Foto: Divulgação do espetáculo
Imagine-se na insólita situação de acordar algemado a alguém que jamais vira sobre uma cama de casal em um quarto de hotel que atende pelo sugestivo nome de “Hotel dos Flamingos Dançantes?” Tanto Edu (Ricardo Pereira), jornalista investigativo “quase econômico” com pretensões de assinar coluna política em jornal com direito a foto, quanto Cléo (Maria Ribeiro), uma atriz ex-apresentadora de programa infantil que emulava com Simony, casada, filha de um rico e poderoso libanês com influências no Congresso Nacional, ficam compreensivelmente atônitos com a bizarrice do episódio. O desespero mútuo regado a bastante humor é somado por sequência intermitente de diálogos com acelerado ritmo, perguntas e respostas de lado a lado, que levem a um possível esclarecimento dos nebulosos fatos. Ambos especulam se foram vítimas de um sequestro, se são usados como “experimentos” de um laboratório de Neurociência ou se são participantes de um “reality show”, com microcâmeras espalhadas por todos os cantos imagináveis. A fim de incrementar o mistério da dupla confinada são achados um pacote de dinheiro no banheiro, e no chão do cômodo um telefone antigo, uma pedra, um peixe (!) e um corpo desfalecido ou morto escondido no armário. Edu e Cléo têm a chance de, cada um na sua vez, reconstituir o que houve “sobre ontem à noite”. Quem estará falando a verdade? Cléo? Edu? E ainda há uma terceira versão narrada pela descendente de libaneses. Seria esta a definitiva? Por que Edu e nós deveríamos nela acreditar? E o sonho similar que os dois tiveram? Paira o suspense. O bem elaborado, inteligente, dinâmico e divertido texto do dramaturgo Rafael Primot aposta, e logra indiscutível êxito, em uma trama com contextos que pouco se veem nos palcos nacionais, com ingredientes policialescos/detetivescos configurativos de um legítimo thriller ou suspense. E o faz com extrema habilidade, ritmo, conhecimento de causa e, reitero, sem abjurar da graça, que está inserida no absurdo vivificado pelos personagens. Rafael é audaz em seu intento, pois este gênero cênico pode vir a se tornar uma armadilha para mãos não capacitadas para deter um domínio sobre intricada rede de informações e seus desdobramentos, que obrigatoriamente teriam que se direcionar para um epílogo engenhoso que satisfaça ao público com coerência, sem deixar dúvidas ou inquirições pendentes, ou que se busque via alternativa que supra os pioneiros objetivos, desde que se alcance a aprovação dos espectadores. E Rafael Primot sai vitorioso deste desafio. Observa-se nítida paródia aos “realities shows” e peculiaridades natas, aos quais estamos acostumados há mais de década. O cinema, seus mitos e símbolos são referenciados, como um filme de Gregory Peck e Ingrid Bergman, o cineasta inglês Alfred Hitchcock e os icônicos sapatos vermelhos de Dorothy, o papel que eternizou Judy Garland, no clássico musical de Victor Fleming, “O Mágico de Oz”. O espetáculo “Um Sonho Pra 2”, com direção de Michel Bercovitch e direção de produção de Léo Fuchs, ganha em seu desenrolar um grau de tensão e expectativas sem freios, o que felizmente desperta na plateia um crescente interesse pela elucidação do entrecho. Michel Bercovitch “embarca” com deliberação pela sinopse, aproveitando com sucesso os elementos irresistíveis que lhe são fornecidos por aquela e elenco, construindo uma peça teatral que obedece com reverência aos ditames que regem uma história plena em aspectos misteriosos, instigantes e curiosos que fogem da realidade. Não nos esqueçamos em hipótese alguma de que se trata de uma comédia policial com apropriadíssimo dinamismo. O resultado, por conseguinte, é altaneiro. Ricardo Pereira e Maria Ribeiro, atores que além de bonitos, são reconhecidos pelo público por seus talentos sólidos e estabelecidos, defendem intensamente seus personagens, com um nível elevado de qualidade irretorquível. Ricardo e Maria são vencedores e gloriosos ao responderem de modo exemplar a uma gama extensa e diferenciada de emoções, e por isso mesmo, nada facilitadora para qualquer profissional. O ator, como Edu, em interpretação insigne e consistente, desenha um perfil no qual ficam evidenciados traços marcantes e indeléveis de sua personalidade que transita pela estupefação, pelo cômico, ansiedade e pausas cativantes em que se notabilizam os romantismo e sedução, traduzidos ao demonstrar que é capaz de amar, sentir desejos e até recitar bela poesia. E Maria Ribeiro (forma com Ricardo um casal com retumbante entrosamento), como Cléo, segue fielmente a mesma trilha de excelência de Ricardo. Em magna e digna atuação, com charme e beleza a circundá-la, Maria impõe com doses precisas que atingem equilíbrio interpretativo louvável a configuração da psicologia da mulher que se vê inesperadamente envolvida em um imbróglio. Seria descabida a não menção do ótimo trabalho corporal que nos mostram, afinal estão presos um ao outro por algemas em seus calcanhares, o que não os impede de caminhar com desenvoltura pelo espaço da ribalta. O cenário reproduz com veracidade o universo de um quarto de hotel, onde se percebem um largo biombo ao fundo que simula a parede daquele, suas portas e janela e o banheiro. Usa-se como pintura um listrado verde vertical. Como acessórios da ambientação, uma cama de casal, uma mesinha de cabeceira com diminuto abajur e armário (todos em estilo colonial), uma cadeira Luis XV e uma mesa de ferro com taças e garrafa de bebida no interior de balde a encimá-la. A iluminação reúne significativa “paleta” de variantes. Assume posição singular, tomando para si o mérito de valorizar o espetáculo. Os atores são focados oportunamente, assim como também são oportunos os direcionamentos oblíquos de luz, as sombras e o plano geral. Tudo realizado com eficiência, harmonia e senso de oportunidade. A trilha sonora (que inclui a delicada “A Fine Romance”) se nota relevante ao desfilar um acompanhamento musical incidental em consonância fidedigna ao suspense. Os figurinos foram escolhidos com consciência e adequação à narrativa, simbolizados por lingerie, vestido e escapins de vinil vermelhos, regata branca, camisa social clara e cueca samba canção com listras azuis. “Um Sonho Pra 2” é um regalo para os diletantes de teatro, não só pela arrojo de sua dramaturgia, pela nobreza de seus atores, Ricardo Pereira e Maria Ribeiro, por saber imiscuir com superioridade comédia, suspense, drama e romance, mas também por nos convencer, sem espaços abertos para argumentos contrários, de que a despeito de uma vivência não prevista, seja ela fictícia ou real, é possível sentir o indescritível prazer de se dar o beijo de um primeiro encontro. Isto é um sonho não para 2, mas para todos nós.