
O etarismo em relação à mulher, em especial na faixa dos 50 anos, é questionado com desassombro na montagem inédita da peça escrita pela premiada dramaturga norte-americana Jen Silverman
A supervalorização da juventude na sociedade ocidental contemporânea, realçada pela opressão desmedida das redes sociais, inclusive no que concerne ao ser feminino, é uma questão que deve obrigatoriamente ser avaliada e debatida. Uma mulher de 50 anos ou mais ao invés de ser valorizada e admirada pelos seus atributos e belezas naturais invariavelmente acaba sendo colocada, por parte de um segmento social robusto, em um nicho em que as suas potencialidades e habilidades são subestimadas. A premiada dramaturga, romancista e roteirista norte-americana Jen Silverman mergulha com desassombro neste terreno injusto no qual o etarismo assume papel de protagonista em sua peça “A Inquilina” (“The Roommate”), traduzida e adaptada com notável eficiência por Diego Teza em sua versão brasileira, em montagem inédita no país, estrelada por Luisa Thiré e Carolyna Aguiar e dirigida por Fernando Philbert.
Os choques culturais e comportamentais de duas mulheres, uma da zona rural dos Estados Unidos e outra de uma grande metrópole servem para a discussão apropriada de temas caros a todos nós, não só ao sexo feminino, como solidão e diversidade sexual
O espetáculo se desenvolve a partir da relação movida a choques culturais e comportamentais entre Sharon (Luisa Thiré), uma dona de casa divorciada, mãe de um filho ausente (Lucas Drummond participa com sua voz em off), moradora da zona rural dos Estados Unidos, e sua inquilina Robyn (Carolyna Aguiar), uma mulher do mundo, também mãe, vinda de Nova York, com posturas e estilos diametralmente opostos aos da primeira, como o veganismo, a sua homossexualidade e o consumo de cannabis, além de um passado fora dos padrões, estando ambas na faixa dos 50 anos. A convivência forçada da dupla impulsiona com propriedade a discussão de temas caros a todos, não só às mulheres, como solidão, relacionamentos virtuais, diversidade sexual, filhos, transformações pessoais e liberdades individuais independente da idade que se tenha. Jen Silverman não se furta a imiscuir em seu texto porções generosas ou mais sutis de humor, associadas à insolência e a transgressão, preocupando-se em manter sólidas a humanidade e a afetividade de suas personagens.
Quem se habilita em ser a inquilina de Sharon?
Fernando Philbert atinge consistente êxito ao não desperdiçar a cativante liga existente entre Luisa e Carolyna, promovendo com distinção o desenho dos embates constantes do par, utilizando-se de marcações e transições variadas. Na verdade, Fernando busca a simplicidade e a credibilidade das conexões pessoais dessas duas mulheres, o que o faz com absoluto sucesso. Luisa Thiré transmite com magnitude os detalhes da personalidade da reprimida Sharon, sabendo com o mesmo brilho lhe conferir as nuances de um circunstancial empoderamento (as cenas cômicas mostram uma surpreendente face da atriz). Carolyna Aguiar incorpora com louvor o perfil pragmático, desencanado e sarcástico de Robyn, fazendo com que embarquemos com ela neste bem-sucedido caminho. Duas atrizes belamente afinadas. O cenário de Beli Araújo nos leva para o aconchego de uma moradia rural, com sua mesa central de madeira e cadeiras e uma sugestão de varanda com mesa e assentos típicos. Uma cerca rústica completa a proposta coerente de Beli. Karen Brustollin, responsável pelos figurinos, realiza um ótimo e rico trabalho, usando costumes que se adequam com perfeição ao estilo de cada uma das personagens, como casaco, t-shirt estampada, calça jeans rasgada e botas para Robyn e blusa clara florida, cardigã e saia comprida para Sharon (em outro momento usa um vestido deslumbrante com fenda). Vilmar Olos, iluminador, decidiu apostar em planos mais suaves, semiabertos, evocando com charme a ambiência do cotidiano das duas. O bonito conjunto é formado por uma paleta que inclui luzes com cores primárias, somando-se outras, além de leds. Os focos são muito bem aproveitados. A trilha sonora é de Rodrigo Penna, que oferta à plateia uma criativa junção de sons e canções, flertando com o experimentalismo, mas se valendo também de um techno potente, standards como “New York, New York” e hinos pop como “Heart of Glass”, na voz de Miley Cyrus. Toni Rodrigues, diretor de movimento, explora o melhor das intérpretes, visível em suas posturas congruentes e instantes determinados, como Sharon dançando música eletrônica de modo hilário e Robyn exibindo posições impressionantes de alongamento. “A Inquilina” é um valoroso instrumento cênico regado por um humor irresistível e uma tocante sensibilidade que possui, dentre muitos de seus méritos, o enaltecimento da mulher madura, no alto de seus 50 anos, legitimando seus infinitos direitos de liberdade, transformação pessoal e de espalhar a sua inegável beleza. Quem se habilita em ser a inquilina de Sharon?