
/Foto: Nil Caniné
A dramaturga Daniela Pereira de Carvalho construiu um engenhoso arco narrativo no qual três gerações de mãe e filha e seus respectivos conflitos são apresentadas
Relações entre mães e filhas, levando-se em consideração o grau de complexidade que as define, sempre foram retratadas ficcional ou factualmente em peças teatrais, filmes e livros. Esses relacionamentos movidos pelas mais diversas emoções e intensidades, em que podem ser encontrados lado a lado o mais infinito amor e a mais implacável das intolerâncias, geram de modo invariável o interesse e a curiosidade do indivíduo. Sendo este um tema inesgotável a ser explorado, marcado pela sua universalidade e atemporalidade, qualquer obra artística que se proponha a abordá-lo sob um novo olhar é bem-vinda. Sendo assim, a dramaturga Daniela Pereira de Carvalho mergulhou com destemor e profundidade no texto do espetáculo “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe”, que de imediato nos seduz pelo seu bonito e sugestivo título. Daniela, com notável habilidade, construiu um engenhoso arco narrativo no qual três gerações de mãe e filha com seus respectivos conflitos nos são apresentadas, começando com Elisa (Guida Vianna), 70 anos, que reencontra a sua filha Antônia, 50 anos, trinta anos depois, em uma viagem a Mumbai, na Índia, em um quarto de hotel. A longa separação foi motivada pela não aceitação da mãe quanto à homossexualidade de sua filha. A autora se embrenhou neste universo particular de duas mulheres, inundado de mágoas, ressentimentos e culpas, para colocar sobre a mesa uma pauta que aflige severamente a sociedade, a homofobia. Passados 20 anos, agora é a vez de Antônia (Guida Vianna) acertar as contas com a filha Helena (Silvia Buarque), entregue para a adoção ao nascer. O delicado e nervoso reencontro, que ocorre no restaurante de Helena, é cercado de sentimentos similares ao primeiro, ao qual se somam a vergonha da mãe e a impassibilidade da filha. A despeito da aridez dessas reuniões, nas quais em determinados momentos as atrizes protagonizam solilóquios, a dramaturga não dispensa a possibilidade de redenção e afeto mútuo, imprimindo à montagem importantes aspectos humanos.
“A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe” chega às plateias de muitas maneiras
Leonardo Netto, a quem coube a bem-sucedida direção, privilegiou nitidamente as atuações de suas intérpretes, visto que seus diferentes papéis possuem uma vasta paleta de elementos comportamentais/emocionais. Desta forma, o texto em si passa a ser também, palavra a palavra, bastante estimado. O diretor, tendo em mãos duas atrizes com valiosa experiência, vale-se disso para desenhar com distinta variação as linhas de marcação do espaço teatral, preenchendo-o harmoniosamente com uma dinâmica compassada. O encenador realiza ainda com sucesso a transição temporal dramatúrgica, que se dá naturalmente, sem grandes rupturas. Guida Vianna, uma atriz com imensa personalidade e irrefutável carisma, laça os olhares do público com sua pujança interpretativa nata. Tanto como Elisa quanto como Antônia, Guida nos oferece um rico compilado de emoções, sabendo alterná-las com sabedoria e tempo cênico exatos. Silvia Buarque, artista conhecedora dos palcos dotada de nuances e sutilezas em suas expressões dramáticas, acompanha lindamente a sua colega de cena nessa fascinante jornada de mães e filhas que atravessa décadas. Silvia encara com altivez os desafios impostos pelas suas duas personagens com caracteres opostos, Antônia e Helena, alcançando honrosamente seus objetivos. Uma talentosa dupla em sensível e afinada sintonia. O cenário de Ronald Teixeira é deslumbrante, com vultoso impacto visual. Ronald espalhou por toda a ribalta folhas secas, suspendeu em posições variadas mais de uma dezena de janelas com formatos desiguais, vazadas e ornadas com ramalhetes, distribuiu algumas cadeiras e uma mesa bistrô sobre o tablado e colocou ao fundo um belo painel espelhado que distorce as imagens. Os figurinos, com destaque para a transparência preta, o brocado e o dourado, além de casuais casaco e vestido, também levam a sua assinatura. Paulo Cesar Medeiros contribui com uma luz elegante, representada por plano geral/aberto em tons amarelados que assumem distintas gradações, spots laterais, focos com blecaute e o uso de filtros vermelho e azul. A sempre competente Marcia Rubin, com a sua direção de movimento, auxilia as atrizes a comporem com maior veracidade os seus papéis. A trilha sonora de Leonardo Netto, servida com ritmos e sons ditados por teclados e sopro, atende eficientemente às demandas da obra. “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe” é um espetáculo que chega às plateias de muitas maneiras, seja pela presença cativante de suas atrizes, seja pelos assuntos seríssimos levantados, seja pelo fato de que todos nós conhecemos alguma boa história entre mãe e filha. Principalmente se essa filha “escorre dos seus olhos”.