Idealizado pela atriz Vilma Melo e o produtor cultural Bruno Mariozz, o monólogo “Mãe de Santo”, com argumento de Helena Theodoro e dramaturgia de Renata Mizrahi, parte da premissa, dentre outras, do quanto são vilipendiadas e ofendidas as mulheres pretas brasileiras
No último dia 23 de abril o presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa disse em pronunciamento que “seu país teve responsabilidade sobre crimes na era colonial, como tráfico de pessoas da África, …” e “que o Estado português deveria reparar danos causados nesse período.”. De fato, as consequências desastrosas para a população negra brasileira são sentidas até os dias de hoje, vistas rotineiramente na exclusão e desigualdade sociais, no preconceito e discriminação raciais, independente das classes ocupadas, e nos crimes de racismo e injúria racial praticados e noticiados com frequência nos meios de comunicação, demandando reparações obrigatórias que revertam ao máximo todo o estrago feito contra um povo e sua cultura. No entanto, em um país em que as mulheres são relegadas a um patamar inferior, pode-se imaginar o quanto, em grau mais elevado, as de pele preta são vilipendiadas e ofendidas com constância. Partindo-se dessa premissa, a atriz Vilma Melo e o produtor cultural Bruno Mariozz idealizaram o projeto de realização do espetáculo “Mãe de Santo”, que contou com o valioso argumento da filósofa, escritora e professora Helena Theodoro, que serviu para que a autora teatral Renata Mizrahi, valendo-se de seus textos e relatos, compusesse com riqueza a dramaturgia que nos é apresentada e que integra a trilogia “Matriarcas”, formada ainda por “Mãe Baiana” e “Mãe Preta”.
A rica dramaturgia de Renata Mizrahi leva ao público registros reais de discriminação, preconceito e racismo, seja contra uma influencer famosa, uma empregada doméstica ou as próprias Helena Theodoro e Vilma Melo
Renata, com a adoção de recursos narrativos eficientes, utilizou-se da figura central de uma palestrante, Vilma Melo, que no decorrer de suas falas pertinentes às condições em que mulheres pretas são vítimas de comportamentos alheios discriminatórios em virtude do fato de que são simplesmente mulheres pretas fosse o ponto de partida para que houvesse o compartilhamento de histórias assemelhadas que certificassem a prática racista e sexista predominante em nosso país. Casos que jamais podem cair na banalização e desdém são divididos com a plateia pela protagonista, que se desdobra com seu retumbante talento na representação desses personagens reais, baseados em experiências inclusive da filósofa Helena Theodoro e da própria Vilma, como a revista de “praxe” na bagagem em um aeroporto, o pedido de documentos a uma famosa influencer e blogueira viajando na primeira classe do avião, uma estudante acusada por uma instituição de ensino e punida por isto ao ser a única “culpada” em uma situação em que os seus colegas colaram de sua prova, a empregada doméstica acusada de furto exatamente no dia em que estava de folga, uma representante de religião de matriz africana que em uma viagem para um evento de repercussão internacional para o qual fora convidada se deu conta de sua invisibilidade para os demais, uma grande atriz que se indignou com uma fala equivocada de uma cena de novela e circunstâncias que envolvem algo grave e rotineiro como a intolerância religiosa, ao ponto da vítima não se calar e exclamar: – Não mexam com o meu sagrado!, uma das frases mais impactantes do espetáculo. Contrariando expectativas de que esses temas tão áridos fossem tratados somente com o peso que os mesmos carregam, a dramaturga fez questão de não preterir a leveza em determinados momentos no seu desenho textual, capazes até de arrancar risos (seriam eles nervosos?) dos espectadores. Há que se falar que a dramaturgia abordou, respeitando-se toda a dor existente, um dos acontecimentos mais traumáticos da vida da autora do argumento, a perda precoce de seu filho levado pelas ondas do mar.
Vilma Melo, grande atriz, é dotada dos mais variados predicados que lhe permitem dar vida com leveza ou graça ou com o mais contundente dos dramas às diversas personagens que interpreta
Luiz Antonio Pilar, o diretor da montagem, em absoluta conexão com Renata e Vilma, coloca no palco uma bela e poética encenação, sem que todas as sérias denúncias deixem de ocupar o seu lugar de destaque. Ciente das potencialidades artísticas de sua intérprete, Luiz as explora com equilíbrio e sabedoria, acertando, com sua apurada visão, ao inserir nos pontos adequados, os cantos deslumbrantemente entoados por ela. Outro aspecto a ser mencionado é a bem-sucedida e assaz elegante interação entre a atriz e a audiência com perguntas que nos levam à reflexão. Quanto a Vilma Melo, a partir de sua entrada em cena, já formamos a convicção de que estamos diante de uma grande atriz, dotada dos mais variados predicados que lhe permitem dar vida seja com graça e leveza ou com o mais contundente dos dramas às diversas personagens que perpassam o arco narrativo e suas respectivas vivências. A atriz carioca, primeira atriz negra a ganhar o prêmio Shell em 2017, e indicada por este trabalho ao mesmo prêmio Shell em 2023 e ao APTR em 2022, possui a inteligência cênica exigida para enfrentar tamanho desafio e o faz garbosamente, valendo-se da sutileza de seu olhar para nos transmitir algo importante ou de sua potente e bem articulada voz, usada de forma encantadora nas canções emocionantes que interpreta. A trilha sonora original de Wladimir Pinheiro ocupa uma função precípua na peça, conferindo-lhe, tendo por base essencialmente acordes que derivam do som dos atabaques que se somam aos de cordas, um resultado bastante expressivo e de notável beleza, marcando com êxito as cenas e suas transições. O cenário e o figurino foram criações de Clívia Cohen, que soube imprimir ao primeiro uma linda simplicidade coberta de simbolismos, observada nas dezenas de turbantes em preto e branco presos a fios espalhados por toda a ribalta, acompanhados por cadeira, tamborete e bacia de madeira azuis e cercados de bambu, também foi bastante feliz no figurino de Vilma Melo, trajada com um vestido meio ombro azul com estampas de círculos coloridos e acessórios imponentes (há ainda peças que lhe servem posteriormente de Pano da Costa, uma espécie de vestido, e um Ojá, turbante). A iluminação de Anderson Ratto é um indiscutível fator de embelezamento da produção, com o sábio uso dos turbantes que servem como pontos de incidência de sua luz, que passeia por cores como o rosa e o vermelho, além da prevalência do azul em certas ocasiões, focos muito bem calculados e alguns efeitos deslumbrantes, como os spots colocados atrás das cercas de bambu e a luz sobre a bacia d’água. “Mãe de Santo”, que já foi apresentada em festivais internacionais em Cabo Verde e Moçambique, além de Portugal, é uma peça teatral de caráter urgente e necessário, que é para ser vista e revista, pensada, avaliada, visto que assuntos que nos são muito valiosos, como ancestralidade, formação do nosso povo brasileiro, com sua maioria de pessoas pretas, racismo e invisibilidade da mulher negra são tratados com legitimidade e seriedade. “Mãe de Santo” é um grito de “Basta!” em cima de um palco. É um grito de “Não mexam com o meu sagrado!” em cima do mesmo palco.