Foto: Dupla Identidade / TV Globo
Aparentemente, Edu Borges é um homem perfeito. Ele é educado, bonito e culto. Deixa rastros de charme e sedução por onde quer que passe. O jovem elegante, além de ser bem-sucedido na carreira de advogado, estuda Psicologia. No entanto, apesar de toda esta miríade de qualidades, Edu é um “serial killer”. No atraente, instigante e interessantíssimo primeiro capítulo da nova série da Rede Globo, exibida na noite de ontem, escrita por Gloria Perez, e dirigida por Mauro Mendonça Filho e René Sampaio, “Dupla Identidade”, com direção de núcleo de Mauro Mendonça Filho, fomos logo apresentados a uma galeria de personagens, seus perfis, objetivos, dramas e conflitos, e ao tema central da produção, o assassinato brutal em série de mulheres e a subsequente e difícil descoberta de seu autor. Edu faz parte de uma equipe que apoia o senador Oto (Aderbal Freire Filho), que em época de eleições, visa a um cargo político. O rapaz inteligente que ostenta barba semicerrada propõe, numa reunião de correligionários, ideias que parecem brilhantes e infalíveis para o êxito da campanha do político, como a defesa e o apoio às mulheres face ao desenfreado crescimento da violência da qual são vítimas. O candidato é aliado do Governador, sendo assim seria incômodo atacar a política de segurança vigente. Todavia, Edu, com a sua argúcia, convence Oto de que este é um caminho certeiro e vitorioso no que diz respeito à conquista de eleitores, principalmente os femininos. Enquanto isso, os assassinatos em série prosseguem. E a mais recente vítima é Mariana (Yanna Lavigne), uma garota de programa amante do senador, que momentos antes de sua execução com requintes de crueldade, é convidada pela produtora de moda Ray (Débora Falabella) para ser modelo de um desfile. O seu romance com o político é desvendado por sua esposa Silvia (Marisa Orth), que decide inapelavelmente pelo divórcio, o que atrapalharia as pretensões eleitorais de seu marido. Silvia e Oto são pais de Júnior (Bernardo Mendes), um rapaz que acabara de vir da França onde, por dois anos, fora estudar Artes. A seguir, Júnior, devido a um celular achado em seu apartamento, é apontado pela polícia como suspeito do crime cometido contra Mariana. As investigações policiais são capitaneadas pelo delegado Dias (Marcello Novaes), que almeja ocupar o importante cargo de Secretário de Segurança Pública do Estado, e a elucidação das mortes colaboraria para a sua indicação. Contudo, o retorno de Vera (Luana Piovani), uma psiquiatra forense que acabara de fazer um curso de especialização no FBI (Federal Bureau of Investigation), nos Estados Unidos, atrapalha os intentos de Dias. Ambos possuem uma mal resolvida história no passado. Para alguns, a presença de Vera no caso é uma estratégia de marketing. A dupla de policiais terá pela frente uma penosa e árida tarefa, a começar pela explicação da morte bárbara de Mariana, que numa área coberta por folhas secas, foi amordaçada, algemada e ferida. De um de seus olhos escorreu um rímel negro que se misturou a uma, duas gotas de sangue espalhadas pelo local da tragédia. Acompanhamos o passo a passo frio de Edu em direção à sua realização pessoal. O seu maior prazer, segundo Vera, seria o inacreditável sentimento de poder ao manipular sua vítima, e no instante em que percebesse que ela pressente a proximidade de sua morte, sentir-se um Deus. Mata-se tão somente para satisfazer um interesse individual. Impossível não nos lembrarmos da expressão cunhada pela filósofa alemã naturalizada americana Hannah Arendt, a “banalidade do mal”. O “serial killer” é calculista, premedita todas as etapas, desde a conquista de sua “presa” até os seus momentos finais. Os procedimentos brutais são os mesmos. Controla a situação. Brinca com a polícia, apostando em sua superioridade intelectual e autoconfiança desmedida. “Planta” potenciais provas para confundir os investigadores. E está invariavelmente pensando em seu próximo crime. E uma de suas vítimas poderá ser Ray, a produtora de moda. Ela é mãe de uma menina, Larissa (Maria Eduarda Miliante), separada e sofre de “borderline” (um transtorno de personalidade limítrofe que se caracteriza pelas oscilações de humor, impulsividade e dificuldades de relacionamento; vive-se no limite entre a normalidade e os surtos psicóticos). Num encontro “casual” na praia, Edu, que também é esportista, pois joga “altinho” com os amigos (nota-se a boa forma física do ator, que disse em entrevista sobre a sua decisão de se exercitar com mais afinco, privilegiando os antebraços, a fim de conferir maior credibilidade ao criminoso), conquista Ray (ao lado de sua confidente Dina, defendida por Mariana Nunes), que acredita ter encontrado o homem ideal. Ele a convida para comer uma pizza margherita e tomar um chope sem “colarinho”. Edu nos convence, se não soubéssemos de sua face monstruosa, de que é um sujeito normal, como todos nós. A trama pensada por Gloria Perez, que estudou muitos casos semelhantes na historiografia do crime mundial, mostra-se corajosa e indômita ao abordar um assunto tão escabroso, mas que se insere não só na atualidade, mas em períodos passados. Os diálogos e pensamentos em “off” de Vera demonstraram ao público de que houve cuidadosa e aprofundada pesquisa acerca dos comportamentos e motivações dos assassinos em série. A direção de Mauro Mendonça Filho e René Sampaio atingiu com precisão o difícil equilíbrio entre as cenas de avolumadas tensão e violência que cingem os fatos relativos aos crimes em si e os dramas paralelos que completam o desenho teledramatúrgico de “Dupla Identidade”. A ambiência de um thriller investigativo/policial é primorosamente retratada. Os atores, de reconhecido naipe, representam indiscutivelmente um dos méritos da atração que irá ao ar nas próximas sextas-feiras. Bruno Gagliasso, um intérprete talentoso, intenso e disciplinado, que sabiamente fugiu ao estigma de galã, procurando e aceitando papéis que o desafiassem sobremaneira, como o homossexual Júnior de “América, o esquizofrênico Tarso de “Caminho das Índias”, o vilão Teodoro de “Cordel Encantado” e o Van Gogh nos palcos teatrais, construiu Edu com uma “visceralidade contida”, uma “intensidade represada”, ou seja, temos a impressão de que a sua ultraviolência nata só eclodirá nos instantes da prática de seus delitos. Débora Falabella compôs Ray com a riqueza de detalhes que é própria da atriz, convencendo-nos de que é uma mulher ativa, independente, sonhadora e mãe dedicada. Também, assim como Bruno, habituada a personagens espinhosas, como a dependente química Mel de “O Clone” e a vingativa Nina de “Avenida Brasil”, Débora, certamente, irá nos surpreender mais uma vez, em especial nos episódios em que Ray manifestar seus surtos. Tanto Luana Piovani quanto Marcello Novaes estão de maneira irrefutável “infiltrados” na “alma” de seus “characters”, impingindo-lhes firmeza, resolução e sobriedade dignos de autoridades policiais. Poderão ainda exibir outro lado emocional de Vera e Dias concernente ao conflito que lhes é comum. Marisa Orth realçou Silvia com a dignidade de uma artista com o seu valor, legitimando a indignação imaginada de uma esposa traída não uma única vez, com a disposição feroz de pôr um termo a esta inglória condição. Bernardo Mendes nos prova de que é detentor de largo potencial artístico ao assumir, como Júnior, uma postura ao mesmo tempo frágil e rebelde. Um papel que se “casou” bem com o jovem ator. Aderbal Freire Filho, um consagrado diretor de teatro, oferece-nos a feliz oportunidade de conferirmos a sua porção ator, e a composição de Oto, um político ambicioso, indiferente aos sentimentos alheios e um tanto inescrupuloso corrobora a sua potencialidade e maturidade interpretativas. Ainda no elenco, teremos Dedina Bernardelli, Rogério Fabiano, Igor Angelkorte, Felipe Hintze, Henrique Taxman, dentre outros de igual relevância. A trilha sonora de Andreas Kisser se vale de um som pesado, com suas potentes interferências vocais. A abertura de Flavio Mac é refinada, com nuances fantasmagóricas e referências claras e objetivas ao movimento cinematográfico expressionista alemão, cujos alguns de seus notáveis representantes foram F. W. Murnau, Fritz Lang, Carl Dreyer e G. W. Pabst. Veem-se sombras, silhuetas escuras de pessoas nas ruas em preto e branco das cidades, com suprema valorização das formas geométricas, como linhas e círculos, amparados por texturas azul e vermelha (provável que a última seja uma menção ao vermelho sangue das vítimas de Edu). “Dupla Identidade” tem a missão nada fácil de “segurar” o telespectador por uma semana até o seu epílogo, mas pelo que assistimos em seu pioneiro capítulo a série não encontrará obstáculos para lograr o sucesso esperado, visto que a sua excelência se espraia no texto, no elenco, na direção e na produção. Ademais, conhecer mais a fundo a interioridade da mente perturbada, perturbadora e complexa de um “serial killer” é, por incrível que possa nos parecer, fascinante dentro de seu contexto aterrador. A selvageria é algo nato ao ser humano. Pode permanecer latente, quieta ou nunca se manifestar. Entretanto, pode se duplicar quando adentra e lá escancara o seu poder, nos inebriantes olhos azuis de Edu. “Dupla Identidade” é uma série imperdível. Duplamente ou mais.