“Todas as vozes femininas, da árabe à brasileira, condensadas na atuação furiosamente bela de Carol Chalita.”

Carol Chalita leva aos palcos a corajosa obra da prestigiada escritora libanesa Joumana Haddad/Foto: Vinícius Mochizuki

Uma prestigiada escritora que contestou a visão universal que se tem sobre a famosa personagem árabe Sherazade

Há centenas de anos o mundo considera Sherazade, personagem central da série de contos árabes “As Mil e uma Noites”, como símbolo de uma mulher forte e sábia que se utilizou de artifícios, no caso a narração de histórias repletas de suspense, para retardar o seu assassinato por um sultão, então seu marido, que após ser traído por uma esposa decidiu matar diariamente todas as outras com quem viesse a se casar. No entanto, na contramão do pensamento consolidado, Joumana Haddad, uma das mais respeitadas escritoras, poetas e ativistas árabes, nascida no Líbano, contestou esta visão, atestando haver sinais de submissão na conduta da lendária personagem para salvar a própria vida. Comemorando 20 anos de carreira, Carol Chalita, 11 depois de ter tido o seu primeiro contato com a obra de Joumana, “Eu Matei Sherazade”, idealizou e levou aos palcos no ano passado a primeira adaptação deste livro autobiográfico corajoso, libertário e contestador dos olhares deturpados que se tem sobre a condição feminina árabe no que tange à sua identidade, às suas vontades, lugar na sociedade e sexualidade.

Uma narrativa pujante capaz de abalar os pilares de um sistema social patriarcal e machista

Ao lado de Miwa Yanagizawa, diretora do espetáculo, Carol, com ascendência libanesa, construiu uma narrativa pujante, denunciativa, justa e política, com potencial para abalar os pilares de um sistema social fundado no patriarcado e no machismo. Desconstruindo a incontável gama de estigmas lançados sobre a mulher árabe, logra-se, com o texto dilacerante, aproximá-la outrossim da mulher ocidental, inclusive a brasileira, vítima de amarras semelhantes, invariavelmente colocada em um papel de inferioridade em múltiplas situações pelo gênero oposto. A dramaturgia singular eleva ainda a um patamar especial a relevância da literatura para a formação e transformação da escritora.

Direção poderosa de Miwa Yanagizawa e o acertado casamento entre atuação e a música de Beto Lemos

Miwa Yanagizawa imprime uma direção poderosa, impactante e ao mesmo tempo sensível à peça, traduzindo em imagens poéticas e belas a cara dramaturgia ao seu dispor. Miwa extrai de Carol infinitas possibilidades de deslocamentos no tablado, buscando e atingindo notável êxito em soluções criativas para cenas pontuais. Um acerto determinante para o sucesso da encenação fora o casamento entre atuação e música com a presença na ribalta do músico, diretor musical e autor da trilha sonora original da montagem Beto Lemos. A obra, com essa interação, ganha peso emocional indescritível. Beto Lemos é um extraordinário instrumentista e compositor, fazendo de suas músicas e sons ferramentas indispensáveis para que se materialize o calor do discurso dramatúrgico.

Carol Chalita atua com fúria e verdades desconcertantes

Carol Chalita, indicada ao Prêmio APTR como Melhor Atriz em Papel Protagonista 2024, pode-se dizer, conquistou com a sua performance um nível artístico de excelência e maturidade que deve ser apreciado ainda por muitas plateias. Carol, percebe-se, atua com fúria e verdades desconcertantes, como se fosse a porta-voz de todas as mulheres vitimizadas e vilipendiadas em suas liberdades, sendo a representante de uma urgente e necessária catarse coletiva. A bela atriz, com primorosos trabalhos de voz e corpo (movimentos que se alternam entre a precisão e a fluidez), méritos de Sonia Dummont, preparadora vocal, e Laura Samy, interlocutora de movimento, segura as mãos e a atenção do público e não as solta mais.

Um espetáculo crucial, necessário e obrigatório que nos serve de alerta

A cenografia, a cargo de Constanza de Córdova, é plasticamente original, com resultados inebriantes em seu conjunto. Constanza, que não prescindiu de elementos que remetessem à cultura árabe, como um largo tapete, utilizou-se de quatro colunas de tecido diáfano que além de embelezarem o quadro cênico, possuem, algumas delas, funções específicas, e dois painéis pintados com letras ocidentais e ideogramas árabes que atendem a demandas essenciais, além de outros acessórios, como livros espalhados no proscênio. Tereza Fournier, figurinista, apostou em bonitas peças, vestidos em tons nude e preto, que se equilibram entre a sensualidade das transparências e fenda e a sobriedade. Todos se adequam com perfeição ao “physique” da intérprete. A iluminação de Nina Balbi e Pedro Carneiro preenche lindamente a caixa cênica, com propostas mais sutis, delicadas e insinuantes, fazendo proveitosos usos das sombras, dos matizes amarelados e dos spots individuais, tanto na atriz quanto nas colunas de tecidos. “Eu Matei Sherazade, confissões de uma árabe em fúria” é um espetáculo que se define naturalmente como crucial, necessário e obrigatório, tendo em vista a sua imensa potencialidade de nos esclarecer e nos alertar, levando a todos, em especial os homens, não importa a sua nacionalidade, a assumir uma posição contrária à opressão secular a que, mulheres árabes e do mundo, são submetidas regularmente. Tudo isso feito com uma beleza furiosa.                     


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