
Após assistir à montagem londrina de “Brokeback Mountain”, adaptada de um conto que originou o grande filme homônimo, o ator Marcelo Brou decide montá-la no Brasil em parceria com o respeitado diretor Moacyr Góes
Em 09 de dezembro de 2005 era lançado nos cinemas dos Estados Unidos um filme que abalaria o “establishment” da indústria de sonhos. O longa-metragem dirigido pelo taiwanês Ang Lee, “O Segredo de Brokeback Mountain” (“Brokeback Mountain”), vencedor de 3 Oscars, mas não o de “Melhor Filme” como se esperava, estrelado por Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, com roteiro adaptado do conto da jornalista e escritora americana com ascendência franco-canadense Annie Prouxl (o conto, que integra a coletânea “Close Range”, foi lançado originalmente em 1997 pela revista “New Yorker”), subverteu a sacralidade de um dos gêneros cinematográficos mais admirados pelos estadunidenses, o western, ao retratar o amor homoafetivo de dois cowboys do interior do país na década de 60. Sua trajetória pelas salas de cinema de outras nações foi marcada por polêmicas e censuras, mas a sua aura de “grande filme” nunca foi maculada. O ator Marcelo Brou, ao assistir à montagem de “Brokeback Mountain” no West End londrino, escrita pelo americano Ashley Robinson, decidido a encená-la no Brasil, contatou o prestigiado diretor Moacyr Góes e todo o processo de realização artística de seu projeto foi levado adiante.
Sem perder o ótimo apelo ficcional, a peça de Ashley Robinson aborda temas que afligem a sociedade há tempos, como a homofobia e o machismo, mas também acentua a imperiosidade do desejo e amor entre os indivíduos, não se importando com os seus gêneros
A peça “O Segredo de Brokeback Mountain”, desde agosto em cartaz no Rio de Janeiro, inédita no Brasil, com tradução exemplar de Miguel Góes, passa a ser uma parada obrigatória para o público de teatro, independente de quem assistiu ao filme ou não, por uma multiplicidade de fatores, que incluem a rica e corajosa dramaturgia, a direção experiente de Moacyr, a entrega e talento de seus protagonistas, Marcéu Pierrotti (Ennis Del Mar) e Júlio Oliveira (Jack Twist), todo o elenco que colabora gloriosamente para o êxito da obra e as lindíssimas e tocantes músicas do cantor e compositor inglês Dan Gillespie Sells. Dinâmica, envolvente, emocionante e cheia de reviravoltas, a narrativa desenvolvida por Ashley Robinson, ao nos contar a história desses dois vaqueiros de comportamentos opostos que se veem obrigados a ficarem sós no topo de uma montanha com o objetivo de pastorear ovelhas e se apaixonam, aborda, sem perder seu ótimo apelo ficcional, temas que afligem a sociedade há tempos e que merecem todo e qualquer tipo de análise que nos leve à mais ampla reflexão, como homofobia, violência infantil, machismo, desrespeito às diferenças e o patriarcalismo. O autor, ciente da importância dos assuntos levantados pelo conto de Annie Prouxl, pôs em seu texto com notável destreza a multifacetada personalidade humana com todos os seus erros, intolerâncias, preconceitos, negações e hipocrisias, mas também acentuou a imperiosidade do desejo e do amor entre os indivíduos, não se importando com os seus gêneros. Tudo muito bem capturado pelo tradutor Miguel Góes.
Moacyr Góes cria uma atmosfera bastante familiar ao tempo e espaço em que se passam os episódios do espetáculo, enriquecendo-o ao privilegiar a música ao vivo
Moacyr Góes, insigne diretor responsável por clássicos do teatro brasileiro, como “Escola de Bufões” e “Os Gigantes da Montanha”, criou uma atmosfera bastante familiar ao tempo e espaço em que se passam os episódios determinantes das vidas de Ennis e Jack, apostando em uma exponencial movimentação dos atores com diferenciadas marcações na ribalta, utilizando-se de acessórios de cenário, como toras longas e finas de madeira, para demarcarem situações e lugares específicos. Outros acertos do encenador foram cruciais para o resultado vitorioso da obra: a presença dos excelentes músicos João Pedro Moschkovic (guitarra) e Miguel Góes (violão) tocando ao vivo no palco, a também onipresença do ator Marcelo Brou, como Ennis mais velho, contemplando o desenrolar da peça com as mais sutis reações, como se estivesse reavaliando o seu passado, e as intervenções musicais da atriz Catarina Marcato com a sua bela voz em momentos estratégicos. Há que se elogiar também o cuidado com que Moacyr, sem descambar para as vias mais fáceis, dirigiu as cenas de afeto e sexo entre os personagens.
Marcéu Pierrotti e Júlio Oliveira formam uma dupla entrosadíssima, confirmando o acerto de suas escalações, sendo acompanhados por um time de atores que se empenha com notável lealdade ao texto
Marcéu Pierrotti, com o seu porte, estampa e talento, passa-nos uma pujante presença em cena, na qual são claramente observadas as suas bem-sucedidas intenções em preencher com todos os elementos à sua disposição, inclusive nas linguagens corporal e vocal, a figura do vaqueiro arredio, tosco, monossilábico e viril. O ator desenha com sucesso o seu personagem com a masculinidade padronizada que os códigos sociais exigem, transformando-se pouco a pouco, e com isso demonstrando novas camadas emotivas à medida que os acontecimentos se sucedem. Júlio Oliveira acompanha seu parceiro na mesma intensidade de força dramática, impondo-se positivamente na trama com o seu Jack Twist mais extrovertido, resoluto, questionador e afirmativo. Ao contrário de Ennis, o papel de Júlio lhe permite ostentar uma masculinidade menos normativa, abrindo-lhe espaços para ostentar emoções e sensibilidades que ao final acabam por seduzir de maneira irreversível o seu objeto de paixão. O intérprete nos garante ainda um terno instante ao entoar uma bonita e melancólica canção. Enfim, uma dupla entrosadíssima em todos os aspectos, confirmando o alto acerto de suas escalações. Os dois são acompanhados por um time de atores que se empenhou com notável lealdade à proposta do texto de Ashley Robinson. Além de Marcelo Brou e Catarina Marcato já mencionados (Catarina também interpreta Alma Beers, a esposa de Ennis, com o choque inicial, a passividade e o enfrentamento à traição com os tons exatos), destacam-se Eduardo Rieche (defendendo três personagens, revela bem-vinda versatilidade; como Aguirre, o empregador dos caubóis, mostra dureza e viés preconceituoso; como Bill, o novo marido de Alma, timidez e um certo constrangimento; e como o pai de Jack, uma mágoa avassaladora na qual se esconde uma profunda decepção); Arlete Heringer, além da garçonete, apresenta-nos com absoluta verdade a dor incontida e a generosidade da mãe de Jack) e Ana Elisa Schumacher, como a mulher de Jack, Laureen, demonstra com altivez a comoção da esposa que sofrera um enorme revés.
O grande segredo de Ennis Del Mar e Jack Twist
A encantadora iluminação de Adriana Ortiz busca uma permanente suavidade, jamais se excedendo, trilhando caminhos que se alinhem com o realismo sem no entanto preterir matizes como o azul, o azul-esverdeado e o lilás, conferindo poesia às cenas. A direção musical de Miguel Góes é magnífica, aproximando o público da história e fazendo com que as melodias e os acordes instrumentais sejam personagens relevantes da encenação. Ana Elisa Schumacher fez um belo, pesquisado e fiel trabalho com os figurinos, ambientando-nos fortemente com o universo country, simbolizados nas diversas jaquetas, camisas xadrezes, peças jeans, t-shirts, botas e chapéus. Angela de Castro executou uma admirável preparação vocal do elenco. “O Segredo de Brokeback Mountain” é um espetáculo que já começa vitorioso com a bravura de seu idealizador, Marcelo Brou, em encenar um texto que fala do amor entre iguais e todo o preconceito que o cerca em uma comunidade opressora, alcançando outras tantas vitórias a partir do momento em que foi ganhando vida no palco. Não há como sair do teatro sem se comover com a história desses dois homens que tiveram toda uma sociedade contra eles. O amor que veio do alto da montanha de Brokeback não precisou ser consertado, sendo sustentado porque foi infinitamente amado. Este é o grande segredo de Ennis Del Mar e Jack Twist.