Se há um mal que acomete as pessoas sem piedade, esse mal é a solidão. A solidão é democrática. Não escolhe sexo, raça, religião, idade ou nível socioeconomico. Tentamos sem sucesso dela escapulir. Porém, não se escapa daquilo que não se pode escapar. Nascemos sozinhos, vivemos “sozinhos” (queiramos ou não) e morreremos sozinhos. A palavra “dança” que intitula a peça de Richard Alfieri, com direção de Ernesto Piccolo, e Suely Franco e Tuca Andrada no elenco é apenas um mote, um elemento catalisador para se falar da solitude humana. Uma senhora, Lily (Suely Franco), viúva, só, decide preencher o vazio da vida com aulas particulares de dança. O professor Michel/Michael (Tuca Andrada) é tão solitário quanto sua futura aluna. Um homem que busca ter percepção sarcástica, niilista, iconoclasta das instituições sociais e relacionamentos interpessoais, e que por meio da graça, do chiste, do dito espirituoso mascara dissabores, ressentimentos, mágoas e traumas que lhe foram causados pela inexorabilidade do mundo no que tange à sua orientação sexual e infortúnios profissionais de um bailarino que já brilhou na Broadway, e hoje se vê obrigado a ensinar o seu dom em lares “sozinhos” habitados por mulheres maduras sozinhas. Constituída a relação professor/aluna nota-se constante e inevitável embate de ideias, opiniões, conceitos e humores muitos dos quais advindos do fato de pertencerem a gerações distintas. Lily é o símbolo do que o passar dos anos pode oferecer ao indivíduo: uma sensação dolorosa de pressa em se aproveitar o tempo que resta; uma quase inviabilidade de sorrir quando não se tem parcela farta de motivos para sorrir; uma potencial prisão obrigatória dos desejos sexuais e afetivos; a defrontação com a miserável transformação física a que todos nós estamos submetidos pela vontade cruel da natureza, ou seja, uma briga perdida com o espelho; e o sumiço de ouvidos que lhe escutem, de bocas que lhe digam algo, de olhos que lhe vejam, e de mãos que lhe toquem. Vale ressaltar que Suely Franco transgride as “regras do jogo” apresentando-se jovem, bonita e com vigor invejável. Já o Michel de Tuca Andrada é representativo da vitimização inglória a que são colocados involuntariamente os homossexuais consoante com a iníqua, impiedosa, inclemente, má, intolerante, perversa, e hipócrita postura (ou impostura?) de uma sociedade que sobrevive do alimento de suas próprias hipocrisias. A mesma sociedade que condena e que profere discursos discriminatórios é aquela que “entre quatro paredes” ou “a huis clos” “rasga” os seus discursos, e depois os reescreve para disseminar a discórdia mundial. No entanto, o dramaturgo americano Richard Alfieri com esse árido conteúdo logrou construir com habilidade e destreza narrativa que dá espaço ao divertido, ao romantismo, à poesia, à beleza, ao amor e à amizade com ótima tradução de Ciça Correa. Ernesto Piccolo, um encenador que a cada passo imprime com mais força e sensibilidade a sua marca indelével nas produções que conduz, amarra toda a história com absolutas coerência, fluidez, e sedução, não permitindo que o enredo resvale para o pesado, sendo assaz permissivo com a comicidade. Ernesto pode se vangloriar de possuir em sua prolífica carreira outra obra que atingiu os bem-intencionados objetivos. Suely Franco é uma atriz experiente que aglutina todos os bons adjetivos que a qualificam como irretocável intérprete. Suely elabora Lily com seriedade, oscilação de temperamentos, visão crítica dos comportamentos individual e coletivo, honestidade e exato nível de comédia. E Tuca Andrada, que também guarda galeria de profícuas contribuições para as Artes, apesar da juventude, compõe Michel com suavidade, certas petulância, deboche, ousadia, lançando mão de gracejos e elegância. Enfim, Suely e Tuca formam par que a princípio soaria improvável, contudo na prática se mostra união perfeita de personalidades díspares que compartilham “substância” bastante preciosa: a emoção de cada um. As danças, sem dúvida, ocupam lugar privilegiado e meritório no espetáculo, sendo executadas com supremas precisão, brandura, e fortaleza de movimentos em conjunção com exuberância nas expressividades corporais feminina e masculina. As coreografias pensadas pelo consagrado Carlinhos de Jesus atendem com reverência ao “swing”, ao “foxtrot”, à valsa vienense e à música contemporânea. Deduz-se que o trabalho de Carlinhos se configurou como aspecto solidificador para o sucesso da trama. Suely e Tuca são exímios alunos, jamais aprendizes. Os figurinos do requisitado, e com razão, Cláudio Tovar, um dos maiores entendedores do assunto, são alegres, despojados, graciosos, finos, extravagantes, sensatos, obedientes ao texto, e por vezes de modo proposital engraçados. O público aguarda com ansiedade a próxima surpresa urdida por Cláudio nas várias sequências de trocas de roupas. A direção de arte de Vera Hamburguer se embrenha numa sofisticação e requinte “clean”. Somos levados para idílico terreno branco, seja no sofá de couro em estilo capitonê e almofadas, cadeiras estofadas com camurça e espaldar em vime, quadros, estantes, cristaleiras, utensílios domésticos, espelho oval, relógio “vintage”, aparador e console, mesas e cadeiras de cozinha, seja nas persianas e paredes de madeira ripadas. Um conjunto total que louva a branquidão. Um dos recursos que nos enleva irremediavelmente é o fundo do apartamento simulador de vista para o mar, em que se vislumbram belíssimas e arrebatadoras imagens de pôr-do-sol, alvorada e noites com suas diferentes fases lunares. A iluminação de Wagner Freire nos acarinha com gama generosa e liberal de cores, realçando o azul, o laranja e o rosa, além dos condizentes focos e a amplitude lógica e adequada de um plano frequente aberto de luz. “Seis Aulas de Dança em Seis Semanas” não se restringe à dança com intentos de provocação do riso fácil. Existe o riso, sim. Todavia aquele que se identifica com as dores e conflitos alheios. Um riso nervoso com lapsos de descontração. A peça de Alfieri é um signo probatório das nossas fragilidades, da nossa vulnerabilidade atroz. Um libelo contra a vergasta abominável do preconceito. Entretanto, o que se depreende como mais relevante na encenação protagonizada por Suely Franco e Tuca Andrada é o hastear de flâmula que ao sabor de severo ou misericordioso vento no seu íntimo brandir nos afirma de que há esperança na vida, e que esta pode estar simbolizada de maneira sublime por duas gerações que sem pundonor amam o amor e são amigas fidedignas da amizade.