“Os sublimes pormenores da atuação de Giuseppe Oristanio que humanizaram e aproximaram lindamente Guimarães Rosa de nós.”

Giuseppe Oristanio como o escritor e diplomata João Guimarães Rosa ao lado do fardão da Academia Brasileira de Letras
/Foto: Alberto Maurício

A dramaturga Lívia Baião debruçou-se de forma profunda em uma longa pesquisa acadêmica para mostrar ao público um texto cênico de vultosa importância sobre o escritor e diplomata mineiro João Guimarães Rosa

Os escritores, seus métodos de criação, suas personalidades e idiossincrasias não raro atiçaram a curiosidade alheia, pois afinal é através de suas obras que somos levados para além de nossa realidade cotidiana. O mineiro de Cordisburgo João Guimarães Rosa, também diplomata, proeminente escritor em seus romances, novelas, poemas e contos, sempre foi objeto de perscrutações devido não somente à sua literatura revolucionária e por isso mesmo bastante criticada mas pelo homem por detrás desta ruptura linguística que ultrapassou as fronteiras do Brasil. Esta premissa serviu para que a dramaturga Lívia Baião se debruçasse de forma profunda em uma longa pesquisa acadêmica sobre a vida do autor de clássicos como “Sagarana” (1946) e “Grande Sertão: Veredas” (1956) e os bastidores que envolveram a produção de seu rico legado. Todo o seu trabalho hercúleo, riquíssimo em detalhes, resultou em um texto cênico de vultosa importância para os palcos teatrais, visto que se fez com clareza, fina ironia e responsabilidade factual um retrato fidelíssimo e sensível de um dos maiores literatos de que já se teve notícia no país, comparável aos grandes ao redor do mundo. A fluida estrutura dramatúrgica de Lívia se concentra nos derradeiros anos de vida de João, necessários para nos revelar uma diversa gama de sentimentos que o rondavam neste momento divisor, como as angústias nascidas da percepção de sua finitude, a vaidade imiscuída com suas inseguranças pessoais e profissionais, suas reações face aos comentários negativos quanto à sua produção literária e a obsessão que o assombrou por anos em ocupar uma das disputadas cadeiras da Academia Brasileira de Letras. A autora brilhantemente atinge o meritório feito de humanizar o escritor, sendo esta uma das características que conferem qualidade à montagem.

Giuseppe Oristanio se estabelece em uma fase especial de sua admirável carreira com o perfeito trabalho de composição que faz de um personagem real e complexo

O diretor Ernesto Piccolo conduz com acerto o espetáculo para um caminho em que seja realçada às vistas do público, com a adoção de marcações eminentemente precisas, o pleno desenho comportamental e ideológico de Guimarães Rosa, cuja comunicação com àquele, ao narrar as suas histórias, perfaz-se de modo natural e produtivo. Giuseppe Oristanio se estabelece em uma fase especial de sua admirável carreira com o perfeito trabalho de composição deste personagem real que se destaca pela sua complexidade. Giuseppe se mostra um intérprete altamente estudioso ao se fiar nos quase imperceptíveis detalhes que compõem o espectro deste homem tão relevante para as nossas Letras. As oscilações da voz, com temperaturas diferenciadas, os movimentos corporais e seus mais singelos gestos, a postura definidora de sua personalidade, nada disso ficou de fora dos olhos atentos deste intérprete que esbanjou talento e domínio absoluto em cena. A trilha sonora, a cargo de Rodrigo Penna, valoriza a encenação com inserções estratégicas de melodias instrumentais ao piano que primam pela delicadeza. A ambientação cênica do experiente e respeitado José Dias se mostra assaz apropriada com a economicidade sisuda dos móveis de madeira, sua mesa de trabalho e cadeiras, além de objetos caros ao romancista, como a sua máquina de datilografar e seus livros publicados. Suely Gerhardt, figurinista, foi bastante feliz ao trajar com elegância e particularidade Giuseppe Oristanio se utilizando de um conjunto de terno e gravata borboleta, aproximando-nos ainda mais de sua imagem como a conhecemos. Atente-se para a primorosa reconstituição do fardão da Academia posto à direita da ribalta. A iluminação de Vilmar Olos e Celma Úngaro produz bonitos efeitos no panorama cênico ao apostar em spots com gradações distintas de um amarelo suave que se alterna com o branco e com o foco exclusivo no ator. “Pormenor de Ausência” é um espetáculo que assume posição de destaque na atual cena teatral por trazer à baila o conhecimento humanizado e indispensável para as grandes plateias de um de nossos mais ilustres escritores, João Guimarães Rosa. Em seus pormenores, belamente presentes, é que se descortina a excelência de sua realização.


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