Foto: Divulgação do espetáculo
Na ficção, em especial nos contos de fadas, o epílogo vem sempre acompanhado da otimista e utópica proposição: “E foram felizes para sempre…”. Na vida real, os fatos são inapelavelmente opostos ao que se apregoa nas histórias infantis. Parece haver, na verdade, um prazo de validade, uma data de vencimento para o estado de felicidade. Um relacionamento amoroso e todas as suas etapas não escapam a esta constatação, em muitos casos. No primeiro monólogo escrito por Heloisa Périssé (Heloisa possui vasta gama de obras dramatúrgicas, incluindo o sucesso “Cócegas”; seu livro “O Diário de Tati” teve ótima repercussão no mercado editorial), “E Foram Quase Felizes Para Sempre”, dirigido por Susana Garcia, sua personagem, a escritora Letícia Amado, representa o signo individual de uma mulher vítima das agruras subsequentes ao rompimento de uma relação afetiva. A peça começa com Letícia ansiosa e aflita em sua noite de autógrafos, e decepcionada com o convidado esperado que não comparecera ao evento. O livro a ser lançado se chama “Cantinho pra Dois”, com dicas para casais viverem momentos prazerosos e inesquecíveis ao redor do mundo nos melhores lugares, hotéis e resorts. No período de dedicação ao livro e às viagens, Letícia, sem que se desse conta, fora negligente com o romance. Seu companheiro, o “freelancer” Paulo Vitor, responsável pela capa da sua publicação, deixara de ser uma prioridade, e a união, lógico, desgastara-se progressivamente. Com a separação definitiva (e imprevistas recaídas de praxe), a literata enfrenta o drama de se ver num redemoinho de intempéries inevitáveis à condição de mulher sozinha. Heloisa Périssé costura a trama com irresistível leveza, potente carga de humor, drama na medida exata, emoção nas falas, sátiras sequenciais e referências múltiplas que resultam em uma encenação pujante na fruição de suas visíveis qualidades. Heloisa se manteve atualizada com os assuntos vigentes, e os incluiu no espetáculo. Com a sagacidade e a visão particular de observar o comportamento do ser humano em seu “habitat” de um jeito irônico, crítico, até mesmo “desconstrutivo” que lhe são natos, a dramaturga não poupa os espectadores, para o nosso deleite, de abordar situações que nos são bastante familiares, como o imediatismo ensandecido, desvairado, viciante e se pode dizer alienador em certas circunstâncias das redes sociais, a vulgarização e pauperização de determinados gêneros musicais (não há julgamentos tampouco preconceitos, servindo a menção como “ponte” para o riso), o estouvamento e boçalidade de membros do sexo masculino na conquista de uma mulher (não existe sexismo, e sim uma factual conclusão), a dificuldade desses mesmos homens em se comunicarem com o sexo oposto e seu lamentável desinteresse pela intelectualidade. O homem e sua crescente infantilização. Comenta-se sobre a “Era do Rivotril” (antidepressivo usado em larga escala pela população brasileira; uma pesquisa chegou a apontá-lo como o segundo medicamento mais consumido no Brasil) e os almoços de família que sempre descambam para uma imperiosa “lavagem de roupa suja”. Trata-se ainda do assolador medo do qual somos passíveis, sob os mais variados aspectos, num contexto jocoso. O medo das almas/espíritos, o medo dos filmes de terror, o medo da escuridão da madrugada (principalmente quando os números do relógio indicam que já são 01h37min) e sua correspondente solidão. Discorre-se com propriedade sobre as flagrantes diferenças entre homens e mulheres, que se no início podem ficar escamoteadas, na fase intermediária começam a se escancarar os direcionando para o doloroso processo de confrontação das incompatibilidades. Até o fato de um torcer para um time de futebol e o outro para o rival tem a sua significância, por mais prosaico que isso possa parecer como motivo de discórdia (evidente que Heloisa Périssé coloca tintas fortes de graça para realçar este tópico). Letícia possui emprego fixo, é prática, célere nos pensamentos, objetiva nos seus projetos de futuro. E Paulo Vitor é, segundo ela, “lento”, um “freela” que precisa de um tempo específico para dar um rumo à sua vida, despreocupado, desapegado aos bens materiais, por mais indispensáveis que sejam. Criador das capas do livro de Letícia, deseja ter filhos, ao contrário dela, ainda que não possua o mínimo respaldo financeiro para educá-los. Faz-se uma paródia aos terapeutas e suas explicações para todas as coisas. Elucubram e filosofam tanto que se perdem e se confundem com os próprios conceitos e teses. De acordo com Loreta, a terapeuta, o tipo de relacionamento de Letícia e Paulo Vitor é “neurótico”. Momentos de poesia de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade enobrecem o texto. A autora brinca e questiona os perfis de alguns famosos personagens de contos de fadas. Por exemplo, a Bela Adormecida era sim uma princesa, tinha fadas madrinhas que a protegiam e dormiu cem anos, o que lhe proporcionou uma pele impecável. Já Branca de Neve e Cinderela saíram perdendo, tendo a primeira que “pegar na vassoura”, e a segunda, além disso, conviver com uma perversa madrasta que a perseguia. Toca no ponto do imaginário coletivo feminino que anseia o surgimento de um “príncipe encantado” em suas existências. Nas bem escritas linhas, deixa-nos claro de que o êxito profissional da mulher de modo ou outro contribui, por menor que seja, para o abalo de sua vida sentimental. Todo este material dramatúrgico criado por Heloisa necessitaria de uma direção que soubesse não só compreender e entender a sua proposta, mas absorver e pôr em prática nos palcos a sua linha matriz de ideias, acompanhando o ritmo pessoal e ágil da atriz. A escolha de Susana Garcia (notória em suas direções teatrais) foi acertadíssima. Conduziu com proficiência, perspicácia e prodigalidade os numerosos recursos interpretativos que Heloisa detém. A artista “passeia” à vontade pelas mais diversificadas veredas emocionais. O drama e a comédia estão contíguos, amalgamados em suas composições. Apodera-se de seus corpo e face como legítimas ferramentas de trabalho de uma inteligente intérprete. Sua expressividade é impactante. A versatilidade com que distribui o seu talento na construção dos muitos personagens é incrível: além de Letícia, o companheiro Paulo, a terapeuta tabagista Loreta, o pai bonachão Pires, a mãe sem “papas na língua”, a amiga masculinizada Celeste, o porteiro nordestino Valdemar, o cunhado “ideal” Isac e a garota de programa “acidental”. Sem contar os bizarros pretendentes que encontra na boate. Susana não pretere o elevado poder de comunicação e empatia de Heloisa Périssé como artista, e orienta a peça para uma trilha abertamente confessional e de franco diálogo com o público. Todo o espaço cênico é aproveitado. No minimalista e funcional cenário de Miguel Pinto Guimarães (duas cadeiras pretas laqueadas com estofamentos crus, que são dispostas em vários locais, e uma larga banqueta também preta que serve tanto como mesa quanto como sofá e assento), a atriz ostenta uma admirável vitalidade ao se movimentar, ir de lado a outro, sentar-se, levantar-se, correr, e dançar engraçadíssimas coreografias, que exigiram preparação corporal adequada e ampla flexibilidade. A iluminação de Maneco Quinderé é como de costume elegante, sendo outrossim poética e efusiva nas passagens oportunas. Percebe-se um saudável equilíbrio entre os focos gerais/abertos, duplos unicamente na atriz, seis refletores anteriores que se alternam em azul, verde, vermelho e rosa numa profusão de cores que se acendem e se apagam para simular o ambiente de uma “balada”. No fundo há um telão no qual todas essas luzes, inclusive o lilás, são projetadas, ocasionando um bonito efeito visual. O “visage” é suave, que realça a beleza e os olhos de Heloisa, com uma maquiagem precisa e cabelos presos. O belo já visto se aprimora com o luxo do figurino de Rita Murtinho, que aposta em um requintado e moderno macacão “fluid” de tons negros com decote em “V”, com mangas vazadas com pedrarias e uma deslumbrante fivela com detalhes artesanais. Como acessórios, delicados brincos e cordão com pingente, finalizando com escarpins pretos. A trilha musical de Alexandre Elias atende com eficiência, embalando logicamente o ciclo narrativo do espetáculo. O ápice decorre com a contagiante execução de “Tempos Modernos”, de Lulu Santos. “E Fomos Quase Felizes Para Sempre” cumpre a sua honrosa missão de colocar o gênero monólogo no lugar de destaque merecido quando realizado como obra bem estruturada, divertida dentro da sua contextualização e inteligente e liberal na concepção, e de corroborar a excelência de uma atriz chamada Heloisa Périssé. Se os casais não podem, em algumas ocasiões, serem felizes para sempre, e sim “quase”, nós, o público, fomos sim totalmente felizes. E esta felicidade, que durou cerca de uma hora e algumas dezenas de minutos se assemelhou ao “amor de Vinicius”, aquele “Que não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito enquanto dure”. A felicidade venceu.