
O tema “homofobia” é colocado sobre a mesa e discutido seriamente por Leonardo Netto em três solos curtos na peça de sua autoria “3 Maneiras de Tocar no Assunto”
Há assuntos que devem obrigatoriamente ser colocados sobre a mesa e serem discutidos com seriedade em uma coletividade organizada, como a homofobia e todas as outras formas de fobia quanto à orientação sexual e identidade de gênero de uma pessoa. Por muitos anos, essas pautas foram deixadas de lado no Brasil, pois não interessavam aos segmentos mais conservadores da sociedade, incluindo Poderes como o Executivo e o Legislativo. O resultado de tanta omissão e preconceito foi a triste posição do país em primeiro lugar entre aqueles que mais matam populações LGBT no mundo. Recentemente, alguns avanços foram observados graças à ingerência do Poder Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal (STF), em prol dessas minorias carentes de quase 70 direitos previstos na Constituição Federal. Partindo desse deplorável quadro de descaso com as diferenças, em particular com os homossexuais, o ator, diretor e dramaturgo niteroiense Leonardo Netto se debruçou com absoluta propriedade e entrega na construção de uma narrativa que abordasse com legitimidade este tema tão relevante e intrínseco ao comportamento humano, no monólogo “3 Maneiras de Tocar no Assunto”, estrelado por ele próprio com a direção de Fabiano Dadado de Freitas. A avassaladora e premiadíssima montagem, vencedora dos prêmios Cesgranrio, APTR-RJ e Cenym de Teatro Nacional, que desde 2019 vem singrando uma exitosa trajetória pelos palcos brasileiros, contém um bem estruturado arco dramatúrgico dividido em três solos curtos que apontam as instâncias “A Escola”, “A Lei” e “O Estado”, nominados respectivamente “O homem de uniforme escolar”, “O homem com a pedra na mão” e “O homem no Congresso Nacional”, representados com vultosa significância, seguindo-se a ordem, por casos reais, sendo alguns fatais, de alunos que sofreram bullying escolar; pela “Revolta de Stonewall”, quando em 28 de junho de 1969, em uma boate de Nova York, “Stonewall Inn”, a comunidade LGBT resistiu bravamente aos ataques sofridos por forças policiais, o que fez com que esse dia se tornasse um marco histórico para os grupos que a compõem, transformando-se no “Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+”; e nas falas e discursos de um deputado ativista gay na tribuna da Câmara nacional, abertamente inspirados em diversas explanações do ex-deputado federal Jean Wyllys.
Leonardo Netto, em atuação verdadeira e emocionante, enfrentou com múltiplos méritos os desafios que lhe foram propostos pelo seu texto
O diretor Fabiano Dadado de Freitas soube com louvável ciência equalizar para o público, respeitando-se o nível de importância de cada um, os curtos solos ao seu dispor, imprimindo-lhes com grande adequação as camadas linguísticas solicitadas pelo autor, com um proposital didatismo no primeiro, uma carga emocional mais intensa no segundo, com alguns momentos de ludicidade e liberdade ficcional, e uma coloração com tintas mais inflamadas nas mensagens explícitas do terceiro. Fabiano se utilizou com visível sucesso de imagens projetadas em um telão, em sua maioria de arquivo, com inegável valor para a História, como os registros da “Revolta de Stonewall”, uma jovem e linda Judy Garland cantando e manchetes estarrecedoras de impressos que disseminavam o ódio e a segregação dos homossexuais, além do anúncio da introdução dos solos e suas consequências. O encenador ofertou ao seu artista uma ampla paleta de possibilidades de ocupação espacial, assegurando-lhe interações produtivas tanto com as projeções quanto com os poucos elementos do cenário, mas principalmente com os espectadores. Leonardo Netto, um intérprete com profundo conhecimento das engrenagens teatrais, admiravelmente convicto de suas responsabilidades artísticas, parece-nos um audaz soldado em um campo de batalha, esquivando-se de cada mina que lhe fora colocada pelo inimigo, entregando-se de peito aberto a uma luta aparentemente inglória, mas que, com persistência, resiliência e sabedoria pode ser vencida. Face a esta alvissareira impressão, tem-se o melhor dos corolários, ou seja, a de que Leonardo, com seu elevado talento, enfrentou com múltiplos méritos os desafios que lhe foram propostos pelo seu texto, transmitindo-nos com imensa verdade e larga emoção as mensagens denunciatórias entranhadas no cerne dramatúrgico. Seu magnífico trabalho é completo por uma direção de movimento extraordinária de Marcia Rubin que, com sensibilidade, primor e inspiração, esmiuçou as infindas potencialidades expressivas do material humano, com deslocações vigorosas, danças, saltos e desenhos dos braços no ar.
Um monólogo que toca o dedo na ferida, sendo um aviso eloquente para a sociedade do real perigo que a adoece
Mais um ponto alto da peça é a iluminação de Renato Machado, um experiente profissional que sabe, como poucos, identificar o que a cena pede em termos de ambientação. Renato generosamente orna os quadros cênicos com exemplar variedade de técnicas, seja em feixes que se “abrem” em vários outros, surtindo um belo efeito, seja na impressionante exploração de focos sobre o rosto do ator e deslumbrante fruição das sombras. Luíza Fardin, a quem coube o figurino, decidiu pela sobriedade sem prescindir da elegância, trajando o protagonista com um conjunto de terno, calça, camisa e gravata em tons de grafite mais claros ou escuros. Elsa Romero, cenógrafa, apostou no pragmatismo ao distribuir pela ribalta dois praticáveis vazados, um maior e outro menor, com uma bacia d’água sobre um deles, que servem funcionalmente muito bem às necessidades do intérprete. Rodrigo Marçal e Leonardo Netto conceberam uma trilha sonora diversificada e envolvente que se alterna entre o potente (com riffs de “Smells Like Teen Spirit”, do Nirvana), o pop dançante, a balada/rock e o romântico ingênuo na doce voz de Judy Garland, agradando em cheio aos que estimam o ecletismo musical. Tais escolhas se somaram valorosamente às qualidades da peça. “3 Maneiras de Tocar no Assunto” atende a um dos princípios basilares da arte teatral, que é a de ser um instrumento vivo e poderoso de transformação social e cultural. O monólogo criado e encenado por Leonardo Netto toca o dedo na ferida, brada, alerta-nos, reivindica, briga com quem deve se brigar, sendo um aviso eloquente para a sociedade do perigo real que a adoece. Tudo isso com apenas três maneiras de tocar no assunto.