
Sílvia Monte, diretora e produtora, idealizou e adaptou pela primeira vez para o teatro o conto “Senhor Diretor”, integrante da obra “Seminário dos Ratos“
Estamos vivendo atualmente não só no Brasil, como em vários outros países, o recrudescimento de correntes político/ideológicas de viés reacionário as quais se balizam na defesa enfática em prol da sociedade de costumes tradicionais e de uma moral atentatória às liberdades individuais. Pensamentos como esses sempre existiram, mas a sua emergência após tantas conquistas é, de fato, um preocupante retrocesso. A grande escritora Lygia Fagundes Telles, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), vencedora do Prêmio Camões e primeira brasileira a ser indicada ao Prêmio Nobel de Literatura, já abordava com excelência este tema em seu conto “Senhor Diretor”, integrante da obra “Seminário dos Ratos”, lançada em 1977. Sílvia Monte, diretora e produtora, ciente desses movimentos e convencida da relevância dos escritos da autora de romances como “Ciranda de Pedra” (1954) e “As Meninas” (1973), idealizou e adaptou com beleza e sensibilidade pela primeira vez para o teatro o conto que discorre sobre um dia na vida, o seu aniversário, de Maria Emília, uma professora paulista aposentada com 62 anos de idade, que ao caminhar pelas ruas de São Paulo se indigna ao se defrontar com uma capa de revista em uma banca de jornal em que se encontra um casal em trajes menores abraçado, decidindo de pronto escrever uma carta de protesto para o diretor do impresso “Jornal da Tarde”.
Vê-se na peça uma valorização bem-vinda das palavras em seu infinito esplendor
A partir desta decisão de Maria Emília, a estrutura dramatúrgica do monólogo é elaborada, pois a personagem ao imaginar o que escreveria para o “senhor diretor” mergulha em um processo íntimo de reavivamento de suas memórias concomitante às suas impressões demasiado pessoais acerca de assuntos sensíveis à humanidade, como envelhecimento, sexualidade, desejos, loucura e morte. Apesar do desfile de suas posições castradoras, com as quais ela mesma se confunde vez ou outra, mostrando em alguns instantes um olhar positivamente aceitável, como a sua crítica às propagandas em massa, Maria Emília conquista a plateia com a sua sutil ironia e acachapante sinceridade. Sílvia Monte nos proporciona com a sua adaptação e direção uma montagem realçada por inúmeras qualidades, sendo uma delas a de amalgamar com precisão e destreza as linguagens literária e teatral, provando ser cada vez mais possível beber na fonte riquíssima que são as obras de nossos magnos escritores. O que se vê na peça em sua completude é uma valorização bem-vinda das palavras em todo o seu infinito esplendor. Ouvi-las de um conto de Lygia Fagundes, adoravelmente distribuídas em suas frases claras, diretas e límpidas, embevece qualquer espectador que se encante com a nossa língua pátria. Outros pontos significativos de sua direção são a diversidade de marcações pensadas com acurada visão cênica, explorando todas as possibilidades do tablado, a inserção das músicas em momentos-chaves do entrecho e a absoluta confiança depositada no reconhecido talento de Analu Prestes.
Analu Prestes atinge com sublimidade todas as camadas da complexa e difusa personalidade da professora Maria Emília
Analu Prestes, atriz santista com imenso prestígio nos palcos brasileiros, também respeitada pelas suas contribuições nas áreas das Artes Plásticas, Cenografia e Figurinos, prova-nos com a sua fineza interpretativa e a sua inteligência na condução das emoções o quanto a sua escolha para viver Maria Emília foi perfeita. Bonita, carismática, dona de uma voz canora, Analu atinge com sublimidade todos as camadas da complexa e difusa personalidade da professora que se refugiou à tarde em uma sala de cinema. A intérprete, meticulosa na composição de sua personagem, atribuindo importância aos pequenos gestos, como a colocação de um par de luvas, desliza empertigada pela ribalta usando eficazmente o seu corpo como linguagem artística (competentíssima direção de movimento de Mari Amorim). Vale destacar, outrossim, a sua espantosa aptidão em dialogar com o público em um tom, pode-se dizer, confessional, e o modo versátil como incorpora outros tipos que margeiam o seu papel.
“Senhor Diretor” é uma sincera carta de amor às letras e ao palco
O cenário e os figurinos ficaram sob a responsabilidade da própria Analu. Tendo como efeito a concentração saudável das atenções na artista e sua palavra, optou-se pela economicidade de elementos cenográficos, adotando-se tão somente uma cadeira de madeira giratória colocada no centro do palco que serve sobremaneira às exigências dramatúrgicas. Já os sóbrios e elegantes figurinos de Maria Emília obedecem ao bom corte de suas blusa e saia, com contrastes assumidos entre as tonalidades de areia, caramelo e preto, incluindo-se os acessórios. José Henrique Moreira, com a sua iluminação, cria uma atmosfera sedutora e coerente com o enredo, plena em nuances, que passam pelos sombreados, como os vistos na atriz ao fundo do espaço teatral com o apoio das projeções, focos e planos mais ou menos abertos em que se sobrepõe a suavidade visual. A alternância de matizes vermelho e azul também se estabelece em alguns episódios. A trilha musical de Sílvia Monte junto à direção e produção musical de Yahn Wagner com os seus arranjos causa-nos uma legítima satisfação em virtude de sua preciosidade e brilho configurados a partir do empenho de instrumentistas e coro vigorosos (canções como “O Último Tango em Paris”, de Gato Barbieri, e “Moteto em Ré Menor Beba Coca-Cola”, de Gilberto Mendes e Décio Pignatari, fazem parte da apresentação).
“Senhor Diretor” cumpre sua altaneira missão em unir duas das mais lindas artes escrevendo com bela caneta-tinteiro uma sincera carta de amor às letras e ao palco, casados sob a bênção de uma senhora atriz, Analu Prestes.








