Blog do Paulo Ruch

Cinema, Moda, Teatro, TV e… algo mais.

Eriberto Leão vive um astronauta obrigado a se confrontar com diversos conflitos internos em seu espetáculo solo/Foto: Emmanuelle Bernard

Montada como experimento cênico virtual em 2020, a peça “O Astronauta” vem seduzindo plateias presencialmente com a jornada solitária e oprimida de um homem que viaja ao espaço e se confronta com as mais diversas questões existenciais

Há peças que parecem moldadas para um único e exclusivo ator, atendendo não só ao seu talento e personalidade como às suas expectativas artísticas e intelectuais. Tal conceito se materializa com perfeição no espetáculo idealizado por José Luiz Jr. e escrito por Eduardo Nunes, com direção geral do primeiro, a princípio montado de forma virtual em 2020 (indicado ao Prêmio APTR 2021 como “Melhor Espetáculo Inédito Editado”), “O Astronauta”, com Eriberto Leão (responsável com José Luiz Jr. pela adaptação para os palcos físicos). Hoje seduzindo plateias presenciais, a montagem escrita com apuro e aprofundada pesquisa histórica por Eduardo Nunes nos oferece com inteligência e beleza, emocionando-nos, a jornada solitária e heroica de um astronauta rumo ao mistério do espaço, condição que o leva irremediavelmente ao confronto direto com os seus afetos familiares, representados em passagens com o seu pai (Jaime Leibovitch em participação especial em vídeo), mãe e avô, com o seu primeiro contato com a morte (a de seu avô), com as suas memórias que vão aos poucos se dissipando, com a implacabilidade do tempo e com os seus mais íntimos medos. Não raro essas passagens familiares guardam relação com o encantamento que os corpos celestes nos provocam.

Com brilhante atuação de Eriberto Leão, caracterizada pela sua absoluta verdade, o espetáculo, além de possuir grande qualidade artística, conduz o público a uma viagem imersiva e sensorial

Nesta viagem espacial acompanhada ao vivo por milhões de pessoas no mundo (esta contingência é exaltada pelo ambicioso comandante da missão interpretado, também em vídeo, por Zé Carlos Machado), o astronauta mantém contato com Hal, uma fria e por vezes irônica inteligência artificial representada pela voz da atriz Luana Martau (a voz de Hal em cena é uma justa homenagem à maior obra-prima cinematográfica feita sobre o tema até então, “2001: Uma Odisseia no Espaço”, 1968, de Stanley Kubrick, baseada no conto de Arthur C. Clarke, “The Sentinel”, em que um computador, Hal 9000, comunica-se de maneira opressora com o único tripulante da espaçonave). Assumindo claramente uma linguagem própria de cinema, pois se trata de uma ficção científica aliada ao drama, a peça é generosa em outras boas referências à cultura pop, como ao cantor, compositor, ator e produtor musical britânico David Bowie e seu alter ego Ziggy Stardust (dois hinos de David são cantados potentemente por Eriberto, “Starman”, em sua versão original e em português, e “Space Oddity”). Com o objetivo de se questionar modos de expansão da mente, o personagem, em seu discurso incisivo, lembra-nos de próceres da contracultura, como Aldoux Huxley e Timothy Leary. Toda esta fusão de informações/referências contribui para a bem-sucedida contextualização da narrativa e o consequente interesse do público. A direção geral de José Luiz Jr. atinge robusto sucesso com o equilíbrio alcançado com a atuação de Eriberto, suas interações com os ótimos atores participando em vídeo e voz e as concomitantes e lindíssimas projeções de Rico e Renato Vilarouca (o videografismo e a realidade virtual são arrebatadores e possuem valioso registro histórico – vídeo e edição complementar de José Luiz Jr.). José Luiz explora toda a potencialidade interpretativa, comunicativa e física de seu protagonista, ocupando os principais pontos do tablado, inserindo com notável adequação no timing cênico os números musicais. Eriberto Leão, um ator exponencialmente admirado por espectadores das várias áreas onde desempenha a sua arte com vitórias, entrega-se sobremaneira ao universo emocional deste “homem do espaço”, revelando-nos com absoluta verdade e brilho as suas dores existenciais, angústias, conflitos anímicos não resolvidos, temores, além da vulnerabilidade diante de forças que lhe são superiores. Eriberto demonstra ainda superlativa disposição física quando assim lhe é exigido (esmerada preparação corporal de Dani Saad), comunicação fluida muito bem acolhida pelo público e intensidade em seus momentos musicais (direção musical impecável e inspirada de Ricco Viana que nos entrega uma trilha roqueira, intrigante, misteriosa, com ruídos e sinais enigmáticos). Carla Berri, diretora de arte, aposta no estilo e minimalismo ao reproduzir com beleza e assepsia o interior de uma nave, compondo a ribalta com um assento acolchoado em seu centro próximo a um cubo iluminado. Vale-se também de uma estante metálica com várias garrafas dispostas (o minimalismo só é quebrado pela presença do telão semicircular no fundo do palco). Adriana Ortiz realiza um excelente trabalho de iluminação, ora mais delicado e sensível (com tons mais amarelados) ora mais forte e pujante (sobrecarregando no azul e no vermelho), utilizando-se, dentre outros recursos, de quatro “tripés” de spots posicionados estrategicamente. Joana Bueno esbanja criatividade ao desenhar a roupa espacial de Eriberto, com textura acetinada e cores dourada e azul, além do capacete com luz interna. “O Astronauta” não é só um espetáculo de grande qualidade artística em conexão com o nosso tempo e as nossas mais caras questões, mas uma experiência imersiva e sensorial da qual não esqueceremos. Filhos do medo que somos, somos a evolução, cooperemos uns com os outros, não temamos em embarcar com Eriberto Leão nesta viagem pelo universo mental e sideral. Afinal, o “universo é mental”.

Artur Luanda Ribeiro, um dos membros fundadores da Cia. Do à Deux, no centro do cenário vencedor do Prêmio Shell/Foto: Renato Mangolim

Muitas são as maneiras de se expressar cenicamente, e a Cia Dos à Deux, com o seu teatro gestual reconhecido internacionalmente, prova-nos a potência e a diversidade de outras linguagens

Geralmente associamos, até de forma inconsciente, a prática do exercício teatral à oralidade. Pensamos tão logo no texto, em seus diálogos, na tradução ou adaptação. Todavia, muitas são as maneiras de se comunicar com o público adotando-se a mesma potência causada pela palavra. O butô, a despeito de se enquadrar na categoria de dança, possui fortíssimos elementos teatrais. A prestigiada e internacional Cia. Dos à Deux, criada na França, comemorando os seus 25 anos de história, formada por André Curti e Artur Luanda Ribeiro, mergulha em uma pesquisa profunda, cuidadosa e de vultoso impacto visual na manifestação da arte cênica por meio do gesto, da fala imensamente variada e pujante que o nosso corpo transmite. O resultado de tanta paixão da dupla é comprovado em seu mais recente espetáculo, o belíssimo e arrebatador “Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes”.

André Curti e Artur Luanda Ribeiro são grandes artistas que exploram em seu nível máximo as inimagináveis possibilidades que a máquina corporal tem de se expressar

Partindo-se da ideia de se convidar os espectadores a imergirem em seus múltiplos medos que os atravessam a fim de se chegar a estados, sentimentos e emoções chamados de “espaços íntimos de sensações” e os modos como lidamos com os nossos abismos pessoais, os nossos vazios internos, a montagem, com o seu estupendo, inventivo e pós-futurista cenário (criação de André e Artur) que nos oferece um enorme círculo com engrenagens metálicas em suas bordas assemelhado a uma lente, tendo em seu centro um tablado, e ao fundo uma espécie de portal (segundo eles, um “oráculo dos sonhos”), exibe-nos dois grandes artistas que exploram em seu nível máximo com impressionante perfeição as inimagináveis possibilidades que a máquina corporal tem de se expressar. Utilizando-se de referências cinematográficas, como o expressionismo alemão de F. W. Murnau (iluminação soberba de Artur Luanda Ribeiro com rica valorização das sombras; Artur também procura dar um especial enfoque à força do azul e do vermelho) e até mesmo David Cronenberg e sua estranheza imagética (vista em algumas projeções; outras tantas, trabalho do diretor de fotografia Miguel Vassy e da artista plástica Laura Fragoso são de uma beleza indescritível), a companhia confirma a sua intenção de se misturar outras artes ao seu repertório. A coreografia imaginada pelo par nos entrega perspectivas tão diversas quanto fascinantes, como corpos em sincronia, corpos que se fundem, duplicam-se e assumem formas não humanas. A encenação é acompanhada pela intrigante música original de Federico Puppi, que se casa brilhantemente com a proposta da narrativa. Ticiana Passos, responsável pelos figurinos, buscou com inteligência a liberdade impressa em saias fluidas para os atores/performers. Com dramaturgia e direção de André Curti e Artur Luanda Ribeiro, unindo o onírico com o lirismo poético, “Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes” reafirma a Cia. Dos à Deux como instrumento artístico poderoso na sedimentação definitiva do teatro gestual como expressão legítima e genuína, abrindo outras portas válidas de comunicação cênica. Nós, o público, criamos raízes com a sua arte e para onde ela for voaremos ao seu lado.

Ernani Moraes vive um homem de negócios misterioso e Rafael Queiroz e Lucas Drummond dois irmãos perturbados pela orfandade e solidão/Foto: Costa Blanca Films e Gaulia Films

Peça do roteirista e ator norte-americano Lyle Kessler, montada em vários países, inclusive com Albert Finney em uma de suas versões, é apresentada pela primeira vez no Brasil

Ter uma boa dramaturgia com diálogos bem construídos e tipos humanos com perfis ricos em nuances já apontam os primeiros caminhos viáveis para se obter um êxito teatral. É o que se pode dizer antes de qualquer digressão a respeito da ótima peça do roteirista e ator norte-americano Lyle Kessler “Órfãos”, escrita em 1983, um sucesso internacional montado em países como Estados Unidos, Alemanha e França, tendo sido protagonizada em sua versão inglesa por Albert Finney em 1986 com direito ao prêmio Olivier Award de Melhor Ator do Ano e produção na Broadway com Alec Baldwin em 2013 garantindo uma indicação ao Tony Awards como Melhor Peça do Ano. O texto, inédito no Brasil, também ganhou uma versão para o cinema novamente com Albert Finney no elenco e direção de Alan J. Pakula. Mas outros importantes fatores corroboram a incontestável qualidade do espetáculo, como a tradução clara e fluida de Diego Teza, a direção com sólidos entendimentos sobre as engrenagens cênicas de Fernando Philbert, os talentosos intérpretes entregues em sua plenitude à propositura textual e seus aspectos técnicos caprichados e coerentes.

Dois irmãos órfãos, perturbados pela ausência materna, vivem em seu mundo particular até que chega uma misteriosa terceira pessoa que lhes apresentará uma possibilidade impensada até então

Já comparado ao dramaturgo Tennessee Williams, especialista na elaboração de retratos precisos das relações humanas e seus respectivos conflitos, Lyle Kessler cria uma narrativa extremamente envolvente com pinceladas fabulares na qual se imiscuem alguns gêneros e referências, como o drama, o thriller psicológico, uma certa ambiência dos filmes noir, humor e até alguns números musicais. Essa riqueza de elementos serve para nos contar a história de dois irmãos órfãos que vivem em um apartamento depauperado na cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos, em uma época não especificada, o ingênuo e um pouco infantilizado Phillip (Lucas Drummond, também idealizador e coordenador do projeto), sem sair de casa por anos devido a uma suposta alergia às coisas em geral, libertando-se através de suas fantasias aventurescas e filmes antigos na TV, e o repressor e agressivo Treat (Rafael Queiroz), que para garantir a sobrevivência de ambos se vale de pequenos furtos nas ruas. A aparente normalidade dos irmãos, confundidos pela ausência materna, é abruptamente quebrada pela visita de Harold (Ernani Moraes), um misterioso homem de negócios com modos sofisticados e elegantes vindo de Chicago, no estado do Illinois. Phillip e Treat não titubeiam em sequestrá-lo ao saberem de suas posses. A partir deste fato pontual a obra com muita sabedoria nos apresenta uma série de reviravoltas em um clima de suspense, jogos psicológicos e tensão, reverberando nas intenções e comportamentos dos personagens, revelando a adoção por parte de Harold de atitudes e sentimentos paternais.

A despeito de ser uma ótima história de suspense e tensão, “Órfãos” é um grande recorte cênico em que se fala principalmente de afeto e sua busca

Fernando Philbert, um dos diretores mais requisitados do momento, impõe à montagem uma dinâmica bastante expressiva, não só no que concerne às trocas interpretativas mas também no que tange à máxima exploração dos muitos acessórios espalhados no palco que lhe servem como suportes para relevantes marcações, podendo ser uma cadeira sobre a mesa, uma janela ou mesmo a própria mesa. Outros méritos de Fernando foi manter sem recaídas o nível exigido de tensão, sem preterir, quando assim lhe era exigido, instantes poéticos e silêncios, e a extração significativa das possiblidades artísticas de seu elenco. Ernani Moraes, como Harold, reafirma o que já sabíamos, ou seja, trata-se de um dos melhores atores do país. O ator, famoso por seus papéis na televisão, vários deles na seara da comicidade, mostra-se senhor de si em “Órfãos”, com domínio completo de sua atuação, das complexas emoções de seu personagem. Ora Ernani se apresenta pujante, ora delicado, enigmático, amoroso e incisivo. Ao seu favor está a sua inacreditável voz, marcada por uma gravidade belíssima, que o auxilia a dizer o seu texto com adorável prazer, saboreando as palavras. Lucas Drummond ostenta distinta verdade ao compor a personalidade de Phillip, sabendo com bastante perspicácia equilibrar as características que a compõem, como o seu caráter ingênuo, sonhador e questionador, cabendo-lhe com sucesso as passagens divertidas da encenação. Sua leveza no palco, com movimentos desenhados, impressiona. Rafael Queiroz se destaca notadamente como Treat ao encarná-lo com intensa irascibilidade e imprevisibilidade emocional. O intérprete se esmerou em realçar detalhes que pudessem conferir maior credibilidade ao papel, como pequenos e quase imperceptíveis esgares nos lábios. Enfim, este triângulo de talentos não se afugenta dos desafios e complexidades que lhe foram impostos, logrando resultados elogiáveis. O cenário de Natália Lana preenche o palco com magnitude e realismo. Seu olhar sobre o apartamento dos irmãos é assaz minucioso, detalhista, cheio de pormenores, com destaque para um sofá central com almofadas, janelas ao fundo da ribalta, grandes painéis formados por ripas de madeira e uma mesa com pés hidráulicos. Fica-nos evidente a sua ideia de conferir ares de abandono ao local. Um belo trabalho. A direção musical ficou a cargo de Marcelo Alonso Neves, que, obedecendo ao universo retratado, compôs com brilho e sensibilidade temas incidentais que nos remetem a trilhas cinematográficas, além de inserções maravilhosas de standards do jazz, como “Cheek to Cheek”, nas vozes de Louis Armstrong e Frank Sinatra. Rocio Moure, figurinista, fornece-nos uma diversificada paleta de opções de vestuário, provando sua capacidade, sempre com estilo, elegância e coerência, de complementar o desenho dos personagens da melhor forma possível (são vistos jeans, ternos, moletons, capote etc). A iluminação de Vilmar Olos embeleza o espetáculo por meio de spots laterais, spots no alto na cor azul, um plano aberto mais suave em um tom naturalista, além de deslumbrantes momentos em que o rosa suave, o lilás e o laranja prevalecem. Toni Rodrigues realiza uma espetacular direção de movimento, evidente na maneira segura com que os atores variam seus deslocamentos, caem, sobem em mesa, dançam. “Orfãos” não é tão somente uma peça que nos oferece uma envolvente e instigante história de suspense e tensão, e sim um grande recorte cênico em que se fala principalmente de afeto e de sua busca. Por trás de todas as conflituosas relações humanas que envolvem Phillip, Treat e Harold está essa procura presente em todos nós. Deste afeto teatral jamais seremos órfãos.

Clara Santhana atua, canta e dança em seu novo espetáculo musical, “Outras Marias”/Foto: Ariel Cavotti

A dramaturga Márcia Zanelatto e a atriz e cantora Clara Santhana se unem novamente após o retumbante sucesso “Deixa Clarear” em um musical que tem por finalidade mostrar a história de sete bravas mulheres que resistiram às dificuldades impostas pela sociedade

Se há algo em comum entre a dramaturga Márcia Zanelatto e a atriz e cantora Clara Santhana é o desejo genuíno de ambas de fazer, através das Artes, com que grandes mulheres sejam reconhecidas pelos seus valores, talentos e qualidades, alcançando-se o maior número possível de pessoas que, de alguma forma, desconheciam-nas. Um perfeito exemplo desta sintonia ideológico/artística é o musical sobre a cantora e compositora Clara Nunes “Deixa Clarear”, estrelado lindamente por Clara e escrito primorosamente por Márcia, um retumbante sucesso que completa dez anos somando cerca de 500.000 espectadores. O musical “Outras Marias”, idealizado e pesquisado com profundidade pela atriz e cantora, parte da valiosíssima premissa de se representar nos palcos, dentro de um arco narrativo coeso, a história de sete mulheres, sete Marias, que contribuíram com seus atos e resistências para que a condição feminina fosse vista por óticas que fugissem do machismo estrutural e preconceitos os mais diversos.

“Outras Marias” não é só um entretenimento musical, mas um alerta, uma denúncia, um grito contra as forças que tentam perpetuar a invisibilidade feminina

Márcia Zanelatto, uma de nossas autoras teatrais mais respeitadas, alinhavou com muita sabedoria, e em alguns casos com humor, os retratos históricos de cada uma dessas Marias, evitando a narração episódica pura e simples, apostando em um compartilhamento dos fatos mais íntimo, pessoal e humanista. Com a direção musical impecável de Cláudia Elizeu, acompanhada em cena das excelentes percussionista Geiza Carvalho e acordeonista Verónica Fernandes, Clara, entre pontos e canções de origem popular, inicia o seu bem-sucedido périplo em nos relatar as vidas de Maria Padilha de Castela (amante do Rei de Castela coroada rainha depois de morta), Maria Felipa de Oliveira (que lutou nas guerras pela independência da Bahia), Maria Quitéria (cigana portuguesa), Maria Bonita (bandoleira mulher de Lampião), Maria Navalha, Maria Doze Homens (capoeirista que enfrentou doze homens em defesa de uma mulher) e Maria Mulambo. Algumas delas foram incorporadas como entidades de religiões de matriz africana praticadas no Brasil. Márcia, com estes relatos, objetivou com notável propriedade levantar questões importantes, como a opressão sofrida pelo ser feminino, o cerceamento de suas liberdades, vontades e escolhas, seus poderes de fala, a busca por um lugar com igualdade de direitos independente do seu gênero e a sua invisibilidade causada pela pele de cor preta. Quanto ao humor, este é percebido, por exemplo, em uma situação em que Clara, num tom professoral e didático, enumera as terminologias reducionistas de caráter machista usadas pelos homens como formas de se tratar uma mulher, resultando quase sempre na objetificação de seu corpo. Patrícia Selonk, uma das fundadoras da Armazém Cia de Teatro e premiada atriz, faz a sua estreia na direção nos provando o quanto a sua riquíssima experiência cênica pode contribuir nesta nova função. Patrícia, com sensibilidade, olhar apaixonado e elogiável tato, explora as inúmeras potencialidades de Clara, tanto como intérprete quanto como cantora, criando marcações que valorizam o centro do palco e o belo cenário de Dóris Rollemberg, com seus imensos painéis de tecido translúcido com emaranhados de cordas vermelhas situados no fundo da ribalta e o manequim confeccionado por Junior Alexandre (ótima sacada). Além disso, a divisão das cenas musicadas e faladas é feita de modo bastante sedutor. Clara Santhana nos encanta irremediavelmente com sua versatilidade, carisma, beleza e talento ao representar, conferindo tons e gradações emocionais diferentes, cada uma das figuras históricas femininas propostas. Valendo-se de sua natural comunicação com o público, a atriz nos revela também a sua habilidade para recortes cômicos. A artista possui vastas força e presença cênicas capazes de levar a plateia consigo por todo o espetáculo. Com a sua admirável voz que passeia pelas mais diversas notas nos cantos entoados, Clara nos apresenta ainda movimentos de corpo, gestuais e danças executados com potência e sensualidade (resultado do incrível trabalho da diretora de movimento Cátia Costa). A iluminação de Daniela Sanchez é deslumbrante, com a adoção de um plano geral suave e a incidência de focos com matizes diferenciados (azuis, lilases e principalmente vermelhos) sobre os painéis citados, uma maravilha absoluta. Os figurinos de Wanderley Gomes primam pela fluidez e elegância, seja pelo tecido de dupla face que serve tanto para uma saia quanto para um xale ou manto ou pelo macacão nude. A peça conta ainda com a poderosa voz em off de Iléa Ferraz e o harmonioso desenho de som de Fernando Capão. “Outras Marias” é uma obra musical que cumpre com maestria a sua missão não só de entreter aqueles que amam a arte teatral mas também a de alertar, denunciar e gritar contra as relutantes correntes que insistem em apagar as mulheres, suas condições e seus legados. Que as Marias se façam ouvir pelo outro, pelos outros e por todos os outros.

Rodrigo Simas em seu primeiro monólogo interpreta um ator cheio de conflitos durante os ensaios para encenar “Hamlet”/Foto: Ronaldo Gutierrez

Rodrigo Simas, ator de grande sucesso na TV, aceita o convite de Ciro Barcelos para estrelar a arrebatadora e iconoclasta montagem que levanta questionamentos acerca da sexualidade do desafiador personagem criado por Shakespeare

Todo e qualquer ator ao redor do mundo já sonhou, sonha ou irá sonhar um dia encarnar Hamlet, o mais desafiador personagem criado pela mente fabulosa de William Shakespeare. Grande parte deles espera a maturidade para lhe dar vida. Não é o caso de Rodrigo Simas, que iniciou sua carreira nos palcos e construiu uma trajetória de indiscutível sucesso na TV. O artista, há cerca de dez anos, ouviu a proposta seminal de Ciro Barcelos (ator, coreógrafo e diretor) de personificar um Hamlet diferente de tudo aquilo que havia sido feito através dos tempos nos teatros e filmes planeta afora. A materialização desta ousadia, que faz questionamentos acerca de sua real sexualidade (afinal, ele amava Ofélia ou Horácio?), é vista hoje na arrebatadora e iconoclasta montagem “Prazer, Hamlet”, cujas adaptação e direção ficaram a cargo do próprio Ciro, que não dispensou quaisquer elementos que pudessem coroar com excelência a sua realização, a começar pela desconcertante e rica composição dos personagens de Rodrigo, surpreendente em todos os aspectos.

“Prazer, Hamlet” é uma virada de chave na carreira de Rodrigo Simas

O elaborado, crítico e muito bem escrito texto de Barcelos emaranha com enorme proficiência as falas contemporâneas do atormentado ator que se prepara em seus ensaios para enfrentar o Príncipe da Dinamarca (incluindo a presença de uma figura afetada e sarcástica, Hamlixo, que o perturba) e os diálogos cultos da peça clássica, datada dos séculos XVI e XVII. A costura entre as alternadas camadas da peça é feita com acurada ciência a fim de que sua compreensão seja alcançada junto ao público. A direção atinge elevados níveis de êxito ao apostar as suas fichas no múltiplo talento do intérprete, não permitindo que o ritmo narrativo se perca um minuto sequer. Rodrigo Simas nos impacta com sua sofisticada e estudada atuação, com alterações de voz, entre o grave e o agudo, admiráveis (ótima preparação vocal de Gláucia Verena), com direito a um potente número de canto, além de um trabalho corporal espetacular, para se dizer o mínimo. Rodrigo evidencia ainda robusta segurança ao conversar com a plateia antes de sua total imersão no universo da encenação. Cláudio Tovar concebe os figurinos (capas bordadas e com plumas, armadura, moletons e t-shirts) e adereços (coroa, chapéu) com valorosa exuberância barroca, havendo referências a “commedia dell’arte” e ao burlesco, observando-se também uma pegada rock ‘n’ roll e underground. O cenário de Ciro e Cláudio possui forte apelo visual, no qual se vê uma profusa mistura dos instrumentos do ator, como o seu camarim, e do personagem que se intenta fazer, como o trono real, contando também com uma imensa cortina de retalhos e diminutas luzes dependuradas espalhadas no centro da ribalta. A direção musical de André Perine nos conquista pela pujança dos riffs de uma guitarra, melodias que remetem à época medieval e batuques imponentes. O desenho de luz de Caetano Vilela é primoroso, servindo-se de spots suavemente amarelados, bonitos focos somente em Rodrigo, além da linda e eficiente utilização das já citadas pequenas luminárias que ornam o cenário. “Prazer, Hamlet” é um espetáculo solo questionador, provocativo, inteligente, afinado com o nosso tempo, um prazer teatral. O tal prazer teatral que virou a chave da carreira de Rodrigo Simas com tanto talento mostrado.

“Vocês Foram Maravilhosos” é o terceiro espetáculo solo de Marcos Veras/Foto: Divulgação

Em “Vocês Foram Maravilhosos”, seu terceiro espetáculo solo, Marcos Veras, de forma corajosa, revela ao público momentos bastante pessoais, que vão do drama ao humor absoluto, sem, no entanto, preterir a leveza

Despir-se para o outro no que concerne a fatos de cunho pessoal impõe doses de coragem e desprendimento. Quando se trata de um artista consagrado, inclusive no humor, o desafio individual gerado avoluma-se. Este não intimidou de forma alguma o carioca criado no bairro de Santo Cristo filho de pai comerciante Marcos Veras, um nome unanimemente respeitado pelos seus pares de classe. O ator, comediante, apresentador e roteirista foi ainda mais longe ao colocar no papel não só passagens de sua carreira em seu terceiro espetáculo solo, com direção de Leandro Muniz, “Vocês Foram Maravilhosos”, mas também dramas bastante doídos os quais viveu, como as perdas de seu pai e irmã em anos seguidos. Tal momento revela a enorme habilidade de Marcos em não tornar a peça pesada tampouco piegas, transformando os episódios contados em recortes comoventes e emocionantes, ostentando assim a sua sensibilidade dramatúrgica. Ao abordá-los, o intérprete lança com muita delicadeza pequenas notas de comicidade. Outros tantos assuntos foram compartilhados por Veras, sempre eivados de seus apartes espirituosos e inteligentes, como a sua infância, a iniciação sexual, o começo na profissão, os célebres colegas que lhe foram importantes, o sucesso na TV (com “Zorra Total”, por exemplo) e no teatro (o fenômeno do stand-up “Falando a Veras”), a paternidade (com suas alegrias e privações) e sua relação afetuosa e divertida com a mãe. Além disso, críticas sociais, econômicas e comportamentais não foram dispensadas. A montagem que, segundo o próprio ator, possui várias classificações, como o “bio drama”, vale-se de sua espantosa comunicabilidade a fim de se atingir a maior interação possível com os espectadores, o que de fato acontece, vista na conversa direta, espontânea e engraçada com aqueles, como se fosse uma “terapia coletiva”. As impagáveis imitações ou personificações de celebridades não poderiam ficar de fora, garantindo sonoras gargalhadas e mostrando a sua versatilidade vocal.

Uma das muitas lições que nos são passadas pela peça cuja direção respeita o timing exigido é a de que devemos viver e valorizar sempre o agora

Leandro Muniz dirige com sabedoria o aparentemente indomável artista que tem em mãos, deixando-o à vontade na ribalta ou fora dela, ou se utilizando dos recursos disponíveis no cenário. Leandro conduz a encenação com o timing que ela exige, honrando as diversas fases que a compõem e categorias em que se inclui. Merecem menção o elegante figurino que Marcos traja (um conjunto de blazer azul com tênis branco) e a bonita luz com o aproveitamento de inúmeras possibilidades (cores feéricas, predominância do azul, do rosa e das luzes branco/amareladas, além dos planos gerais).”Vocês Foram Maravilhosos” nos deixa como ensinamento, entre um riso e outro e uma emoção despertada, a necessidade de se viver e aproveitar o agora, assim como vivenciamos e aproveitamos a explosão de talento de Marcos Veras, generoso com o público até no título.

Os atores Sávio Moll, Bibiana Rozembaum e Antonio Gonzales revivem personagens eternizados por Tchekhov na peça de Mátei Visniec/Foto: Nando Chagas

Celebrando os 125 anos da primeira encenação de “A Gaivota”, de Anton Tchekhov, a peça adaptada da obra de Mátei Visniec resgata os três personagens do clássico em um decisivo reencontro 15 anos depois do desfecho da história original

Relações humanas carregam em seu cerne níveis de complexidade expressivos. Quando há a interveniência do fator tempo nas mesmas, percebe-se com nitidez seus movimentos de transformação. Cabe assim ao indivíduo, paciente deste processo, adaptar-se aos desafios que lhe são impostos com as novas contingências. Mátei Visniec, dramaturgo romeno naturalizado francês, encenado em todo o mundo com notado prestígio, resolveu imergir no rico universo dramatúrgico de Anton Tchekhov, mais especificamente em um de seus clássicos, “A Gaivota” (comemoram-se os 125 anos de sua primeira encenação), tendo por fim escrever “Nina ou da Fragilidade das Gaivotas Empalhadas”, texto que motivou a atriz e produtora Bibiana Rozembaum e o diretor Fernando Philbert a idealizarem o projeto da peça “Gaivotas” (Fernando o adaptou com sobeja clareza). A história de Mátei já parte de uma premissa assaz original, a de que o escritor Konstantin (Sávio Moll) não teria se suicidado como na trama tchekhoviana, permitindo o seu reencontro 15 anos depois com a mulher que o abandonara, a atriz Nina (Bibiana Rozembaum), e Boris (Antonio Gonzalez), célebre escritor com quem ela fugira. O “acerto de contas emocional” é dissecado de forma instigante e tensa em um único local, a casa de Konstantin, cercada pelo frio impiedoso e pelos ruídos dos animais, onde todos os episódios determinantes do passado ocorreram. Vêm à tona ininterruptamente todos os ressentimentos, mágoas, dúvidas, recalques e desgostos dos personagens. Konstantin possui cicatrizes abertas pelo abandono que sofreu e pela carreira literária que não vingou, Nina atormenta-se com as incertezas acerca de seus reais sentimentos pelo primeiro companheiro e seu talento contestado e Boris se enerva com as suas inquietações políticas, sociais e culturais, sua união malograda com Nina e com o próprio sucesso.

A despeito de tratar das dores e conturbadas relações humanas, “Gaivotas” não deixa de mostrar sinais de esperança e renovação, tanto para a humanidade quanto para a arte

Fernando obteve inegável êxito ao criar a dinâmica das interligações constantes do trio, realçando a importância dos diálogos e solilóquios, silêncios e entradas e saídas dos atores, abrindo um nobre espaço para a delicada e sensível, às vezes soturna, trilha sonora de Marcelo Alonso Neves, pautada no piano e cordas. O elenco revela sintonia e entrosamento, formando um bonito conjunto, em que tanto Sávio Moll (atuação meticulosa, concentrada), Bibiana Rozembaum (com postura corporal destacada, aposta na contenção) e Antonio Gonzalez (numa performance mais insolente, desabrida e solta) se deixam absorver pela ambiência proposta por Visniec. Os protagonistas puseram em prática com sucesso os nortes oferecidos pela diretora de movimento Marina Salomon. O belo cenário de Natália Lana reproduz com inventividade uma cadeia montanhosa ao fundo do palco, valendo-se também de um móbile de acrílico giratório simbolizando um relógio e móveis de madeira que ocupam estrategicamente a cena. Por sinal, o cenário de Natália casa-se de modo admirável com a deslumbrante luz de Vilmar Olos, valorizada pelos matizes elegantes (azul, tons de lilás e rosa) incididos na montanha (os planos abertos com outros mais brandos também foram adotados com inteligência). Outro ponto alto do espetáculo são os figurinos de Marieta Spada, que se utiliza da beleza clássica dos vestidos de Nina, da rusticidade das vestes de Konstantin e da sobriedade com estilo do escritor Boris com sua calça e colete xadrezes. “Gaivotas” é teatro em estado puro, que tem por mérito juntar a contemporaneidade de Mátei Visniec com a majestosa e clássica dramaturgia de Tchekhov. É uma montagem que a despeito de tratar das dores natas às pessoas e de suas conturbadas relações, dos fantasmas do passado em conflito com a urgência e o entendimento do presente, não deixa de mostrar sinais de esperança e renovação para a humanidade e a arte. As gaivotas de “Gaivotas” são vivas, jamais empalhadas, e voam longe.

Vera Holtz em foto de Ale Catan para o espetáculo “Ficções”.

Vera Holtz, atriz, Rodrigo Portella, dramaturgo e encenador, e Felipe Heráclito Lima, idealizador, provam-nos com “Ficções” que não existem obras literárias inadaptáveis para o teatro

Pode ser que algumas obras literárias sejam inadaptáveis para a linguagem teatral. Muito se disse sobre esta impossibilidade quanto a Guimarães Rosa, o que nos foi prontamente negado por Bia Lessa, por exemplo. O mesmo poderia ser dito acerca do best-seller do professor e filósofo israelense Yuval Noah Harari, “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, publicado em 2014, com 23 milhões de livros vendidos. Não para Felipe Heráclito Lima, Rodrigo Portella e Vera Holtz, respectivamente idealizador, dramaturgo e encenador e atriz da arrasadora e inteligentíssima peça “Ficções”.

Com atuação extraordinária de Vera Holtz, o espetáculo usa os pensamentos avançados de Yuval Noah Harari como referenciais para a sua costura narrativa, afastando-se criativamente da estrutura teatral clássica

Rodrigo com muita argúcia decidiu não construir propriamente uma dramaturgia clássica em cima dos avançados pensamentos de Yuval, mas sim tomá-los como referenciais para a costura narrativa do que é apresentado com bastante força criativa ao público (interlocução dramatúrgica de Bianca Ramoneda, Milla Fernandez e Miwa Yanagizawa). O texto, crítico, irônico, contemporâneo, interativo, analítico e sim, despudorado, serve como perfeita plataforma para Vera Holtz, atriz explosiva, carismática, com extraordinária presença de palco, ecoar em grau máximo o seu talento ímpar. Vera, com seu lindo sorriso e belos cabelos longos cor de prata, desdobra-se, tendo como colaboração as irretocáveis preparações corporais de Toni Rodrigues e vocais de Jorge Maya, em vários personagens, como um fóssil, um asno, um trigo ou a mulher de um tal de Harari, sempre com verve afiada, com o objetivo de nos falar sobre o começo do mundo, a evolução das espécies, o surgimento do Homo Sapiens (o único capaz de criar, inventar), a tecnologia, as relações humanas, o futuro do planeta. O que fica claro, respeitando-se a lógica filosófica do escritor, é de que tudo que está ao nosso redor, as crenças, o poder, o dinheiro etc, com exceção dos eventos naturais, não passa de ficções, de invenções do homem.

Em cena ao lado do brilhante músico e performer Federico Puppi, autor da trilha sonora original, com quem forma uma ótima parceria, a protagonista também é cercada por uma equipe técnica de primeira

Desenhando com maestria as cenas está a soberba trilha sonora original do músico e performer Federico Puppi. Sua parceria e entrosamento com Vera é um ponto alto da produção. Sob a sofisticada, rica e bela luz de Paulo César de Medeiros, com realce na sépia, nas sombras, nos amarelados, focos e planos gerais, a intérprete se deleita ao cantar, dançar e conversar diretamente com a plateia. Usando figurinos em tons de chumbo e bege, como vestes e sobretudos, do aclamado João Pimenta, passeando pelo impactante cenário de Bia Junqueira, a artista humaniza o texto de Rodrigo, consagrando em definitivo a excelência cênica de “Ficções”. Categorizar a montagem em questão não é uma tarefa fácil, tamanha a sua complexidade estrutural. Mas posso lhes garantir certamente de que se trata de uma de nossas mais felizes ficções, com o brilhantismo de Vera Holtz cada vez mais real.

Patrícia Selonk, Isabel Pacheco e Felipe Bustamante, da Armazém Cia de Teatro, vivem atores na turbulenta Rússia do início do século XX/Foto: Mauro Kury

A Armazém Cia de Teatro, uma das mais importantes do país, comemora seus 35 anos de atividades montando Guillermo Calderón, renomado dramaturgo e diretor chileno

Quando a arte, a política e a História se entrecruzam em um contexto narrativo teatral os efeitos transformadores desta interseção são tão logo percebidos por quem os testemunha, o público. Este trinômio é muito bem desenvolvido por um dos mais proeminentes dramaturgos e diretores chilenos da atualidade, Guillermo Calderón, em seu texto “Neva”, de 2005, traduzido com notada eficiência por Celso Curi para a mais recente montagem da premiadíssima e celebrada Armazém Cia de Teatro, comemorando 35 anos de serviços prestados às artes no país.

A história se passa na Rússia czarista do início do século XX, confrontando os questionamentos de três atores que ensaiam uma peça enquanto fora do teatro onde estão ocorre uma rebelião popular

Dirigida por Paulo de Moraes com interlocução artística de Jopa Moraes, a peça retrata a convivência da primeira atriz do Teatro de Arte de Moscou, a alemã Olga Knipper (Patrícia Selonk), viúva do grande dramaturgo Anton Tchekhov, e de mais dois atores, Masha (Isabel Pacheco) e Aleko (Felipe Bustamante) durante os ensaios de “O Jardim das Cerejeiras” em um teatro em São Petersburgo, capital do Império Russo, em 1905. Contudo, enquanto Masha e Aleko estão às voltas com as obsessões emocionais de Olga quanto à encenação dos momentos finais de Tchekhov, lá fora manifestantes que decidiram entregar ao czar uma petição com reivindicações sociais são massacrados pelas tropas imperiais, o que se conhece como o “Domingo Sangrento”. Os três atores são levados a uma série de digressões acerca de vários temas com vieses políticos, artísticos e humanos, como a relevância ou não do fazer teatral perante uma realidade injusta e desigual para a sociedade. Todos esses elementos são ricamente encadeados por Calderón em sua estrutura textual, onde não faltam verdades ácidas, desconcertantes, e um humor em sua essência particular.

Direção com marcações requintadas de Paulo de Moraes, música potente de Ricco Viana, luz valiosa de Maneco Quinderé e atuação arrebatadora de Patrícia Selonk obrigam o público a assistir a “Neva”

Paulo de Moraes, também responsável pela instalação cênica, explora com requinte as triangulações das marcações e o proscênio. A ideia das interlocuções por meio de microfones é criativa e producente, denotando em alguns momentos impressões não naturalistas. A música poderosa e envolvente de Ricco Viana assume papel primordial na obra, assim como a valiosa luz de Maneco Quinderé, que aproveita as possibilidades estéticas de três luminárias suspensas, além de spots laterais. Os figurinos de Carol Lobato alternam-se entre a leveza de um collant com saia longa vistos em Olga e o estilo de suspensórios utilizados por Aleko. Patrícia Selonk nos entrega uma atuação arrebatadora, percorrendo trilhas difíceis do alto drama com pausas estratégicas para o cômico. Patrícia, junto com Ana Lima, encarregou-se da preparação corporal. Isabel Pacheco nos garante cenas de vultoso impacto e Felipe Bustamante se engaja com vitalidade às experiências de Aleko.
Assistir a “Neva” é preciso.

Sylvia Bandeira e Mauricio Baduh oferecem ao público o vasto repertório de sucessos do cantor e compositor francês/Foto: Luciana Mesquita

Idealizada por Sylvia Bandeira e escrita por Saulo Sisnando, a encantadora montagem musical faz uma associação entre as lindas canções românticas de Charles Aznavour e as histórias narradas pelos seus personagens

Quando se pensa em amor, algo etéreo, abstrato, indefinível, e quando se pensa no quanto a música pode bem traduzi-lo, torna-se inescapável associá-lo a um dos maiores intérpretes do cancioneiro romântico francês e mundial do século XX, Charles Aznavour. Como o amor permite muitas interpretações e óticas, sendo algo em sua essência mágico, o mesmo nos oferece a possiblidade de recriá-lo, inventá-lo, obedecendo à nossa farta imaginação. Idealizado por Sylvia Bandeira e escrito por Saulo Sisnando, o encantador espetáculo musical “Charles Aznavour – Um Romance Inventado” vale-se com distinta propriedade dessas premissas para se estruturar dramaturgicamente. A narrativa nos apresenta Isabel (Sylvia Bandeira), uma atriz que já teve seus momentos de glória e hoje convive sem melancolia com a solidão e as lembranças. Isabel recebe a visita de Heitor (Mauricio Baduh), um jornalista independente com personalidade retraída que deseja entrevistá-la, sobretudo com a finalidade de esmiuçar o romance que tivera com o grande “chansonnier”. Há entre eles algo em comum com relação a Aznavour. Heitor diz ser seu filho. A partir daí, ambos confidenciam um ao outro episódios de suas vidas que acabam por fortalecer o sentimento imperante nas canções extraordinariamente lindas do artista nascido em Paris.

Sylvia Bandeira e Mauricio Baduh brilham em cena ao dar voz aos clássicos do cantor e compositor francês na peça dirigida com notável êxito por Daniel Dias da Silva

O autor Saulo Sisnando costura com admirável fluidez toda a gama de ficções que perpassam a montagem, alcançando a vitória ao fisgar o público que de pronto simpatiza de modo irremediável pelo casal. Saulo inseriu em seu texto com muita fineza recortes de humor, garantindo surpresas ao final. O diretor Daniel Dias da Silva logrou com notável êxito a comunhão equilibrada entre a história e os sucessos cantados magnificamente pela dupla, sendo que estes ocupam lugares contextualizados, fato meritório. Sylvia Bandeira, atriz bela e talentosa, com sua voz marcante e sedutora, impõe-se naturalmente no palco, exibindo sua sintonia com a arte teatral. Ao cantar, transmite-nos com plenitude e potência as emoções contidas nas músicas do também compositor e ator. Mauricio Baduh faz uma composição bastante segura e sóbria, impressionando a plateia com seu vozeirão perfeito. Tanto Sylvia quanto Mauricio nos brindam com um francês impecável, além de duetos emocionantes. Estão presentes clássicos que ultrapassam gerações, como “La Bohème”, “She” e “Que Ces’t Triste Venise”. Liliane Secco, magistral na direção musical e arranjos, ainda nos oferta todo o seu brilho como musicista ao acompanhar ao piano o também brilhante violinista Ulisses Nogueira. Felício Mafra se encarrega de iluminar a peça com inspirada elegância, conferindo-lhe elementos suaves nas cores lilás, violeta, azul e vermelho. Felício em nenhum momento carrega nos tons, até mesmo os planos mais abertos e focos se sobressaem pela bonita e calculada sutileza. Gisele Batalha, responsável pelos cenário e figurinos, faz uma acertada escolha tanto em um quanto no outro. O cenário, que corresponde à casa de Isabel, um ambiente extremamente aconchegante, destaca-se pelo capricho e bom gosto com que foi imaginado, apostando as suas fichas no clássico, visto em móveis de madeira, abajures e chaise longue. Os figurinos atendem com coerência às situações vividas pelos personagens e aos seus perfis, logicamente, que vão do preto com brilho ao blaizer xadrez. Marluce Medeiros mostra vasta eficiência na direção de movimento, provada em instantes graciosos de dança do casal e na maneira como os dois se posicionam e se mexem, inclusive com a utilização eloquente dos braços, ao interpretarem as canções. “Charles Aznavour – Um Romance Inventado” é uma obra que exalta o amor, todas as formas de amor, reais e inventadas. Charles Aznavour certamente aprovaria.