Torna-se impossível não se impressionar com o texto da dramaturga inglesa Lucy Kirkwood
A peça “As Crianças” (“The Children”) estreou em 2019, ano em que ocorreu a tragédia de Brumadinho, em Minas Gerais. A peça hoje, em 2024, ano em que ocorrem as devastadoras enchentes no Rio Grande do Sul, continua em cartaz. Ou seja, o espetáculo escrito pela dramaturga inglesa Lucy Kirkwood em 2016, traduzido magistralmente por Diego Teza, indicado a 25 prêmios, sendo vencedor em 9 deles, continua, infelizmente, atual, já que um de seus temas são as consequências ambientais e sociais causadas por um acidente nuclear. A jovem autora Lucy, com notável conhecimento da alma humana e do quanto ela pode ser transformada ao longo da sua existência seja por meio das relações interpessoais ou devido a um trauma de grandes proporções não só para a natureza mas para os indivíduos, possui pleno domínio das palavras e de como construir de modo elaborado um jogo cênico/dramatúrgico de tal forma envolvente que se torna impossível não se impressionar com o seu texto.
Um casal de físicos nucleares e uma velha amiga de profissão se reencontram quase 40 anos depois e iniciam entre si uma série de diálogos e enfrentamentos nos quais são levantados os mais diversos assuntos, como envelhecimento, traição e ética
Sua história retrata um casal de físicos nucleares, Dayse e Robin, interpretados respectivamente por Analu Prestes e Mario Borges, habitantes de um lugar afastado e bucólico, vítimas de uma rotina acachapante e de perturbadores fantasmas da usina nuclear objeto de um vazamento assolador localizada não muito distante da região onde vivem, ao ponto de verem o pôr do sol sobre a própria. Esta convivência modorrenta do casal é inesperadamente interrompida com a chegada quase 40 anos depois de uma velha amiga de profissão, Rose, Stela Freitas. Com a formação deste triunvirato, deparamo-nos com um ambiente em que se percebem acidez e ironia nos diálogos e enfrentamentos, no qual são levantados os mais diversos assuntos que os afetam de maneira individual ou não, como envelhecimento (e a busca para retardá-lo) e a maneira como lidamos com o nosso corpo, traição, inveja, desejo na maturidade, o modo como encaramos as doenças, libertação feminina, escassez de recursos naturais e a ética ou falta dela em cada um de nós. Com este rico material, a escritora consegue nos presentear com um arcabouço narrativo poderoso com mensagens que ao final podem ser encaradas como redentoras e esperançosas. Vale destacar ainda que o texto traduzido por Diego tem a peculiaridade, sendo quebrada a quarta parede, de serem ditas em certos momentos as suas rubricas, tão importantes para o entendimento daquele, por alguns de seus personagens.
Rodrigo Portella, tendo um elenco de altíssima qualidade, deixa a sua marca em um dos melhores espetáculos encenados nos últimos anos
Rodrigo Portella, um dos diretores mais prestigiados de sua geração, vencedor dos prêmios Cesgranrio, Botequim Cultural e APTR por esta montagem, que também foi laureada com o Cesgranrio e o Botequim Cultural de “Melhor Espetáculo”, é conhecido pelos estudiosos da área e pela classe artística pela sua defesa tenaz da simplicidade teatral, e é com esta mesma simplicidade, porém preciosíssima sob diferentes óticas, que a sua marca é impressa com excelência em um dos melhores espetáculos encenados nos últimos anos. Rodrigo direciona com precisão o seu foco na composição interpretativa de seus atores, na melhor maneira de seu elenco canalizar as mais amplas e ambíguas emoções, no jeito mais eficaz do texto ganhar a embocadura perfeita dos seus artistas. Um profissional que se preocupa em valorizar a ribalta e demais acessórios cênicos com todas as infinitas possibilidades que lhe são oferecidas, reverenciando a tensão, o conflito, no entanto sem abandonar os lugares que a poesia e a graça podem e devem ocupar. O trio de atores escalado para dar vida aos personagens de Lucy Kirkwood, Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas, todos com reconhecida experiência e talento, é de altíssima qualidade, sendo, sem quaisquer dúvidas, absolutamente responsáveis pelo nível de sucesso alcançado pela peça em todas as suas temporadas. Analu Prestes (Prêmios Shell, Cesgranrio, Botequim Cultural e APTR de Melhor Atriz) nos transmite com espantosa densidade a ambivalência, a amargura e a inconstância de Dayse, além de toda uma sucessão de camadas afetivas que a definem. Mario Borges, como Robin, vale-se com sabedoria de seus recursos interpretativos para criar um tipo que transita pelo caráter bonachão e espirituoso, mas que, dependendo da ocasião, descamba para uma irascibilidade. E Stela Freitas acerta magnificamente ao apostar na impassibilidade, no pragmatismo e no ar “blasé” de sua física nuclear. O cenário do próprio diretor Rodrigo Portella e de Julia Deccache atende ao princípio da simplicidade defendido pelo primeiro, priorizando tão somente elementos vitais para o desenvolvimento da trama, o que de forma alguma lhe tira o charme e o interesse, representados por uma mesa retangular de madeira e suas respectivas cadeiras, além de acessórios lúdicos, como um cavalinho de balanço. Paulo Cesar Medeiros se encarrega de embelezar o espetáculo através de sua luz, caracterizada em grande parte por uma iluminação aberta/geral, próxima ao amarelado, que sofre, dependendo da situação, oscilações de matiz. Paulo se esmera ainda em introduzir deslumbrantes focos, feixes vindos do fundo do palco e spots laterais que exploram belamente o azul e o verde. Os figurinos são criações de Rita Murtinho, que os reportou a um universo distópico, observado nos tons sombrios de cinza/chumbo, acrescidos pelo verde e ocre, em vestimentas que apresentam remendos e costuras. A proposta de Rita, que ainda optou por galochas para os atores, impacta, estando em total consonância com a dramaturgia. A trilha sonora original de Marcello H. e Federico Puppi contribui sobremaneira para a ambiência crível da peça com suas inserções instrumentais calcadas principalmente nos sons graves de cordas, pontuando quadros de tensão, expectativa ou apenas transição de cenas. Marcelo Aquino, responsável pela preparação corporal dos intérpretes, cumpre sua função com vultosa eficiência, porquanto vemos a execução plena tanto postural quanto de movimentos demandada pelos seus personagens. “As Crianças” é uma peça teatral que se destaca pela sua atualidade, sua urgência e inteligência dramatúrgica. Seu forte teor denunciativo jamais passará incólume aos olhos de seus públicos. Uma obra redentora que aposta em um mundo melhor ao acreditar nas futuras gerações, mas isso não seria possível se não fossem as nossas adoráveis “crianças” Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas, que “brincam” lindamente em cima de um palco.