“Kelzy Ecard, cara e talentosa amiga do teatro, emociona-nos com as mais lindas canções de Chico Buarque, tendo ao fundo importantes acontecimentos históricos do país.”

Kelzy Ecard, como a professora Norma Aparecida, uma fã apaixonada por Chico Buarque desde a infância, em “Meu Caro Amigo”/Foto: Renato Mangolin

Montado originalmente há 15 anos, o monólogo musical “Meu Caro Amigo” volta à cena com os mesmos realizadores devido ao seu caráter atual

As músicas têm o poder indissolúvel de exercer um papel fundamental em nossas vidas, sendo referências eloquentes de momentos marcantes pelos quais passamos. Há grandes artistas que nos influenciam e modificam nossas existências de uma forma mais abrangente e rica, considerando o impressionante legado construído por anos. É o caso de um dos maiores intérpretes e compositores brasileiros, Chico Buarque de Hollanda. Naturalmente, muitos indivíduos atingidos pelas criações desses ídolos desenvolvem com os mesmos uma relação apaixonada e febril durante fases importantes de suas próprias trajetórias. Torna-se imperioso afirmar que vários desses grandes artistas se misturam direta ou indiretamente com a História do país em que atuam, o que realça o seu valor para a sociedade. Partindo desta premissa, a relação fã/ídolo tendo como pano de fundo períodos históricos, o dramaturgo Felipe Barenco, a diretora Joana Lebreiro e a atriz Kelzy Ecard levaram à ribalta há 15 anos o monólogo musical “Meu Caro Amigo”. Ciente de que o espetáculo se mantinha atual, carecendo apenas de alguns alinhamentos com a época vigente, o trio responsável pela peça, a partir da idealização de Kelzy, decidiu remontá-la para que novas e antigas plateias pudessem testemunhar e reviver respectivamente a deliciosa, poética e emocionante caminhada de Norma Aparecida, uma professora de História que desde a infância nutre uma adoração imensurável por Chico Buarque, resolvendo aos 60 anos de idade se apresentar em um show interpretando as suas músicas a fim de homenageá-lo.

Dramaturgia envolvente e bem-humorada de Felipe Barenco somada à direção sensível e hábil de Joana Lebreiro

Em sua envolvente, delicada e bem-humorada dramaturgia, Felipe nos oferta a linha evolutiva do sentimento de Norma pelo cantor e compositor, pontuando com esmero passagens determinantes da vida da professora que vão de 1966 a 2016, como o seu primeiro contato com Chico pela televisão, a educação rígida do pai, as reuniões familiares regadas a discussões políticas, a formação do fã-clube, seu ingresso na faculdade, seu engajamento político/estudantil e seus relacionamentos amorosos. O autor se mostrou bastante criterioso ao não preterir episódios de nossa História recente essenciais para o entendimento do que observamos hoje, como o Golpe Militar de 1964, a Passeata dos Cem Mil, o Ato Institucional N­­º 5, a Anistia, o Movimento pelas Diretas Já, as eleições presidenciais de 1989, as eleições presidenciais de 2002 e o renascimento de forças de extrema direita nos últimos anos. Mais de 30 canções de Chico, em sua maioria clássicos incontestes, foram inseridas na trama, sendo ouvidas tanto originalmente quanto na voz límpida e sedutora da protagonista acompanhada pelo notável pianista João Bittencourt. Joana Lebreiro, com a sua direção sensível e hábil, alternando-se entre o despojamento e a concisão, encarregou-se de transmitir ao público com sobeja eficiência o universo particular e encantador de Norma. Joana conduziu a sua atriz para uma vereda em que houvesse espaços para uma interação espontânea com os espectadores, próxima a um bate-papo, um colóquio saboroso, e outros em que se buscou tons mais sóbrios e intimistas, observados em falas confessionais da personagem e em alguns números musicais. A diretora permitiu em todos os aspectos que Kelzy brilhasse livremente.

Quem não conhecia os dotes de cantora da maravilhosa atriz Kelzy Ecard irá se embevecer com as suas versões para as canções de Chico

Kelzy Ecard, atriz reconhecida com larga experiência nos palcos, oferece-nos uma linda performance de Norma Aparecida, vivaz, tocante, admirável em todas as nuances que compõem a personalidade desta professora movida à paixão. A intérprete, possuidora de múltiplas ferramentas artísticas, atesta-nos o seu domínio cênico absoluto, dando voz com bastante desenvoltura aos outros personagens que margeiam os diversos núcleos formadores de sua jornada. Impressiona-nos a sua capacidade de interlocução com o público, sempre feita de modo natural e genuíno. Quem não conhecia os dotes de cantora desta maravilhosa atriz irá se embevecer com as suas versões para as canções de Chico que não raro tocam fundo o coração (excelente preparação vocal de Pedro Lima). Kelzy Ecard, pode-se afirmar, é uma artista completa, fazendo-nos rir e emocionar, cantar e vibrar, cabendo-nos com júbilo aplaudi-la ao final. A direção musical coube a Marcelo Alonso Neves, que cumpriu com devoção a sua honrosa missão carregada de responsabilidades. Marcelo selecionou, o que não deve ter sido fácil, mas de certa maneira teve a sua cota de prazer, dentre uma obra extensa repleta de clássicos, mais de três dezenas de canções de Chico Buarque que pudessem ser inseridas na montagem respeitando a sua lógica narrativa. Ademais, deveria haver uma distribuição entre aquelas que seriam tocadas originalmente e outras que seriam cantadas pela atriz. Com equilíbrio, harmonia e coerência, Marcelo permite que a plateia se deleite com músicas como “A Banda”, “Apesar de Você”, “João e Maria”, “Todo o Sentimento”, “Eu Te Amo” e “Cálice”. O pianista João Bittencourt, além de acompanhar belamente Kelzy em suas interpretações, criou com talento passagens musicais que cumpriram o seu papel de realçar determinadas cenas. A cenografia e os figurinos tiveram a assinatura da dupla Dani Vidal e Ney Madeira. Ambos conceberam um cenário formoso e aconchegante, rico em detalhes e referências, com mais de uma dezena de LPs de diferentes fases da carreira de Chico suspensos à esquerda da ribalta, abajures de tamanhos distintos também suspensos e outro de pé, uma pequena mesa de madeira e sua cadeira, um balanço infantil, um sofá antigo estampado, um cortinado, tapetes e caixas de som com funções secundárias. Também houve grande acerto ao vestir a artista com um caftã vermelho com frases bordadas em azul e um legging, dando-lhe a oportunidade de se movimentar com fluidez e liberdade. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros valoriza a elegância e o bom gosto com o uso de um spot localizado atrás de Kelzy em certos instantes (como em algumas apresentações musicais), a exploração de refletores laterais bem nas pontas do palco, a aposta em planos com gradações próximas ao amarelo e a utilização de LEDs e filtros vermelhos e lilases. O efeito geral é fascinante.

“Meu Caro Amigo” é um espetáculo cheio de encantos que não deve ser apreciado apenas por aqueles que admiram a gigantesca carreira de Chico Buarque de Hollanda, devendo ser visto por todos aqueles que admiram uma realização teatral com potentes qualidades, que vão das músicas arrebatadoras tocadas e cantadas em cena à atuação de uma artista que de tão talentosa poderia ser chamada de “cara amiga do teatro”, a nossa “cara amiga” Kelzy Ecard.                                          


Deixe um comentário