Um vocábulo com apenas três letras. Porém, com som forte. E significado que ultrapassa a mais sensata compreensão. A dor. Conhecemo-na sob vários aspectos e derivações. Os doutores do corpo humano atestam que a física é um indicativo importante de que algo está em discordância com o correto funcionamento do organismo. Sempre questionamos sobre qual é a maior das dores. Muito se fala das dores do parto. Dar à luz com dor. Dar a vida a alguém implica necessariamente em sentir dor. O próprio recém-nascido a sente e a expressa com vagidos, pois seus frágeis e pequeninos pulmões não estão acostumados ao “novo” oxigênio. Ademais, existe a tão sofrida quanto temida dor moral. Assim como há a dor da culpa, do arrependimento, da traição, da ingratidão, do amor não correspondido e da solitude. Quando se discute a dor inevitável que surja alguém que avente a hipótese de se combatê-la com a superação. No entanto, sequer citamos talvez a mais devastadora delas: a dor pela morte. Indo além, a dor pela morte de um filho. Dentro deste contexto é que o escritor e letrista americano David Lindsay-Abaire construiu a dramaturgia de “A Toca do Coelho” (“Rabitt Hole” no original; vencedora do Prêmio Pulitzer de 2007; indicada a diversos Tony no ano seguinte, tendo como ganhadora a intérprete de Rebecca, Cynthia Nixon; levada às telas por Nicole Kidman, que concorreu ao Oscar na categoria de Melhor Atriz, em 2011), que se concentra em um núcleo familiar desmoronado após a morte trágica de um menino, Dani, de apenas quatro anos, vítima de um atropelamento porque estava correndo atrás de seu cachorro de estimação, e suas brutais consequências no cotidiano de cada um dos membros daquele (no Brasil, Simone Zucato foi a responsável pela tradução e Alessandra Pinho pela adaptação da peça teatral, ambas cumprindo suas missões de modo impecável, comprovando a universalidade do seu teor). Se antes a família era estruturada, feliz e “normal”, hoje está estraçalhada, pulverizada em múltiplos pedaços, buscando estratégias de enfrentamento para melhor suportar o sinistro. A configuração de seus sentimentos pessoais e interpessoais tivera que ser obrigatoriamente redesenhada. Cada indivíduo participante do clã, o pai, a mãe, a avó e a tia encaram e convivem com a sua dor de maneira distinta. Seja ela mais explícita ou escamoteada por detrás de uma couraça. A bonita e ampla casa onde moram é assombrada por fantasmas de culpabilidade. O “se” os persegue sem dó. Perguntam-se: “E se eu não tivesse deixado o portão aberto?”, “E se eu não tivesse ligado para falar de mamãe?” (reproduções próximas). O cachorro seria o real culpado na sua fiel irracionalidade? Se Deus é o Todo-Poderoso, por que tirar um anjo da Terra e não criar um outro qualquer para estar ao seu lado? Rebecca/Becca (Maria Fernanda Cândido), a mãe, em meio a arrumação das roupinhas infantis com listras e cores do seu rebento perdido, exibe alma esfacelada, transfigurada na composição original, um verde olhar absorto que contempla horizonte que não mais existe, vivenciando um luto permanente que a engessa e reprime o mais fugaz e imprevisto esboçar de um sorriso. O seu “ofício” é a lembrança, o passado, “o que podia ter sido”. O pai, Paulo (Reynaldo Gianecchini), que trabalha no mercado financeiro (investimento de risco), a princípio represa a lancinante dor de sua condição parental, com tentativas infrutíferas de se lograr uma sustentação viável das relações afetivo/familiares. Os seus bom humor e espirituosidade são fracos, pífios diante do quadro de desgraça que fora pintado não se sabe por quais mãos. Um muro o qual se deve transpor com intento de se atingir mínima razoabilidade de sobrevivência. Paulo tem momentos em que verdade íntima emerge, como quando assiste a vídeo em que seu filho Dani diz: “Papai, eu vou ficar invisível”. A avó Natália/Nat (Selma Egrei) observa a existência do homem com visão crítica, ácida, irônica, sem falsos moralismos ou hipocrisias, fazendo da autenticidade o leme seguro para singrar mares menos revoltos, e com sorte, conseguir paz idealizada. Para ela, também vítima da perda de um filho, a dor é algo perpétuo, que sofre tímidas mutações, como se fosse um tijolo a ser carregado no bolso e que vez por outra sente-se o seu grande peso no decorrer do tempo. A irmã de Rebecca, Isa/Isabel (Simone Zucato) possui “a priori” sedutora irresponsabilidade jovem, com seu perfil transgressor, potencialmente rebelde, com exultação pouco corrompida ou adulterada pelos reveses nossos de cada dia. A gravidez inesperada que a leva inevitavelmente a sentir ebulição de emoções antecipou o amadurecimento. E, por último, o “agente” desencadeador de toda a miséria coletiva: Gabriel (Felipe Hintze). Um adolescente com inseparável moletom vermelho que almeja ser escritor. No volante do letal carro, havia suas alvas mãos desorientadas que ocasionaram o fenecimento da matéria vulnerável de criança desapercebida. Gabriel não sabe ao certo se é culpado ou não. Hesita quanto às circunstâncias factuais do acidente, e como atenuante para se redimir escreve um livro (e o dedica a Dani), chamado “A Toca do Coelho”, uma ficção científica em que o filho sai à procura do pai cientista que se perdeu em universos paralelos, buracos inexplorados ou até mesmo na toca de um coelho. Com o que se disse até agora, deduzimos que do prólogo em diante David Lindsay-Abaire põe em xeque a imprevisibilidade das nossas vidas, com inteligência apurada e refinado humor. O nosso confronto com a finitude, a impositiva aceitação da morte e o desejo desmesurado de se encontrar a chave da superação da dor, e por conseguinte a continuidade de nossas funções terrenas. Com este material fascinante e profuso em conteúdos emocionais de inegável apelo, o diretor Dan Stulbach (em sua estreia neste desafiador encargo) nos deixa claro, visível e patente o seu completo entendimento e cognição acerca da proposta dramatúrgica de Lindsay-Abaire. Dan, um intérprete reconhecido e prestigiado por sua rica trajetória artística, valeu-se precipuamente da supremacia da sensibilidade no seu mais altaneiro simbolismo (e a sua experiência contribuiu amiúde para o êxito final) para emoldurar um panorama cênico marcado por avassaladora dramaticidade e inexorável realismo. Percebe-se com nitidez que Dan Stulbach deu um enfoque especial ao trabalho de ator, utilizando-se de toda uma gama de recursos interpretativos disponibilizados com liberalidade pelo formidável elenco. O encenador apostou e logrou êxito nas possibilidades várias oferecidas pelas temática e ferramentas colaborativas para a construção de um espetáculo. Aproveitou-se dos dinamismo e agilidade dos diálogos (inteligentes em sua totalidade) carregados nas tensão e fina graça. Há instantes de legítimo e imperioso silêncio, pausas obrigatórias, como há também diversificação de movimentos dos artistas pelo amplo espaço do tablado. Os atores (com a bem-sucedida preparação corporal de Leandro Oliva) ostentam posturas específicas, naturais, complementares da personalidade de cada personagem. Quanto às atuações, um dos trunfos indiscutíveis de “A Toca do Coelho”, somos transportados irreversivelmente para um estado de enlevo sem comparação ao assistir a não apenas interpretações louváveis e magnas, mas performances que transcendem o vezeiro e o useiro, alcançando singularidade mais do que objetivada. Maria Fernanda Cândido se mostra inteira, entregue nas fragmentações emotivas de Rebecca. Maria nos faz crer em uma mãe mergulhada em infindas dores, feridas não cicatrizadas, em lágrimas da ausência sentida que ainda teimam em verter sobre delgada face. Uma atriz que nos convence de que seus lindos olhos verdes estão de fato tristes. Maria atinge, sem dúvida, um de seus mais sólidos e tocantes momentos na carreira. Reynaldo Gianecchini é um ator especial com uma história profissional igualmente especial. A superioridade e elevado nível de sua composição de Paulo é tão somente uma corroboração vívida, palpável da trajetória de um artista o qual acompanhamos desde razoável tempo, que não se deixou cair em tentações que irromperam à sua frente, como uma acomodação ao status no qual fora colocado, engajando-se corajosamente em seguidas e arriscadas experiências teatrais, com os mais renomados e distintos profissionais da área, amealhando uma respeitabilidade inabalável junto ao público e crítica. Paulo, desta forma, ratifica essa maravilhosa bravura de um ator. Selma Egrei. É uma desafiadora responsabilidade falar a respeito de uma atriz da sua grandeza, credibilidade e prestígio. Selma entra em cena, e isso já nos é o bastante para nos asseverarmos de sua pujança espontânea e personalíssima, de sua cativante beleza, que com firme ou suave voz nos manipula saudavelmente pelas veredas trilhadas por sua emotividade. Não à toa a sua Natália nos conquista com jeito irremediável. Simone Zucato, uma bonita e talentosa atriz que nos surpreende, arrebata-nos, enternece-nos com vibrante atuação. Entende com absoluta verdade a evolução gradativa do comportamento de Isabel que, como já dissera, segue o caminho que começa na rebeldia e chega à maturidade de uma futura mãe. E o que dizer sobre Felipe Hintze? Como se descobre este jovem eminente ator em uma miríade de aspirantes de mesma faixa etária ao exercício das Artes Dramáticas? Felipe é, devo atestar, possuidor de unicidade poucas vezes testemunhada em um intérprete no alvorecer de sua vivência. Um artista que constrói o seu personagem escavando as minúcias, pormenores e elementos subliminares de seu perfil. Impressiona-nos que mesmo em posicionamento imóvel de corpo, destila o texto sob as mais vastas intenções. A lentidão propositada de suas marcações corresponde à velocidade com que identificamos a sua qualidade como ator, desde já uma das promessas de sua geração. O cenário de André Cortez é arrojado, prático e funcional, atingindo valoroso resultado. André montou uma confortável casa na qual reside a família, decorada com um sofá vintage de madeira com estofamento branco, mesa de jantar, duas banquetas e uma cadeira do mesmo estilo citado, uma cama de casal ao fundo, uma geladeira marrom, duas estantes altas brancas em cujas prateleiras estão brinquedos variados e bichinhos de pelúcia (representam o antigo quarto de Dani), um bloco divisório e um frondoso jardim de inverno. O diferencial é que os cômodos são divididos com sabedoria por armações vazadas, com respectivas entradas e saídas (estas mesmas armações detêm vitrais superiores que ora podem ser abertos ora podem ser fechados). Os figurinos de Adriana Hitoni são soberanamente objetivos e coerentes, optando tanto pela sobriedade dos tons neutros como o cinza e o creme, quanto pela alegria de uma estampa floral ou pela especificidade que reporta a um visual punk. O desenho de luz de Marisa Bentivegna explora intensa fileira de opções, concretizando-se como feliz e bem planejado conjunto enriquecedor da peça. Marisa decide por planos gerais (a luz aberta não é “estourada”, e sim tênue, agradável aos olhos), focos duplos e oblíquos, além dos verticais, um azul e suas oscilações, um verde que realça o jardim de inverno e uma solução inventiva ao fazer “percorrer” pelos elos das armações uma luz vermelha insinuante. As projeções de imagem (“video mapping”) executadas pela BiJari são comoventes (nelas pode-se ver Dani correndo, sem que se mostre o seu rosto). A preparação vocal é de Edi Montecchi e realiza um meritório trabalho. A trilha sonora original é composta por Daniel Maia (com design de som de Bruno dos Reis), e prima pelos sons instigantes, pontuais, marcadores das cenas, valorizadores do drama, embalados por instrumentos de cordas e piano. O grupo inglês Oasis deixa o seu legado na obra com “Wonderwall”. “A Toca do Coelho” apresenta um sem número de razões para ser montada: o registro do talento dramatúrgico de um jovem autor americano, a oportunidade que se deu a Dan Stulbach de ostentar outra vocação tão dignificante quanto a que já conhecíamos, o elenco uniforme em seus talento e brilho e a abordagem de um tema universal, doído sim, porém tratado com leveza e brandura, sem preterir de certa provocação ao integrar o indivíduo dentro de um contexto de adversidades. Segundo a peça, podemos encontrar a salvação, a solução para a nossa dor em “universos paralelos” e suas “rabitt holes”. “A Toca do Coelho” se consolida como um universo real onde saciamos nossas veleidades de se conferir um espetáculo teatral onde Maria Fernanda Cândido, Reynaldo Gianecchini, Selma Egrei, Simone Zucato e Felipe Hintze estão em entorpecedor estado de graça.