Num espaçoso loft, sentado em cadeira giratória, sorvendo goles rápidos de café quente em caneca, e fumando cigarro após outro, o diretor/dramaturgo (ou como ele mesmo se autodefine, adaptador) Thomas (Pierre Baitelli), com evidente postura frenética, incisiva e eivada de pessimismo discorre em soltas palavras ao telefone acerca da infinda dificuldade de se encontrar a atriz adequada para personificar o papel de peça que irá montar. A peça em pauta é baseada num romance alemão escrito em 1870 por Leopold Von Sacher-Masoch, “Venus in Fur” (o termo hoje conhecido como sadomasoquismo adveio do sobrenome do romancista levando-se em conta sua pioneira menção sobre o tema tabu). Leopold fora auxiliado pela escritora Fanny Pistor. Municiado de opiniões implacáveis, Thomas defenestra as intérpretes atuais no tocante ao comportamento, faltas de preparo para o ofício e carência de cultura e vocabulário nos seus mínimos patamares. Uma geração “tipo assim”. Bate à porta, e logo irrompe resfolegante bonita candidata (Bárbara Paz, indicada ao Prêmio Shell de Melhor Atriz) à personagem Vanda (por sinal, o mesmo nome da artista). A pretendente se atabalhoa com gigante bolsa, e a ansiedade a persegue com covardia. Mostra-se a todo o tempo tenaz no convencimento de sua capacidade de vivenciar a mulher do século XIX. O adaptador não capitula. É duro, questionador, reticente e frio. O inevitável emerge, e se inicia processo conflituoso e desconcertante, tenso e “nervoso” entre ambos de maneira que se atinja acordo comum e final à respeito da escalação. Se antes o rapaz que idolatra o visom “entranhado” em sua mente por visitas cruéis de tia no passado trajada com a pele, e que lhe proporcionava “estranhos prazeres” ao vergastá-lo com vara de marmelo, ocupa privilegiada posição de dominador, a seguir a jovem com arrebatadores olhos verdes que falam por si mesmos, e que lhe fora entregar livro perdido de Goethe, “Fausto”, achado em bosque pouco longínquo, e que continha marcador com pintura da Vênus de Ticiano, além de rascunho de poema redigido de próprio punho por Thomas, com surpreendente potencial de atuação, memorização das falas inacreditável (carregava consigo inclusive todo o “script” da peça, o que aumenta o mistério de quem seja de fato), entendimento vasto do perfil de Vanda e que, volta e meia, sugeria ideias criativas nunca dantes pensadas pelo irritadiço encenador, inverte com mérito o jogo, assumindo a função de dominadora da vez. As leituras de texto se sucedem, e a figura da metalinguagem adquire preponderante posto, numa mistura eficaz de ficção e realidade, em “Vênus em Visom” (um sucesso na Broadway e na Off-Broadway que rendeu o Tony de 2012 a Nina Arianda, que contracenou com Hugh Dancy; Roman Polanski adaptou para as telas, e obtivera a indicação para a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2013), de David Ives, dirigida por Hector Babenco, e traduzida por Daniele Ávila Small. Hector, respeitadíssimo cineasta, tem nos provado em suas incursões nos palcos de que faz jus a similar adjetivo superlativo, valendo-se sem desperdícios do instigante e provocador texto de Ives e do irretorquível talento dos protagonistas, para “costurar” espetáculo envolvente, charmoso, inebriante, sensual/erótico e provido de inteligência em sua completude. Babenco “saboreia” cada diálogo e respectiva entrelinha que possui em mãos, e faz com que tanto Bárbara quanto Pierre façam o mesmo, utilizando-se os dois de um trabalho irrepreensível de corpo (a plasticidade deste em suas formas é explorada com primor e congruência) e voz (timbres distintos para o real e o fictício). As emissões vocais são pujantes, suaves, sedutoras, precisas, titubeantes, indecisas, irônicas e vorazes, correspondendo a cada cena pedinte. Percebem-se, e aceitamos de bom grado, vestígios cinematográficos em alguns momentos da montagem, seja nos trovões e relâmpagos que entrecortam e delineiam pontos-chaves da história seja na adoção próxima que nos remete a uma interpretação inspirada no Expressionismo Alemão durante os ensaios (fugindo com lógica do Naturalismo, o que facilita a nossa compreensão), cumprindo-se limites, é claro, e que não resulta em instante algum em artificialismos dispensáveis. Muito pelo contrário. Um acerto pontual. Há ainda mudança ousada de personagem pelos atores, fato comprobatório da versatilidade destes e da engenhosidade do diretor. Hector Babenco, Bárbara Paz e Pierre Baitelli nos “assombram” com devastadoras aptidões de transpor com alta qualidade para o tablado a não fácil, e por esta razão fascinante, dramaturgia de David Ives. O cenário de Bia Junqueira é suserano em sua factibilidade e realismo. Belo é vocábulo que se adequa ao que vemos na simulação do loft tipicamente americano em seus contextos funcionais e práticos. Vislumbram-se vigas de aparência férrea transversais de lado a lado, imponente janela/claraboia que se debruça sem riscos sobre a mesa de Thomas, com os acessórios de escritório, atinentes a que se tem direito, cadeiras, outra mesa ao fundo que serve para majestática performance de Bárbara “à la Marlene Dietrich”, cano de sustentação hidráulico (o simbolismo fálico fica a critério de cada um, ou “como melhor lhe aprouver”), e um providencial e atuante divã com textura crua. As paredes exibem miríades de tijolos, e há porta de ferro que clama sua presença. O negro e o cinza formam aliança. Os figurinos de Antônio Medeiros são valorizados por producente escolha de peças que condizem amiúde com a proposta comportamental dos tipos inseridos no enredo. Ora se notam blazer, camisa social branca, suspensórios “bordeaux”, calça, tênis, fraque, óculos com armação “vintage” e casaco “antique” em Pierre ora se notam “trench coat”, “corselet” de couro com metais e correntes, scarpins com salto agulha, vestido de seda rosa claro que nos transporta à final de século distante, visom, xale rendado e uma eloquente bota de cano longo preta fetichista em Bárbara. Já a iluminação de Paulo César Medeiros (indicada ao Prêmio Shell de Melhor Iluminação) faz opção elogiosa por conjunto de refletores que se revezam em múltiplas intensidades, dando a exata ambiência da ação. As luzes são magnânimas e insinuantes nos sombreados, focos oblíquos e centrais, supervalorização dos atores em meio à escuridão total em passagens intimistas. Há também a impessoalidade de três apropriadas luzes frias. “Vênus em Visom”, que proclama que “as pessoas são fáceis de se explicar, mas difíceis de se decifrar” se distingue e se destaca por vários aspectos: a abordagem da sinopse e consequente contextualização competentíssimas de Hector Babenco; a correspondência honrosa e disciplinada do elenco; a sutileza de tratamento de assuntos áridos mas que, no entanto, causam ilimitada curiosidade no indivíduo e a percepção técnica dos profissionais envolvidos na espetacular produção (de Cinthia Graber). Se “Vênus em Visom” abrange precipuamente a dominação do homem pela mulher/mulher pelo homem, nós, espectadores, somos vítimas potenciais de modo concomitante dos sexos masculino e feminino, porquanto Pierre Baitelli e Bárbara Paz nos “dominam” do introito ao epílogo. Aproximando-se do término, contudo, somos “alforriados” por um Pierre “São Sebastião” e uma Bárbara “Poderosa Afrodite”. E brindados com som rascante de Lou Reed. Afirmo e reafirmo o que dissera sem ambivalências nem tampouco ambiguidades.