“Amaury Lorenzo, um maestro regente do seu próprio corpo.”

Amaury Lorenzo se vale de muitos recursos corporais e vocais para narrar ao público a terceira e última parte da obra clássica de Euclides da Cunha “Os Sertões”/Foto: Marcos Morteira

Baseado em “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, “A Luta” é um espetáculo que serve para entendermos melhor o Brasil de hoje

Muito apropriadamente o ator mineiro Amaury Lorenzo ao final do espetáculo que estrela “A Luta” disse ao seu público algo como: “Precisamos conhecer o que aconteceu antes em nosso país para entendermos o que acontece hoje”. Amaury, indicado aos Prêmios Cesgranrio e Cenym de Melhor Ator 2023, referia-se ao tema central de seu monólogo, idealizado e dirigido por Rose Abdallah, escrito por Ivan Jaf, baseado na terceira e última parte da obra clássica de Euclides da Cunha “Os Sertões” (1902), que trata de forma jornalística e não acadêmica a sangrenta Guerra de Canudos (1896-1897), no interior baiano, travada por povos sertanejos liderados por Antônio Conselheiro e forças militares republicanas.

O dramaturgo Ivan Jaf nos entrega um material robusto aberto à mais acurada reflexão coletiva e Rose Abdallah, idealizadora e diretora, segue o acertado caminho da oralidade mais próxima e íntima não se limitando à fórmula pura e simples da narração objetiva dos fatos

Ivan Jaf realiza um trabalho dramatúrgico de grande riqueza, realçado pela fidelidade episódica e pelo empenho na valorização dos detalhes, entregando à plateia mais do que um registro histórico relevante do Brasil República, mas também um material robusto aberto à mais acurada reflexão coletiva. Seu texto nos transmite com elevada categoria não só o perfil do homem profundo brasileiro, o sertanejo que vive continuamente com as agruras impiedosas do tempo e com a escassez do essencial para sobreviver, assim como nos descortina as nuances que permeavam a horda de homens e mulheres com suas crianças que serviam cegamente aos mandos autoritários de Conselheiro, que os envolvia com uma religiosidade amedrontadora, fanática, moldada por profecias apocalípticas, imiscuída com interesses políticos. Traçou com minúcias a personalidade castradora do líder de Canudos, calcada em discriminações, sexismo e misoginia. Por outro lado, as tropas obedientes à República não foram poupadas no que diz respeito ao seu propósito irredutível em aniquilar com toda a truculência imaginável, utilizando-se de um poderio bélico avolumado, os insurgentes do arraial. Rose Abadallah sobrepôs com êxito o desafio de se atingir o público e aguçar o seu interesse pela estrutura cênica/dramatúrgica, com um assunto histórico que poderia não ser do domínio de todos, apostando na força dramática (e algumas vezes cômica), no talento e carisma de seu intérprete, obtendo a compreensão absoluta da narrativa. Rose seguiu o caminho acertado da oralidade mais próxima e íntima, não se limitando à fórmula pura e simples da narração objetiva dos fatos. A diretora explorou ao máximo a fisicalidade de Amaury, fazendo com que em muitas ocasiões o ator representasse simultaneamente com o corpo aquilo que dizia, e o espaço teatral, com marcações pujantes pontuadas por ritmos distintos.

Não há obstáculos para que a entrega de Amaury Lorenzo se consuma de modo pleno, com a sua rara multiplicidade de linguagens corporais e vocais

Amaury Lorenzo revela uma impressionante capacidade de extrair de seu corpo uma rara multiplicidade de linguagens, valendo-se com sabedoria de suas força e disposição física, enriquecendo extraordinariamente a maneira como se comunica com o seu público. Um artista regente de sua própria máquina corporal. Não há obstáculos para que a sua entrega se consuma de modo pleno. Com total entendimento dos seus feitos, além de jogar e brincar com o instrumento corpóreo que possui, o protagonista também o faz com o seu aparelho vocal, singrando pelos mais diferentes acordes e tons, seja cantando, seja falando, seja gargalhando, seja chorando ou até mesmo reproduzindo o som perturbador de tiros. Um ator que mergulha profundamente e sem medo em uma experiência literário/teatral única. A espetacular direção de movimento leva a dupla assinatura de Amaury e Johaine Hildefonso. A iluminação de Ricardo Meteoro passeia com beleza por diversas possibilidades cromáticas, abraçando o azul, o vermelho, o laranja e o lilás, incluindo a interseção de algumas, como o verde e o rosa. Destacam-se ainda seus focos bem calculados, variando as direções, com belos efeitos. A trilha sonora gravada ficou a cargo de Alexandre Dacosta que, com bastante criatividade, reuniu uma infinidade de sons e ruídos em determinado momento da peça, como barulhos da passagem de trens junto a outras sonoridades urbanas e rurais, e músicas, como “O Guarani”, de Carlos Gomes, e cânticos indígenas, resultando em algo perturbador e forte. “A Luta” é um espetáculo que cumpre um papel fundamental para as Artes e a sociedade, trazendo informação e reflexão sobre a nossa História, sobre um período bárbaro que não deve se repetir, fazendo com que, como bem disse Amaury Lorenzo, conhecendo o passado saibamos entender melhor o nosso presente. Trazendo à luz esse esclarecimento para o público teatral, essa já é uma luta mais do que vencida.


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