Blog do Paulo Ruch

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Foto: Ramón Vasconcelos/TV Globo

O caso que aterrou o país, sua adaptação literária, e o retorno de Maria Camargo à dramaturgia da Rede Globo

A nova série da Rede Globo, disponível na plataforma de streaming Globoplay, estreou na última sexta-feira, marcando a volta da autora Maria Camargo, após “Dois Irmãos”, em 2017, à dramaturgia da emissora. Com “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, ficou-nos bastante evidente a destreza com que Maria logra adaptar obras literárias para o segmento audiovisual. Desta vez, a escritora, ao lado de Bianca Ramoneda, Fernando Rebello e Pedro de Barros, valeu-se de um dos casos mais assombrosos da história da medicina brasileira, narrado no livro “A Clínica: A Farsa e os Crimes de Roger Abdelmassih”, de Vicente Vilardaga, para contar aos espectadores, com os ingredientes de livre inspiração cabíveis, os fatos que culminaram na execração pública e condenação criminal de um dos profissionais da área de reprodução assistida mais respeitados no país. A partir de 2009, a imprensa iniciou um processo de revelação dos crimes seriados cometidos pelo médico paulista por meio da denúncia de dezenas de pacientes que deixaram para trás o medo e a vergonha, e resolveram trazer à baila as violências que sofreram. Roger Abdelmassih foi condenado a 278 anos de prisão por 52 estupros e 4 tentativas de estupro contra 52 mulheres.

A história de um casal que quer apenas ter um filho, cuja mulher vê o seu mundo desmoronar de uma hora para a outra 

No primeiro episódio “Stela”, protagonizado por Adriana Esteves, testemunhamos o angustiante périplo da professora e de seu marido, o piloto Homero (Leonardo Netto), no ano de 1994, ao consultório do simpático, educado e sedutor Dr. Roger Sadala (Antonio Calloni) que, muito habilmente, e se utilizando de frases de cunho religioso, como “Eu só sou um instrumento Dele (Deus)”, convence-os e lhes dá a esperança de ter um filho ou mais, depois de tantas tentativas frustradas, ou seja, promete-lhes o que realmente querem ouvir. Como recurso dramatúrgico, Maria dividiu a narrativa em dois tempos, o antes e o depois de o médico ser denunciado por suas práticas delituosas. Em 2007, vimos Dr. Sadala, ou Dr. Vida (como ficara conhecido por suas proezas médicas), discursando em uma festa comemorativa, a “Festa da Fertilidade”, pelos 30 anos de sucesso da reprodução assistida no mundo. Lá estava a sua família, como a esposa adoentada e melancólica Glória (Mariana Lima), sua mãe que o bajula sempre que possível Olímpia (Juliana Carneiro da Cunha, como atriz convidada), e seus filhos Clarice (Silvia Lourenço), Henrique (Gabriel Muglia), também médico, Tamires (Bianca Müller) e Leila (Sabrina Greve). Assim como conhecemos a jornalista Mira, Elisa Volpatto, dedicada ao desmascaramento do médico já alvo de denúncias, e Pedro Henrique (Pedro Nercessian), responsável ferrenho pela manutenção da boa imagem de Roger. Somos informados sobre as desconfianças de Glória quanto à fidelidade de seu marido (nada que um bonito anel de presente não resolva), enquanto Stela sonha com a sua tão aguardada gravidez. Nos exames em sua paciente, percebemos o quanto o médico é carinhoso e solícito. Um médico que ao se despedir não dispensa um beijo no rosto. As cenas em torno da reprodução dos óvulos de Stela são cercadas de imensa expectativa. Na confortável casa de Roger Sadala são vistos muitos objetos religiosos. A religiosidade exacerbada está clara na personalidade do médico, que não economiza a quantidade de vezes em que emite a palavra “fé”. Num jantar em família dos Sadala, a autoridade do patriarca é nítida, e sua agressividade ao ser contestado, mesmo que seja com um gracejo, também. Retornando à festa comemorativa, notamos as trocas de olhares insinuantes entre Roger e uma de suas pacientes, a linda advogada Carolina (Paolla Oliveira). Mira fica atenta a todos os passos do médico, da mesma forma observado pela secretária Daiane (Jéssica Ellen), a mando de Glória. Uma pessoa não esperada se aproxima da festa. Esta pessoa é Stela, uma mulher desnorteada, que ao se ver diante de seu algoz desfalece. De volta ao ano de 1994, Stela, já no hospital, é sedada para que sejam realizados os procedimentos clínicos da fertilização. No quarto vazio e desolador, completamente inerte, a professora que apenas queria realizar o sonho de ser mãe é vilipendiada pelas mãos grossas do médico a quem entregara a sua confiança. Numa cena dirigida com extremo cuidado e prudência, mas nem por isso menos impactante, Stela é estuprada pelo Dr. Roger Sadala. Não só o seu sonho de ser mãe acabou. Tudo acabou. Segundo ela mesma diz em depoimento gravado, estratégia adotada pela direção logo nos primeiros e últimos minutos do episódio: “Perdi tudo”.

Amora Mautner lidera a direção sofisticada e elegante, apesar da aridez e peso dramático do texto 

A direção artística de Amora Mautner (com direção da própria com Joana Jabace e Guto Botelho, e geral de Joana) se coloca em um patamar de excelência, primor e bom acabamento indiscutível. A câmera explora takes que possam sair do lugar comum, com tomadas vistas de cima e de baixo, focos em objetos, e registros espertos de movimentações de personagens. Houve grande domínio no que se refere às passagens alternadas de tempo, obedecendo a não linearidade imposta pelo texto. A direção, a despeito de um assunto tão espinhoso, conseguiu imprimir elegância e sofisticação às cenas. Uma das sacadas da série que merece a nossa observação acurada são os depoimentos gravados em vídeo das vítimas, que ofertam à produção ares de documentário (Roger Sadala também fala para a câmera, mas em outro contexto).

Num elenco com Antonio Calloni, Adriana Esteves e Mariana Lima, todos se destacam 

O elenco está afiadíssimo, plenamente investido na atmosfera sufocante e tensa desta trama que carrega em si mesma um apelo dramático nato. Antonio Calloni, um ator com reconhecidas qualidades, desponta mais uma vez com este papel difícil para qualquer intérprete. Antonio compõe Roger com fineza, carisma e força, não deixando de lado uma faceta ameaçadora intrínseca ao seu caráter criminoso. Com toda a certeza, este deverá ser um dos melhores trabalhos deste artista tão admirado pelo seu talento e versatilidade. Adriana Esteves, uma atriz lembrada por suas notórias vilãs, sendo também ótima em comédias, mostra-nos com imensurável verdade a fragilidade e a insegurança de uma mulher que não pode ter filhos, a sua incontida vontade de realizar o seu sonho, e depois nos comove com a sua dor irreparável após tanta violência contra a sua dignidade. Mariana Lima, que vem de uma excelente performance na supersérie “Os Dias Eram Assim”, revela-nos um certo estoicismo, uma acomodação diante dos reveses sofridos, como a doença que a abate e o casamento infeliz com o seu adúltero e tirano marido. A Glória de Mariana se mantém empertigada, mesmo que o seu rosto nos transmita profunda tristeza. Leonardo Netto cumpre com louvor o papel do marido resignado, mas disposto a oferecer à sua esposa o desejo que ela mais cultiva. A sua desesperança depois de tantos infortúnios, como dívidas e interrupções de gravidez de Stela, é sugerida pelo seu olhar perdido e incrédulo. O capítulo, contou, enfim, com estrelas como Vera Fischer, Juliana Carneiro da Cunha e Paolla Oliveira, atrizes conceituadas do cinema, como Denise Weinberg e Sabrina Greve, e outros talentos de gerações diferentes, como Noemi Marinho, Elisa Volpatto, Pedro Nercessian, Jéssica Ellen, Silvia Lourenço, Bianca Müller e Gabriel Muglia.

Direção de fotografia com texturas cinematográficas, direção e produção de arte, além dos cenários, reconhecidamente competentes, figurinos em consonância com os personagens, edição eficiente e abertura que valoriza a forma feminina como vítima 

A direção de fotografia de Marcello Trotta nos remete a uma textura cinematográfica com tons levemente esverdeados que se aproximam de um cenário hospitalar. Mesmo fora deste universo, Marcello procurou filtros mais sóbrios, sem exageros, o que, certamente, conferiu uma crueza necessária à obra, além de sombras e luzes artificiais da cena. O resultado é coerente, realista e fiel à abordagem da produção. Os competentes trabalhos de direção de arte, cenografia e produção de arte couberam, respectivamente, a Valdy Lopes, Renata Rugai e Avelino Los Reis, e Camila Galhardo. Do mesmo modo que o figurinista Cassio Brasil vestiu com absoluta propriedade os personagens, independente de suas condições sociais. A edição de Vicente Kubrusly, Leo Domingues e Pablo Ribeiro é a consequência de uma parceria eficiente que soube lidar, usando-se uma dinâmica exigível, com uma narrativa segmentada em dois períodos, de maneira que o público não se confundisse com o desenrolar do entrecho. Marcel Klemm (gerência musical) e Eduardo Queiroz (música original) pontuaram com vultoso acerto os desenhos melódicos das cenas, acatando os climas das situações dramáticas. A abertura de Alexandre Romano e Valericka Rizzo nos introduz, com o requinte e a plasticidade de suas imagens em velocidade lenta, a um mundo feminino, através das formas, posições e situações angustiantes e solitárias materializadas em seus corpos, desrespeitados e usurpados pela violência física e moral irreparáveis perpetradas por um homem insuspeito, ao som da triste e bonita canção natalina “Silent Night”, na voz inacreditável de Loro Bardot (a música, traduzida para o português como “Noite Feliz”, foi composta por Franz Gruber e Joseph Mohr; provavelmente esta canção foi escolhida pelo contraponto pureza X violência).

A relevância de “Assédio” ser exibida nos momentos sombrios em que vivemos 

“Assédio”, em seu primeiro episódio, provou-nos e nos promete ser mais um produto dramatúrgico de irrestrita qualidade e apuro, seja em termos narrativos, seja na perspicaz direção, ou na escalação perfeita de seu elenco, que ainda trará nomes como Felipe Camargo, João Miguel, Hermila Guedes, Susana Ribeiro e Monica Iozzi. “Assédio” é uma história que tem a obrigação de ser contada e esmiuçada, para os que já a conhecem e os que não. A sua coincidente apresentação em uma época delicada e assustadora em que se incita o ódio contra as minorias, inclusive as mulheres, que mais uma vez se uniram nas redes sociais como sinal vital de defesa, é mais do que apropriada e urgente. Esta série não deveria se restringir tão somente a um canal de streaming, e sim veiculada abertamente para toda uma nação, a fim de que possamos esclarecer pelo menos algumas mentes obscurecidas por supostas verdades morais. Basta de assédio. Basta de assédio de todos os tipos. Que o único assédio que sobreviva seja aquele baseado única e exclusivamente no amor. Mas no mundo distópico em que vivemos isso não passa de uma quimera.

 

Categorias: TV

2 comentários sobre ““Com direção sofisticada de Amora Mautner, um dos episódios mais aterradores da história da medicina brasileira é contado em ‘Assédio’, de Maria Camargo, a nova série da Rede Globo exibida pela plataforma de streaming Globoplay, tendo em seu elenco Antonio Calloni como o famoso e até então respeitado médico que destruiu a vida de dezenas de mulheres. “

  1. Mari Mazzio disse:

    Oi Paulo, Amei o seu texto sobre o Assedio.
    Sou a mae da Loro Bardot, obrigada pelo lindo elogio. Escrevi no meu face uma historinha que ela me contou sobre quando ela foi convidada pra cantar esta musica no estudio, como ela chegou nesta interpretacao, marquei seu face, caso queira ler e obvio compartilhei o seu blog que e muito muito legal. Parabens!

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    1. pauloruch disse:

      Olá, Mari. Antes de entrar no blog havia acabado de ler o seu post no Facebook. Fiquei muito feliz com o que disse. Muito obrigado. Quanta generosidade. E que bacana a história que nos contou sobre como a sua filha, a ótima cantora Loro Bardot, chegou à interpretação maravilhosa de “Silent Night”. Mari, sinta-se bastante orgulhosa da Loro. Ela é um grande talento. Parabéns a ela e a você pela filha artista que tem. Abraços!

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