“Débora Falabella, uma magistral atriz que veste a sua toga, defende a sua arte e chega sempre em primeiro lugar.”

Em “Prima Facie” Débora Falabella representa uma advogada criminalista bem-sucedida cujos clientes preferenciais são acusados de violência sexual/Foto: Annelize Tozetto

“Prima Facie”, peça premiada e encenada em vários países, escrita pela australiana Suzie Miller, levanta uma questão que diz muito sobre o Brasil, marcando a estreia de Débora Falabella em monólogos

Há poucos dias, na calada da noite, em regime de urgência, abrindo-se mão de debates em comissões e audiências públicas, parlamentares brasileiros votaram um projeto de lei de forma simbólica, não nominal, que criminaliza mulheres vítimas de abuso sexual caso interrompam o ciclo gestacional a partir da 22ª semana, equiparando-as a homicidas simples. Este episódio atentatório ao que já estabelece o ordenamento jurídico penal do país atualiza de modo surpreendente o espetáculo que vem causando comoção e furor nas plateias teatrais, “Prima Facie”, da escritora, dramaturga, roteirista e advogada nascida em Melbourne, Austrália, Suzie Miller. Traduzida com magnificência por Alexandre Tenório, dirigida por Yara de Novaes e estrelada por Débora Falabella, debutando em monólogos, a peça, cujo título é uma expressão latina que significa “à primeira vista; um evento considerado verdadeiro com base apenas em sua primeira impressão”, estreou em Sydney em 2019, no West End londrino em 2022 e na Broadway no ano passado, sendo hoje encenada, sempre com sucesso, em diversos países. A premiada montagem, inédita no Brasil, cujo livro homônimo teve a sua primeira publicação em 2019, conta-nos a impressionante trajetória de Tessa Ensler, uma advogada criminalista bem-sucedida que defende com gana acusados de violência sexual e se valendo de brechas jurídicas invariavelmente os leva à absolvição, independente de sua culpabilidade ou não. Autoconfiante, persuasiva, questionadora da verdade absoluta como conceito e defensora implacável da literalidade da lei, Tessa, uma mulher ligada à família, vê o seu mundo pessoal desabar quando ela mesma é vítima de abuso sexual de alguém que lhe é bastante próximo, um colega de trabalho, fazendo-a mudar todas as suas visões preestabelecidas de como se deve lidar com um crime dessa proporção e todos os seus desdobramentos psicológicos, com danos à vida profissional e social da mulher violentada.

A diretora Yara de Novaes, que mantém uma parceria artística de 20 anos com Débora, realiza um trabalho impactante sob todos os aspectos, cumprindo honrosamente a sua missão

A dramaturga Suzie Miller com notável destreza estrutura o arco dramático em duas etapas, sendo a primeira voltada para o desempenho excepcional de Tessa nos julgamentos com suas capciosas jogadas jurídicas e sua vida social/afetiva comum, dedicando a segunda ao doloroso périplo por que passa ao tentar convencer o machista e misógino sistema judicial de sua condição de vítima de estupro. A autora, com bastante acerto, gerando imediata comunicabilidade, atribui à sua protagonista a função de narradora de sua própria história, além de servir de instrumento para dar vida àqueles que a rodeiam. Sua formação em Direito confere imensa precisão técnica à narrativa, chamando-nos também a atenção quanto às suas riqueza e credibilidade dramatúrgicas, sem espaços não preenchidos, oferecendo-nos uma obra exponencialmente valorosa em suas mensagens e denúncias. Yara de Novaes, com quem Débora mantém uma parceria artística de 20 anos consumada no Grupo 3 de Teatro, entrega-nos uma produção pulsante, corajosa, desafiadora para a sua atriz, em nenhum momento estática, revelando uma total e irrestrita conformidade com a linguagem poderosa do texto que lhe coube, fazendo com que os espectadores se deixem conduzir pela irrefreável escalada de tensão que acomete Tessa em sua inglória peleja individual. Extraindo o melhor de sua artista, aproveitando todas as viabilidades do perímetro cênico, recursos do cenário e projeções, Yara realiza um trabalho impactante sob todos os aspectos, cumprindo honrosamente a sua missão.

Débora Falabella nos entrega uma atuação tão tocante e comovente que merece um lugar de destaque na galeria daquelas que se tornaram históricas no teatro nacional

Débora Falabella, uma das grandes atrizes de sua geração, como Tessa Ensler, estarrece a todos com uma atuação que se notabiliza pela visceralidade, entrega e verdade emocionais e entendimento absoluto das razões e motivações de uma personagem tão rica, profunda e complexa. Débora transita com admiráveis firmeza, equilíbrio e força pelas veredas apresentadas por essa mulher possuidora de muitas camadas em sua personalidade, que vão da ironia e sarcasmo ao mais legítimo desespero, frustração e vulnerabilidade. Como se não fosse o suficiente, a atriz mineira nos surpreende com uma invejável expressividade corporal (ótima preparação a cargo de Renan Ferreira) no decorrer de suas cenas. Uma atuação tão tocante e comovente que merece um lugar de destaque na galeria daquelas que se tornaram históricas no teatro nacional. André Cortez, responsável pelo cenário, privilegiou a objetividade e a praticidade, ao dispor sobre o palco cadeiras estofadas em amarelo, algumas sobrepostas em uma mesa, tendo ao fundo um largo e alto painel com textura de madeira, a fim de nos reportar ao ambiente de um tribunal (são assaz eficientes as projeções feitas sobre esse mesmo painel). A luz elegante, com spots laterais, sombras realçadas, momentos para o azul e o vermelho e um plano aberto suave é mérito de Wagner Antônio. A instigante trilha sonora de Morris, baseada na multiplicidade de sons de sintetizadores (bateria, teclados), pontua com coerência o desenho narrativo, com aberturas para canções contemporâneas (a versão de “Girl On Fire”, de Alicia Keys, feita por TUM, Luísa Matsushita & Chuck Hipolitho, é fantástica). Os figurinos são assinados pelo prestigiado Fábio Namatame, que cria com fidelidade as vestimentas do universo jurídico, contribuindo com bom gosto com peças de alfaiataria, como blazers e calças bem cortados. “Prima Facie” é inegavelmente um dos mais relevantes espetáculos montados nos últimos anos. Seu caráter denunciativo, potencial reflexivo e esclarecedor, lucidez e atualidade colaboram em definitivo para essa conclusão. À primeira vista, não se tem uma única dúvida razoável quanto a isso.


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