. Alegro-me por ter lhe feito de alguma forma feliz. Muito obrigado, Gisele!

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