Blog do Paulo Ruch

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Foto: Studio C

O ato de se levar aos palcos Clarice Lispector por si mesmo já pode ser considerado elevado. Mas não “se leva” apenas Clarice Lispector aos palcos. Deve-se obrigatoriamente corresponder à excelência das ideias e pensamentos da escritora e jornalista ucraniana que chegou ao Brasil em 1920, uma das figuras mais insignes e representativas da Literatura nacional do século passado. Uma tarefa que foge da facilidade e que exige profundo entendimento, clareza dos objetivos e capacidade imensurável de estruturar em uma narrativa teatral lógica e reverente aos preceitos desta. Beth Goulart, uma atriz que, como todos sabemos, possui sólida, respeitável e prolífica carreira, decidiu ir além de suas potencialidades sabidas, e se arriscou com mérito a adaptar (e dirigir) um espetáculo que dissesse um pouco mais sobre Clarice, e incentivasse o público a descobrir as suas obras, e delas extrair a importância que um dia servira à própria Beth. A intérprete colheu depoimentos, entrevistas, correspondências e trechos de seus livros “Perto do Coração Selvagem”, “Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres” e dos contos “Amor” e “Perdoando Deus”, e realizou uma magnífica adaptação, que nos dá uma bela dimensão do infinito e rico universo da literata. Beth (com a preciosa supervisão de Amir Haddad) dirigiu “Simplesmente eu, Clarice Lispector” (Prêmio Qualidade Brasil de Melhor Espetáculo) de forma que houvesse uma evocação sensível, emocional, com finíssimo humor, comovente e empática. A diretora se vale não só da poderosa presença de Clarice Lispector (que é esmiuçada na sua complexa, conturbada, fascinante, coberta de ironia, perscrutadora e sábia personalidade), mas de quatro outras personagens de suas publicações para fazer a plateia absorver a abrangência da sua imaginação. Joana, de “Perto do Coração Selvagem”; Lóri, de “Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres”; Ana, do conto “Amor” e outra mulher anônima do conto “Perdoando Deus” são usadas como eficazes instrumentos de mergulho nos seus inventivos escritos. No que concerne à sua atuação, Beth (vencedora dos Prêmios Shell, APTR, Qualidade Brasil e Contigo! de Melhor Atriz) cumpre com notórios garbo, nobreza, dignidade, emoção, um equilíbrio exato entre a graça e o drama, uma interiorização plena, legitimidade e um despojamento apropriado e bem-vindo para os outros papéis como pouco se vê no teatro atual. Beth pode, sim, vangloriar-se de apresentar a todos uma das mais brilhantes interpretações já vistas. A caracterização feita na artista é impressionante e fiel, um trabalho irrepreensível de visagismo de Westerley Dornellas, dando a Beth/Clarice uma beleza suave, diáfana e iluminada. Os movimentos de corpo são precisos, graciosos, bonitos, leves em sua insustentabilidade. Seja nos passos firmes com pés descalços, seja na sensual dança ao som que nos remete a um tango, seja nos delgados desenhos feitos no ar com os seus braços. Uma admirável direção de movimento que coube a Marcia Rubim. A entoação de voz de Beth Goulart se alterna entre o acento melífluo e pujante ao mesmo tempo de Clarice Lispector e um tom natural e diverso quando vivencia as demais personagens. Há que se lembrar de que existe belíssimo momento no qual a atriz canta uma canção em forma de prece (Beth também é uma exímia cantora). Os espectadores são direcionados para um estado de enlevo e encantamento (ótima preparação vocal de Rose Gonçalves). O cenário de Ronald Teixeira e Leobruno Gama é um deslumbre, algo que faz com que fixemos nossos olhares com constante êxtase. Ronald e Leobruno se utilizam de uma enorme cortina com textura branca e brilhante subdividida em persianas ocupando o espaço de um semicírculo, uma cadeira sofá vintage, uma chaise longue (com tecido cru), um pufe claro, uma pequena mesa laqueada negra em dois planos sobre a qual se encontra uma máquina de datilografia e dois cinzeiros, um pequeno e outro “de pé”. Uma referência ao ambiente sessentista/setentista em que viveu de modo efusivo a autora. Tanto Beth quanto o cenário são bem valorizados pela caprichada e inspirada luz de Maneco Quinderé, que não se esquiva de aplicar uma iluminação com planos abertos, que se expandem, ultrapassando as linhas limítrofes da ribalta, focos insinuantes, poéticos e “silenciosos”. Um vermelho soberano e gritante que nos desconcerta. Um cruzamento de feixes de luz que moldam a silhueta da atriz, sombras fantásticas e carregadas de enigma e a comunhão de dois refletores, um em cada lado do palco. A trilha sonora de Alfredo Sertã (que se baseou em Eric Satie, ArvoPart, Debussy e Lalo Schifrin) é extremante adequada, cheia de acertos, priorizando com a devida compreensão a ambiência da cena. Há ruído de chuva e trilhar de bonde. Os figurinos de Beth Filipecki foram escolhidos com esmero, e nota-se que intensa pesquisa fora feita, a fim de que não tenhamos dúvidas de que estamos defronte a uma verdadeira Clarice Lispector. Beth usa sem parcimônia e sempre atendendo à elegância blusa de seda/cetim branca acompanhada de uma faixa preta e uma saia drapeada também branca, um vestido barroco “perolado”, um xale rendado, um indefectível colar de pérolas, um vestido negro “grave” com rubro forro, um casaqueto vermelho adornado com grandes botões negros, um “peignoir” transparente preto e um par de escarpins da mesma cor. As projeções de vídeo (criação de Fabian e edição de Glaucio Ayalla) são harmoniosas, lúdicas e românticas, oferecendo charme extra à encenação. Voltando ao texto de Clarice adaptado por Beth Goulart, uma relevante gama de questões é abordada, como vida e morte, criação e inspiração, cotidiano, filhos, Natureza, amor, realidade, sonho, pertencimento, solidão, culpa e outros temas. A abordagem é feita com profundidade intelectual e não desperdício de sua significância. Clarice se faz várias perguntas, e com ela nos perguntamos involuntariamente. Clarice especula, e nós especulamos. Ela duvida, e duvidamos. Indaga a si mesma o porquê de escrever. Desconhece a razão. Não se deve desdenhar da intuição tampouco do poder das palavras. Clarice não tem a vaidade de ser uma respeitada escritora, porém gosta de ser vista como uma bonita mulher. Clarice é humana. Seria o ritual da escrita uma maneira de se sentir “existente”? De encontrar a real identidade e preencher supostos vazios internos? Escrever é uma atividade solitária e angustiante. Para se bem escrever, um interregno se faz premente, para que ideias sejam renovadas. Necessita-se escrever. Não é recomendável pensar de antemão sobre o que se escreverá. Reunir frases merece espontaneidade e instinto. Provável que seja um modo infalível de se compreender melhor o mundo. Cria-se quem sabe para se aproximar da realidade. A grandeza de um sonho tem um oponente à altura? Desde o nascimento, possuímos a urgência de “pertencer”. Um escritor pode praticar o seu ofício tanto por talento quanto por vocação. Viver é curto. Vivemos num eterno “por enquanto”, “espremidos” entre o desconhecido do “antes” e do “depois”. Por que sentimos que Deus se afasta de nós em alguns instantes? Seria Ele um matemático? A morte nos reserva algo? A misericórdia não é um gesto de gentileza e sim uma demonstração da capacidade de amar. Um amor transformador. Vivemos num permanente conflito. Não sentimos como pensamos. Não pensamos como sentimos. Não compreendemos o que julgamos ser compreensível. Procuramos algo por toda uma vida sem sabermos ao certo qual o objeto de nossa infatigável procura. Percorremos pedregosos e íngremes atalhos para atingirmos um estado de graça, uma felicidade plena e calma, onde não há dúvidas. Existir sobre águas mansas. Sintamos em algum átimo de tempo, o invulgar sentimento de sermos a “Mãe de Deus”, a “Mãe da Terra”. Algo nunca experimentado ou vivido. Por mais penoso que nos seja, testemunhemos as dores e sofrimentos de nossos frutos, os filhos. Adentremos em nosso ser, e procuremos conhecer a essência nata. Não temamos os riscos. Se não nos movermos, poderemos perder a oportunidade única de sabermos quem somos. Clamemos a Deus por sua proteção, sua bênção, sua vigília. Peçamos a Ele que jamais sejamos abandonados, largados à própria sorte. Isto é o que depreendi do que “simplesmente” disse Clarice. Amém.

Um comentário sobre “” ‘Simplesmente eu, Clarice Lispector.’ Simplesmente ela, Beth Goulart. “

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