Blog do Paulo Ruch

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Foto: Divulgação do espetáculo

Em pleno Dia dos Namorados, Fernanda (Maria Clara Gueiros) e José Carlos/Zeca (Ricardo Tozzi) se veem, de uma hora para outra, numa situação inusitada que os leva inevitavelmente a reavaliar o seu casamento que está próximo de completar um ano. A maçaneta da porta do banheiro do casal onde se encontram, preparando-se para a “noite especial”, em um acidente, desprende-se, impedindo-os de sair. Com ampla leveza dramatúrgica, com enfoque num salutar e cativante humor (texto de Bruno Mazzeo e Cláudio Torres Gonzaga), direção ágil e arguta de Cláudio Torres e uma dupla de atores, Maria Clara Gueiros e Ricardo Tozzi, incrivelmente entrosada e “dona da cena”, “Enfim, Nós” nos direciona para uma oportuna compreensão, amparada numa extensa graça, do que o enfrentamento forçado de dois indivíduos que decidiram se unir no campo afetivo ocasiona em suas próprias idiossincrasias, temperamentos, veleidades e personalidades até então estabelecidos “in solidum”. A história de um homem e de uma mulher, com os seus “antes, durante e depois”, serve para que um enxergue o outro como na verdade são. Assimilem com mais clareza as diferenças de ambos. Que haja uma confrontação individual e recíproca. Que questões “escondidas” ou “invisíveis” sejam afinal discutidas. O fato de se estar de modo imprevisto enclausurado em um pouco espaçoso cômodo e todas as suas especificidades, com as subsequentes evolução e gradação dos humores pessoais, com direito a larga gama de intempéries, soluções estapafúrdias com o intento de dirimi-las, faz com que Fernanda e Zeca coloquem em pauta as contingências natas de uma vida a dois, suas incompatibilidades veladas ou não, fraquezas e convicções. Ponham em xeque a “sagrada” instituição do casamento. Percebam as vicissitudes que surgem com uma convivência acordada. Bruno Mazzeo e Cláudio Torres Gonzaga, experientes e consagrados na dramaturgia (além de transitarem com louvor na seara dos roteiros), buscaram com o espetáculo destrinchar, esmiuçar, elucubrar, e por que não satirizar temas que nos são recorrentes no cotidiano. Fala-se da obsessão feminina pelas suas estética e aparência física e das outras mulheres, e pelos tratamentos “milagrosos” de beleza (como a “deformação” tanto visual quanto de valores com o uso indiscriminado do silicone). Discorre-se sobre a demanda do ser feminino por um relacionamento sexual que não seja padronizado, obrigatório, estagnado em insustentável inércia. A sua castradora pudicícia para assumir e aceitar a fisiologia humana. A resistência ao apreço banal que os homens em geral nutrem pelas partidas de futebol, principalmente quando se trata de uma final de campeonato. Suas amizades em potencial pouco abonadoras e fantasias pelas diferentes expressões da nudez de uma mulher. Seu natural condicionamento para a desorganização doméstica e tendência para parca higiene. No entanto, é bom que se frise que em todos esses questionamentos sobre os homens não há críticas tampouco avaliações sexistas por parte dos dramaturgos, e sim o que se faz são apenas piadas ou troças acerca de hábitos que os definem. Perscruta-se até que ponto intercorrências, imprevisíveis ou não, como a gravidez e o desemprego, podem influenciar uma união. Mostra o quanto somos passíveis de alterações de humor, e como reagimos a um estado de pressão, no caso o confinamento. Abordam-se as discussões e altercações de um marido e uma esposa, e o quanto de intensidade pode haver nelas dependendo das entonações que são dadas às palavras. Um “deixa pra lá” pode fazer toda a diferença. Num momento de alto estresse, há um desentendimento contínuo com as reais intenções sendo incontinenti mal interpretadas. Discorre-se ainda sobre o congênito machismo simbolizado pela procura infatigável do homem por um desempenho sexual “perfeito”. Uma insana busca por sua virilidade e reconhecimento alheio desta. A íntima dificuldade que se tem em romantizar um matrimônio. Com “Enfim, Nós”, os autores costuram uma deliciosa narrativa, uma comédia romântica que em alguns aspectos lembra a “de erros”, não abjurando de uma suave dramaticidade, que confere à peça elementos realísticos e factuais. No que diz respeito ao elenco, Maria Clara Gueiros compõe Fernanda com notável apuro interpretativo, vivenciando com extrema facilidade as oscilações emocionais de sua personagem. Maria não se inibe em tirar da comédia tudo o que de proveitoso pode oferecer ao público. Ricardo Tozzi, como o professor Zeca, exibe com bem-vinda prodigalidade a sua disposição como ator para escalonar todas as ferramentas de que dispõe para criar fiel, crível e saborosamente as linhas mais evidentes de seu papel. Maria Clara e Ricardo demonstram admirável expressividade corporal e dominação da voz e demais variações. De forma natural, convencem-nos de que de fato representam um casal como tantos que conhecemos que brigam, reconciliam-se, ofendem-se, elogiam-se, gritam, sussurram, silenciam e se amam. A direção de Cláudio Torres Gonzaga, sabedora das peças disponíveis, contorna com equanimidade o quadro narrativo com parcelas de humor, drama e romance. Os atores se movimentam por todo o espaço cênico. Pausam, correm, deitam-se com dinamismo invariável. O cenário de Edward Monteiro é charmoso e bonito, ostentando a típica atmosfera de um banheiro. Seu desenho contém elementos contemporâneos, antigos e infantis (no bom sentido). Há uma banheira “vintage” que serve como box com chuveiro, cuja cortina é adornada com patinhos amarelos, além de duas estantes com prateleiras sobre as quais estão toalhas coloridas e frascos de perfumes e loções, um móvel com treliças e seus pequenos vasos com flores, uma pia, espelho, uma armação com transparências que referenciam a azulejos, uma janela basculante, cestos, banco, a famigerada porta branca, quatro longos painéis anteriores azuis, e lógico, um vaso sanitário. A iluminação de Luiz Paulo Nenén aposta na quase uniformidade aprazível do plano geral, o que é um mérito, pois credita uma veracidade aos acontecimentos. Todavia, há focos em tons azulados e lilases conferindo um clima de aconchego. Nas passagens de uma cena para a outra, como se fosse um entreato, notamos a prevalência de um imperioso azul. Um conjunto de fatores que presta relevante serviço para o embelezamento da produção. Os figurinos de Liah Siqueira são elegantes, práticos e coerentes com os tipos definidos por Maria Clara e Ricardo. Fernanda usa um tubinho fluido e confortável com estampa psicodélica e calça escarpins em tons crus que lhe caem muito bem. Já José Carlos veste short de pijama, uma calça folgada de algodão de cor grafite e uma camisa social branca com listras. A trilha sonora de Mú Carvalho molda a encenação com acertada economia. Somos presenteados com a irresistível e agradável “Don’t Worry Be Happy”, de Bobby McFerrin. Heloisa Périssé, Luciano Huck e a Leandro Hassum contribuem com suas vozes em “off”. “Enfim, Nós” merece ser visto por inúmeras razões, que se justificam não somente por um texto atual, inteligente e sensível, uma direção dinâmica, expedita e em consonância com a proposta cênica, e uma atuação impecável de artistas que nos conquistam de pronto, como Maria Clara Gueiros e Ricardo Tozzi, mas por nos provar que mesmo nas situações mais adversas, em que temos que encarar o outro que está ao nosso lado, bem de perto, é possível descobrir, redescobrir, inventar e reinventar o amor. Enfim. “Enfim, Nós” e o… AMOR.

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