Blog do Paulo Ruch

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“Vocês Foram Maravilhosos” é o terceiro espetáculo solo de Marcos Veras/Foto: Divulgação

Em “Vocês Foram Maravilhosos”, seu terceiro espetáculo solo, Marcos Veras, de forma corajosa, revela ao público momentos bastante pessoais, que vão do drama ao humor absoluto, sem, no entanto, preterir a leveza

Despir-se para o outro no que concerne a fatos de cunho pessoal impõe doses de coragem e desprendimento. Quando se trata de um artista consagrado, inclusive no humor, o desafio individual gerado avoluma-se. Este não intimidou de forma alguma o carioca criado no bairro de Santo Cristo filho de pai comerciante Marcos Veras, um nome unanimemente respeitado pelos seus pares de classe. O ator, comediante, apresentador e roteirista foi ainda mais longe ao colocar no papel não só passagens de sua carreira em seu terceiro espetáculo solo, com direção de Leandro Muniz, “Vocês Foram Maravilhosos”, mas também dramas bastante doídos os quais viveu, como as perdas de seu pai e irmã em anos seguidos. Tal momento revela a enorme habilidade de Marcos em não tornar a peça pesada tampouco piegas, transformando os episódios contados em recortes comoventes e emocionantes, ostentando assim a sua sensibilidade dramatúrgica. Ao abordá-los, o intérprete lança com muita delicadeza pequenas notas de comicidade. Outros tantos assuntos foram compartilhados por Veras, sempre eivados de seus apartes espirituosos e inteligentes, como a sua infância, a iniciação sexual, o começo na profissão, os célebres colegas que lhe foram importantes, o sucesso na TV (com “Zorra Total”, por exemplo) e no teatro (o fenômeno do stand-up “Falando a Veras”), a paternidade (com suas alegrias e privações) e sua relação afetuosa e divertida com a mãe. Além disso, críticas sociais, econômicas e comportamentais não foram dispensadas. A montagem que, segundo o próprio ator, possui várias classificações, como o “bio drama”, vale-se de sua espantosa comunicabilidade a fim de se atingir a maior interação possível com os espectadores, o que de fato acontece, vista na conversa direta, espontânea e engraçada com aqueles, como se fosse uma “terapia coletiva”. As impagáveis imitações ou personificações de celebridades não poderiam ficar de fora, garantindo sonoras gargalhadas e mostrando a sua versatilidade vocal.

Uma das muitas lições que nos são passadas pela peça cuja direção respeita o timing exigido é a de que devemos viver e valorizar sempre o agora

Leandro Muniz dirige com sabedoria o aparentemente indomável artista que tem em mãos, deixando-o à vontade na ribalta ou fora dela, ou se utilizando dos recursos disponíveis no cenário. Leandro conduz a encenação com o timing que ela exige, honrando as diversas fases que a compõem e categorias em que se inclui. Merecem menção o elegante figurino que Marcos traja (um conjunto de blazer azul com tênis branco) e a bonita luz com o aproveitamento de inúmeras possibilidades (cores feéricas, predominância do azul, do rosa e das luzes branco/amareladas, além dos planos gerais).”Vocês Foram Maravilhosos” nos deixa como ensinamento, entre um riso e outro e uma emoção despertada, a necessidade de se viver e aproveitar o agora, assim como vivenciamos e aproveitamos a explosão de talento de Marcos Veras, generoso com o público até no título.

Os atores Sávio Moll, Bibiana Rozembaum e Antonio Gonzales revivem personagens eternizados por Tchekhov na peça de Mátei Visniec/Foto: Nando Chagas

Celebrando os 125 anos da primeira encenação de “A Gaivota”, de Anton Tchekhov, a peça adaptada da obra de Mátei Visniec resgata os três personagens do clássico em um decisivo reencontro 15 anos depois do desfecho da história original

Relações humanas carregam em seu cerne níveis de complexidade expressivos. Quando há a interveniência do fator tempo nas mesmas, percebe-se com nitidez seus movimentos de transformação. Cabe assim ao indivíduo, paciente deste processo, adaptar-se aos desafios que lhe são impostos com as novas contingências. Mátei Visniec, dramaturgo romeno naturalizado francês, encenado em todo o mundo com notado prestígio, resolveu imergir no rico universo dramatúrgico de Anton Tchekhov, mais especificamente em um de seus clássicos, “A Gaivota” (comemoram-se os 125 anos de sua primeira encenação), tendo por fim escrever “Nina ou da Fragilidade das Gaivotas Empalhadas”, texto que motivou a atriz e produtora Bibiana Rozembaum e o diretor Fernando Philbert a idealizarem o projeto da peça “Gaivotas” (Fernando o adaptou com sobeja clareza). A história de Mátei já parte de uma premissa assaz original, a de que o escritor Konstantin (Sávio Moll) não teria se suicidado como na trama tchekhoviana, permitindo o seu reencontro 15 anos depois com a mulher que o abandonara, a atriz Nina (Bibiana Rozembaum), e Boris (Antonio Gonzalez), célebre escritor com quem ela fugira. O “acerto de contas emocional” é dissecado de forma instigante e tensa em um único local, a casa de Konstantin, cercada pelo frio impiedoso e pelos ruídos dos animais, onde todos os episódios determinantes do passado ocorreram. Vêm à tona ininterruptamente todos os ressentimentos, mágoas, dúvidas, recalques e desgostos dos personagens. Konstantin possui cicatrizes abertas pelo abandono que sofreu e pela carreira literária que não vingou, Nina atormenta-se com as incertezas acerca de seus reais sentimentos pelo primeiro companheiro e seu talento contestado e Boris se enerva com as suas inquietações políticas, sociais e culturais, sua união malograda com Nina e com o próprio sucesso.

A despeito de tratar das dores e conturbadas relações humanas, “Gaivotas” não deixa de mostrar sinais de esperança e renovação, tanto para a humanidade quanto para a arte

Fernando obteve inegável êxito ao criar a dinâmica das interligações constantes do trio, realçando a importância dos diálogos e solilóquios, silêncios e entradas e saídas dos atores, abrindo um nobre espaço para a delicada e sensível, às vezes soturna, trilha sonora de Marcelo Alonso Neves, pautada no piano e cordas. O elenco revela sintonia e entrosamento, formando um bonito conjunto, em que tanto Sávio Moll (atuação meticulosa, concentrada), Bibiana Rozembaum (com postura corporal destacada, aposta na contenção) e Antonio Gonzalez (numa performance mais insolente, desabrida e solta) se deixam absorver pela ambiência proposta por Visniec. Os protagonistas puseram em prática com sucesso os nortes oferecidos pela diretora de movimento Marina Salomon. O belo cenário de Natália Lana reproduz com inventividade uma cadeia montanhosa ao fundo do palco, valendo-se também de um móbile de acrílico giratório simbolizando um relógio e móveis de madeira que ocupam estrategicamente a cena. Por sinal, o cenário de Natália casa-se de modo admirável com a deslumbrante luz de Vilmar Olos, valorizada pelos matizes elegantes (azul, tons de lilás e rosa) incididos na montanha (os planos abertos com outros mais brandos também foram adotados com inteligência). Outro ponto alto do espetáculo são os figurinos de Marieta Spada, que se utiliza da beleza clássica dos vestidos de Nina, da rusticidade das vestes de Konstantin e da sobriedade com estilo do escritor Boris com sua calça e colete xadrezes. “Gaivotas” é teatro em estado puro, que tem por mérito juntar a contemporaneidade de Mátei Visniec com a majestosa e clássica dramaturgia de Tchekhov. É uma montagem que a despeito de tratar das dores natas às pessoas e de suas conturbadas relações, dos fantasmas do passado em conflito com a urgência e o entendimento do presente, não deixa de mostrar sinais de esperança e renovação para a humanidade e a arte. As gaivotas de “Gaivotas” são vivas, jamais empalhadas, e voam longe.

Vera Holtz em foto de Ale Catan para o espetáculo “Ficções”.

Vera Holtz, atriz, Rodrigo Portella, dramaturgo e encenador, e Felipe Heráclito Lima, idealizador, provam-nos com “Ficções” que não existem obras literárias inadaptáveis para o teatro

Pode ser que algumas obras literárias sejam inadaptáveis para a linguagem teatral. Muito se disse sobre esta impossibilidade quanto a Guimarães Rosa, o que nos foi prontamente negado por Bia Lessa, por exemplo. O mesmo poderia ser dito acerca do best-seller do professor e filósofo israelense Yuval Noah Harari, “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, publicado em 2014, com 23 milhões de livros vendidos. Não para Felipe Heráclito Lima, Rodrigo Portella e Vera Holtz, respectivamente idealizador, dramaturgo e encenador e atriz da arrasadora e inteligentíssima peça “Ficções”.

Com atuação extraordinária de Vera Holtz, o espetáculo usa os pensamentos avançados de Yuval Noah Harari como referenciais para a sua costura narrativa, afastando-se criativamente da estrutura teatral clássica

Rodrigo com muita argúcia decidiu não construir propriamente uma dramaturgia clássica em cima dos avançados pensamentos de Yuval, mas sim tomá-los como referenciais para a costura narrativa do que é apresentado com bastante força criativa ao público (interlocução dramatúrgica de Bianca Ramoneda, Milla Fernandez e Miwa Yanagizawa). O texto, crítico, irônico, contemporâneo, interativo, analítico e sim, despudorado, serve como perfeita plataforma para Vera Holtz, atriz explosiva, carismática, com extraordinária presença de palco, ecoar em grau máximo o seu talento ímpar. Vera, com seu lindo sorriso e belos cabelos longos cor de prata, desdobra-se, tendo como colaboração as irretocáveis preparações corporais de Toni Rodrigues e vocais de Jorge Maya, em vários personagens, como um fóssil, um asno, um trigo ou a mulher de um tal de Harari, sempre com verve afiada, com o objetivo de nos falar sobre o começo do mundo, a evolução das espécies, o surgimento do Homo Sapiens (o único capaz de criar, inventar), a tecnologia, as relações humanas, o futuro do planeta. O que fica claro, respeitando-se a lógica filosófica do escritor, é de que tudo que está ao nosso redor, as crenças, o poder, o dinheiro etc, com exceção dos eventos naturais, não passa de ficções, de invenções do homem.

Em cena ao lado do brilhante músico e performer Federico Puppi, autor da trilha sonora original, com quem forma uma ótima parceria, a protagonista também é cercada por uma equipe técnica de primeira

Desenhando com maestria as cenas está a soberba trilha sonora original do músico e performer Federico Puppi. Sua parceria e entrosamento com Vera é um ponto alto da produção. Sob a sofisticada, rica e bela luz de Paulo César de Medeiros, com realce na sépia, nas sombras, nos amarelados, focos e planos gerais, a intérprete se deleita ao cantar, dançar e conversar diretamente com a plateia. Usando figurinos em tons de chumbo e bege, como vestes e sobretudos, do aclamado João Pimenta, passeando pelo impactante cenário de Bia Junqueira, a artista humaniza o texto de Rodrigo, consagrando em definitivo a excelência cênica de “Ficções”. Categorizar a montagem em questão não é uma tarefa fácil, tamanha a sua complexidade estrutural. Mas posso lhes garantir certamente de que se trata de uma de nossas mais felizes ficções, com o brilhantismo de Vera Holtz cada vez mais real.

Patrícia Selonk, Isabel Pacheco e Felipe Bustamante, da Armazém Cia de Teatro, vivem atores na turbulenta Rússia do início do século XX/Foto: Mauro Kury

A Armazém Cia de Teatro, uma das mais importantes do país, comemora seus 35 anos de atividades montando Guillermo Calderón, renomado dramaturgo e diretor chileno

Quando a arte, a política e a História se entrecruzam em um contexto narrativo teatral os efeitos transformadores desta interseção são tão logo percebidos por quem os testemunha, o público. Este trinômio é muito bem desenvolvido por um dos mais proeminentes dramaturgos e diretores chilenos da atualidade, Guillermo Calderón, em seu texto “Neva”, de 2005, traduzido com notada eficiência por Celso Curi para a mais recente montagem da premiadíssima e celebrada Armazém Cia de Teatro, comemorando 35 anos de serviços prestados às artes no país.

A história se passa na Rússia czarista do início do século XX, confrontando os questionamentos de três atores que ensaiam uma peça enquanto fora do teatro onde estão ocorre uma rebelião popular

Dirigida por Paulo de Moraes com interlocução artística de Jopa Moraes, a peça retrata a convivência da primeira atriz do Teatro de Arte de Moscou, a alemã Olga Knipper (Patrícia Selonk), viúva do grande dramaturgo Anton Tchekhov, e de mais dois atores, Masha (Isabel Pacheco) e Aleko (Felipe Bustamante) durante os ensaios de “O Jardim das Cerejeiras” em um teatro em São Petersburgo, capital do Império Russo, em 1905. Contudo, enquanto Masha e Aleko estão às voltas com as obsessões emocionais de Olga quanto à encenação dos momentos finais de Tchekhov, lá fora manifestantes que decidiram entregar ao czar uma petição com reivindicações sociais são massacrados pelas tropas imperiais, o que se conhece como o “Domingo Sangrento”. Os três atores são levados a uma série de digressões acerca de vários temas com vieses políticos, artísticos e humanos, como a relevância ou não do fazer teatral perante uma realidade injusta e desigual para a sociedade. Todos esses elementos são ricamente encadeados por Calderón em sua estrutura textual, onde não faltam verdades ácidas, desconcertantes, e um humor em sua essência particular.

Direção com marcações requintadas de Paulo de Moraes, música potente de Ricco Viana, luz valiosa de Maneco Quinderé e atuação arrebatadora de Patrícia Selonk obrigam o público a assistir a “Neva”

Paulo de Moraes, também responsável pela instalação cênica, explora com requinte as triangulações das marcações e o proscênio. A ideia das interlocuções por meio de microfones é criativa e producente, denotando em alguns momentos impressões não naturalistas. A música poderosa e envolvente de Ricco Viana assume papel primordial na obra, assim como a valiosa luz de Maneco Quinderé, que aproveita as possibilidades estéticas de três luminárias suspensas, além de spots laterais. Os figurinos de Carol Lobato alternam-se entre a leveza de um collant com saia longa vistos em Olga e o estilo de suspensórios utilizados por Aleko. Patrícia Selonk nos entrega uma atuação arrebatadora, percorrendo trilhas difíceis do alto drama com pausas estratégicas para o cômico. Patrícia, junto com Ana Lima, encarregou-se da preparação corporal. Isabel Pacheco nos garante cenas de vultoso impacto e Felipe Bustamante se engaja com vitalidade às experiências de Aleko.
Assistir a “Neva” é preciso.

Sylvia Bandeira e Mauricio Baduh oferecem ao público o vasto repertório de sucessos do cantor e compositor francês/Foto: Luciana Mesquita

Idealizada por Sylvia Bandeira e escrita por Saulo Sisnando, a encantadora montagem musical faz uma associação entre as lindas canções românticas de Charles Aznavour e as histórias narradas pelos seus personagens

Quando se pensa em amor, algo etéreo, abstrato, indefinível, e quando se pensa no quanto a música pode bem traduzi-lo, torna-se inescapável associá-lo a um dos maiores intérpretes do cancioneiro romântico francês e mundial do século XX, Charles Aznavour. Como o amor permite muitas interpretações e óticas, sendo algo em sua essência mágico, o mesmo nos oferece a possiblidade de recriá-lo, inventá-lo, obedecendo à nossa farta imaginação. Idealizado por Sylvia Bandeira e escrito por Saulo Sisnando, o encantador espetáculo musical “Charles Aznavour – Um Romance Inventado” vale-se com distinta propriedade dessas premissas para se estruturar dramaturgicamente. A narrativa nos apresenta Isabel (Sylvia Bandeira), uma atriz que já teve seus momentos de glória e hoje convive sem melancolia com a solidão e as lembranças. Isabel recebe a visita de Heitor (Mauricio Baduh), um jornalista independente com personalidade retraída que deseja entrevistá-la, sobretudo com a finalidade de esmiuçar o romance que tivera com o grande “chansonnier”. Há entre eles algo em comum com relação a Aznavour. Heitor diz ser seu filho. A partir daí, ambos confidenciam um ao outro episódios de suas vidas que acabam por fortalecer o sentimento imperante nas canções extraordinariamente lindas do artista nascido em Paris.

Sylvia Bandeira e Mauricio Baduh brilham em cena ao dar voz aos clássicos do cantor e compositor francês na peça dirigida com notável êxito por Daniel Dias da Silva

O autor Saulo Sisnando costura com admirável fluidez toda a gama de ficções que perpassam a montagem, alcançando a vitória ao fisgar o público que de pronto simpatiza de modo irremediável pelo casal. Saulo inseriu em seu texto com muita fineza recortes de humor, garantindo surpresas ao final. O diretor Daniel Dias da Silva logrou com notável êxito a comunhão equilibrada entre a história e os sucessos cantados magnificamente pela dupla, sendo que estes ocupam lugares contextualizados, fato meritório. Sylvia Bandeira, atriz bela e talentosa, com sua voz marcante e sedutora, impõe-se naturalmente no palco, exibindo sua sintonia com a arte teatral. Ao cantar, transmite-nos com plenitude e potência as emoções contidas nas músicas do também compositor e ator. Mauricio Baduh faz uma composição bastante segura e sóbria, impressionando a plateia com seu vozeirão perfeito. Tanto Sylvia quanto Mauricio nos brindam com um francês impecável, além de duetos emocionantes. Estão presentes clássicos que ultrapassam gerações, como “La Bohème”, “She” e “Que Ces’t Triste Venise”. Liliane Secco, magistral na direção musical e arranjos, ainda nos oferta todo o seu brilho como musicista ao acompanhar ao piano o também brilhante violinista Ulisses Nogueira. Felício Mafra se encarrega de iluminar a peça com inspirada elegância, conferindo-lhe elementos suaves nas cores lilás, violeta, azul e vermelho. Felício em nenhum momento carrega nos tons, até mesmo os planos mais abertos e focos se sobressaem pela bonita e calculada sutileza. Gisele Batalha, responsável pelos cenário e figurinos, faz uma acertada escolha tanto em um quanto no outro. O cenário, que corresponde à casa de Isabel, um ambiente extremamente aconchegante, destaca-se pelo capricho e bom gosto com que foi imaginado, apostando as suas fichas no clássico, visto em móveis de madeira, abajures e chaise longue. Os figurinos atendem com coerência às situações vividas pelos personagens e aos seus perfis, logicamente, que vão do preto com brilho ao blaizer xadrez. Marluce Medeiros mostra vasta eficiência na direção de movimento, provada em instantes graciosos de dança do casal e na maneira como os dois se posicionam e se mexem, inclusive com a utilização eloquente dos braços, ao interpretarem as canções. “Charles Aznavour – Um Romance Inventado” é uma obra que exalta o amor, todas as formas de amor, reais e inventadas. Charles Aznavour certamente aprovaria.

Otavio Augusto, comemorando 60 anos de carreira, interpreta um coronel aposentado e viúvo em confronto com os seus quatro filhos/Foto: Elisa Mendes

A envolvente e atualíssima peça de Gustavo Pinheiro serve como plataforma para que se discutam acidamente temas comuns a um pai moribundo atuante na ditadura militar e seus filhos

Quando um membro que assume papel de liderança em um núcleo familiar adoece a ponto de ser confinado em um quarto de hospital, poucos caminhos se apresentam para os seus entes próximos, a conciliação nesta contingência delicada ou a altercação generalizada com a rememoração de episódios marcantes. No caso da envolvente e atualíssima peça de Gustavo Pinheiro “A Tropa”, com direção de Cesar Augusto, evidentemente a segunda opção é eleita como uma rica plataforma de discussões, argumentações ácidas de lado a lado, enfim, um acerto de contas dilacerante entre o pai moribundo, um coronel viúvo aposentado atuante na ditadura militar e seus quatro filhos, cada um deles com suas questões mal resolvidas, passíveis do julgamento do outro.

Entre o drama e o humor, Otavio Augusto, numa marcação de difícil execução, prova com o seu talento e personalidade por que é um dos melhores e mais respeitados intérpretes do país

Temas como homossexualismo, dependência química, corrupção e correntes político/ideológicas são trazidas à tona com acentuada propriedade por Gustavo, autor com notória intimidade com a arquitetura dramatúrgica. Um dos muitos méritos de seu texto é a inserção de camadas de humor que em momento algum anulam a dramaticidade bem estruturada. Colaboradora inconteste para o resultado exitoso da montagem que estreou em 2016 está a esmerada direção de Cesar Augusto, um estudioso contumaz das sedutoras engrenagens teatrais. Cesar se alinha com sucesso às proposições cênicas do texto ao preencher todos os espaços (físicos e imateriais) possíveis, venerando silêncios e solilóquios relevantes. Otavio Augusto como o coronel reproduz com fidedignidade todo o sobejo talento e personalidade que o fizeram um dos melhores e mais respeitados intérpretes do país. Numa marcação de difícil execução, Otavio coloca toda a sua expressividade emotiva em sua face e braços (seja na comicidade ou no drama o artista extrapola os limites do admirável). Seus filhos Humberto, Artur, Ernesto e João Baptista são defendidos com verdade e valorosa compreensão de suas missões respectivamente por Alexandre Menezes, Daniel Villas (substituindo Alexandre Galindo), André Rosa e Daniel Marano. Suas interações e com Otavio são genuínas e potentes. A cenografia de Cesar Augusto abraça a esperada assepsia hospitalar na qual se sobressaem o verde e o branco (utilizam-se módulos que fazem as vezes de móveis, além da cama médica). Os figurinos de Ticiana Passos desenham com lealdade os perfis dos personagens (adotam-se estilos despojados e sóbrios). E a luz de Adriana Ortiz ganha o público pela sua coerência e beleza, com planos abertos que atendem a diferentes gradações e focos precisos e calculados. “A Tropa” é uma obra robusta e necessária que enfrenta e disseca as hipocrisias de nossa sociedade, combatendo-as onde geralmente nascem, os nossos próprios lares.

Eliane Giardini e Marcos Caruso interpretam respectivamente Roberta e Mariano, um casal que após quatro décadas de convivência decide se separar/Foto: Eduardo Chamon

Leilah Assumpção, autora do clássico teatral “Fala Baixo Senão Eu Grito”, usa a sua narrativa como palco para discussões sobre etarismo, sexo na maturidade e machismo

Falar dramaturgicamente sobre o processo de envelhecimento do indivíduo sem resvalar para a depreciação gratuita requer profunda delicadeza e olhar sensível de quem o faz. Sendo assim, não é de se espantar que a autora do texto da comovente, humanista e engraçada peça “Intimidade Indecente”, com dois gigantes intérpretes queridíssimos no país, Eliane Giardini e Marcos Caruso, tenha a valiosa assinatura de Leilah Assumpção, dona do clássico teatral “Fala Baixo Senão Eu Grito”. Leilah nos conta de forma bastante espontânea e próxima a trajetória de um casal, Roberta e Mariano, que decide se separar após 40 anos de vida em comum quando ambos já passaram dos 60 anos. A questão chave é que embora um e outro tomem rumos diferentes, o forte laço que os une nunca se rompe. A dramaturga usa com inteligência e espirituosidade a sua narrativa como palco para discussões sobre etarismo, sexo na maturidade, machismo, outras possibilidades de afeto, abandono familiar e perdas.

A direção de Guilherme Leme Garcia, confiando nos talentos de Eliane Giardini e Marcos Caruso, permite-lhes uma bem-vinda liberdade

Guilherme Leme Garcia, o diretor, ciente da potência em cena que são os seus atores, assumindo total confiança em seus talentos, permite-lhes uma bem-vinda liberdade, usando com equilíbrio o centro da ribalta e seu proscênio com belos momentos. Eliane Giardini e Marcos Caruso são artistas superlativos em sua essência, grandiosos em tudo o que fazem. Nos embates entre seus personagens, “bate-bolas” memoráveis, alcançam os mesmos níveis de graça e dramaticidade em frações de segundo para o delírio da plateia, que acompanha com sincera empatia os caminhos e descaminhos desse casal. Toni Rodrigues, diretor de movimento, realiza com notável credibilidade a transformação postural de Eliane e Marcos, que dispensam quaisquer outros recursos facilitadores. Aurora dos Campos, consagrada cenógrafa, sabedora da natureza do espetáculo (um espetáculo de e para atores), aposta na unicidade de um sofá claro. A luz de Tomás Ribas é precisa, cuidadosa, bonita e elegante, dando espaço a focos intimistas e a um inebriante azul. Aline Meyer, diretora musical, cumpre com êxito o seu papel de embelezar a montagem com arranjos ao piano. “Intimidade Indecente” é uma irresistível e tocante comédia que reafirma a importância de Leilah Assumpção como autora teatral e Eliane Giardini e Marcos Caruso como atores. Esta é uma verdade pública e decente.

Diogo Vilela revive o grande artista niteroiense que imortalizou canções como “Conceição”/Foto: Victor Zorzal

A brilhante trajetória de Diogo Vilela nos palcos está atrelada às suas memoráveis homenagens a Cauby Peixoto

Quando se pensa na brilhante trajetória de Diogo Vilela pelos palcos é impossível não associá-la às suas memoráveis homenagens a um de nossos maiores cantores, Cauby Peixoto. Baseado no repertório de “Cauby, Cauby!” (2006), o talentosíssimo intérprete também da TV e do cinema, revive em seu mais novo espetáculo musical a voz de “Conceição”, “Cauby, Uma Paixão”, com roteiro de Flavio Marinho e direção de Marco Aurélio Monteiro. Marco realiza com maestria um amálgama perfeito entre dramaturgia e show, tornando a montagem infalivelmente encantadora e emocionante. Flavio Marinho, um craque no manejo das palavras, incrementa o seu texto com uma fina ironia o adaptando aos tempos atuais, abordando, por exemplo, as fake news. Um dos grandes méritos da obra é saber intercalar os impecáveis números musicais com as cenas em que Diogo, como Cauby, conversa com o público usando todo o seu carisma sobre passagens da vida e carreira do artista, como a estada nos Estados Unidos.

Diogo Vilela arrebata o público com sua voz potente e a sua dedicação a nos aproximar ao máximo da figura do artista niteroiense

Diogo Vilela, com ótimo visagismo de Mona Magalhães, trajando o brilho inconfundível do ídolo (acervo pessoal de Cauby), certifica-nos sobre a completude de seu talento, arrebatando o público com sua voz potente, afinada, com extensões e graves arrepiantes. O ator se ateve a todos os detalhes que pudessem nos aproximar ao máximo do cantor niteroiense, como as posições e deslocamentos das mãos, além da semelhança incrível com as notas da sua entonação vocal/musical.

“Cauby, Uma Paixão” é uma lindíssima e tocante encenação que mostra o quanto a musicalidade dos nossos atores deve ser reverenciada

Cabe destacar o virtuosismo dos três músicos que o acompanham: Roberto Bahal no piano, Helbe Machado na bateria e Fernando Trocado no sax/sopros. A charmosa e envolvente direção de arte de Ronald Teixeira se soma à inebriante luz de Daniela Sanchez que nos transporta para o universo mágico do homenageado. Liliane Secco se encarrega com primor da direção musical, que inclui desde o clássico “Bastidores” passando pela bossanovista “Samba do Avião” até standards como “New York, New York”. “Cauby, Uma Paixão”, lindíssima e tocante encenação, mostra-nos o quanto o nosso país é musical e o quanto a musicalidade dos nossos atores deve ser reverenciada. Não só Cauby Peixoto é uma paixão. Diogo Vilela também.

Vera Fischer, Mouhamed Harfouch e Larissa Maciel estrelam a comédia dirigida por Tadeu Aguiar/Foto: Carlos Costa


O dramaturgo Eduardo Bakr consegue reunir com sucesso em sua comédia inédita doses de drama e suspense com reviravoltas surpreendentes

O público brasileiro de teatro ansiava pela sua volta. O mesmo público ansiava por leveza nos palcos nesses tempos nada leves. E é justamente a leveza aliada a um humor farsesco burilado com pitadas de drama num contexto de suspense com múltiplas reviravoltas que a deliciosa comédia de Eduardo Bakr “Quando Eu For Mãe Quero Amar Desse Jeito” oferta aos espectadores. A muitíssimo bem alinhavada dramaturgia se concentra na figura de Dulce Carmona (Vera Fischer), uma mãe castradora, elitista, em declínio financeiro e preconceituosa, confrontada com o casamento próximo de seu filho inconstante e um tanto infantilizado Lauro (Mouhamed Harfouch) com a fútil e aparentemente superficial Gardênia (Larissa Maciel), herdeira de um império dos parafusos, porcas e arruelas. A partir do primeiro encontro entre as futuras sogra e nora regado a trocas de farpas impiedosas para o desespero histriônico de Lauro até a efetivação do matrimônio, a montagem ganha um fôlego crescente com as situações apresentadas, tendo como efeito mais do que positivo o interesse da plateia pelo desfecho imprevisível.

A direção inteligente e fluida de Tadeu Aguiar permite que seu elenco de grandes atores, Vera Fischer, Larissa Maciel e Mouhamed Harfouch preencham ricamente suas cenas

Além do mérito dramatúrgico e da direção, a produção pode se jactar em ter em seu elenco três grandes intérpretes que são sobejos em seus recursos cênicos. A direção de Tadeu Aguiar, inteligente e fluida, permite que o texto siga um curso vitorioso, deixando os atores preencherem com riqueza a cena. Vera Fischer, sempre diva, compõe com força, sedução e sarcasmo a sua irresistível mãe. Vera é Vera, encanta mesmo sem querer. Larissa Maciel, esbanjando beleza, prova ser uma atriz com talento de sobra para se embrenhar com segurança no traiçoeiro terreno da comédia. Já Mouhamed Harfouch, um artista fascinante e carismático, entrega-se de tal forma a todas as possibilidades corporais, incluindo sua fala construída, sem rede de proteção, que só nos resta aplaudi-lo. Um ator de mãos dadas com a comicidade.

Com equipe técnica de primeira, “Quando Eu For Mãe Quero Amar Desse Jeito” nos faz lembrar do sentimento que devemos ter pelo teatro

A trilha sonora original coube à respeitada Liliane Secco, que cria arranjos ao piano e acordes que remetem ao suspense. O admirável cenário de Natália Lana prima pela grandiloquência, com escadaria, cortinas e lustre portentosos. Os figurinos de Ney Madeira e Dani Vidal ostentam elegância e coerência. O design de luz de Daniela Sanchez é lindamente balanceado, aproveitando os matizes que lhe são viáveis. “Quando Eu For Mãe Quero Amar Desse Jeito” é uma obra adoravelmente divertida e sensível que nos faz lembrar depois de tanto tempo que devemos voltar a amar o teatro sempre “desse jeito”.

Em uma das fábulas morais de “Tudo” Vladimir Brichta e Julia Lemmertz, ele um artista plástico e ela uma servidora de repartição pública/Foto: Flavia Canavarro

Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Brichta, Claudio Mendes e Márcio Vito interpretam os personagens ou mais de um das três fábulas morais que compõem a narrativa da peça

A obra do argentino Rafael Spregelburd levada aos palcos pelas mãos habilidosas e olhar crítico do diretor, tradutor e adaptador Guilherme Weber traz à baila temas que nos são muito caros, além de universais e atemporais, a burocracia no Estado, a arte que invariavelmente se transforma em negócio e a religião que se torna superstição. Topou se entregar neste promissor debate cênico um time de atores de alto calibre interpretativo que se equivalem no rico despudor de contar ao público em forma de fábula moral todas as incongruências e contrariedades inerentes aos assuntos em pauta: Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Brichta, Claudio Mendes e Márcio Vito. Dividida em três situações e ambientes, uma repartição pública, uma festa de Natal e a casa de um casal, com a presença de um narrador, a peça não se furta a adotar um escancarado nonsense muito bem servido pela notável expressividade física de seu elenco. Não faltam ao discurso teatral referências com propriedade à mitologia grega e episódio bíblico.

Com fascinante integração entre ator e texto, feito conquistado por seu diretor Guilherme Weber, assistir a “Tudo” é uma forma de exorcizar alguns de nossos medos

Guilherme Weber atinge fascinante integração entre atores e texto, ocupando dinamicamente o perímetro da ribalta. Cada artista tem o seu grande momento na montagem, não importando se de modo cômico, dramático ou tragicômico. O espetáculo está assaz bem amparado em seus aspectos técnicos. A cenografia crua com elementos industriais/tecnológicos de Dina Salem Levy, a iluminação instigante de Renato Machado com luzes fosforescentes, os figurinos pertinentes, entre o sóbrio e o extravagante, de Kika Lopes, a trilha original de elevado bom gosto com alusões ao tango de Rodrigo Apolinário e a primorosa preparação corporal de Toni Rodrigues completam um painel estético que se agrega sobremaneira à excelência da produção. É impossível não identificar em “Tudo” uma conectividade com a realidade nossa de cada dia, despertando-nos emoção, reflexão e diversão. “Tudo”, em certo momento, fala-nos sobre não sentir medo. Ir ao teatro e assistir a “Tudo” é uma forma de exorcizar alguns de nossos medos. E isso é tudo.