Pensem em dois artistas pródigos em carisma. Os dois são essencialmente atores. No entanto, cada um tomou um rumo distinto em suas carreiras. Ela, Deborah Secco, acompanhamo-la desde a tenra idade, passando pelas adolescência e fase adulta, em diferentes segmentos audiovisuais, como o cinema, a TV e o teatro. Testemunhamos o seu crescente progresso interpretativo até alcançar a reconhecida e prestigiada maturidade artística. Ele, Marcos Mion, um ator com largo potencial mas que, por seus forte poder de comunicação, desenvoltura nata e capacidade ímpar de improvisação, acabou trilhando um caminho diverso não menos meritório, a apresentação com enorme êxito de programas de televisão. Agora, imaginem um texto deliciosamente alegre, romântico, informativo, referencial e charmoso escrito em parceria por Rosane Svartman, Lulu Silva Telles e Ricardo Perroni (o mesmo já fora levado aos palcos com outros elencos, inclusive Deborah, em 2010 e 2011, dividiu a cena com Erom Cordeiro). E, para completar, somem a este promissor conjunto um diretor experiente, com ampla ciência da salutar relação que deve haver entre o teatro e seu público e que seja um profissional convicto de suas opções cênicas: Ernesto Piccolo. Assim nasceu “Mais Uma Vez Amor”. A trama é centralizada em um casal, Lia e Rodrigo, que se conheceram quando adolescentes na época em que eram estudantes, com seus típicos e tradicionais uniformes em branco e azul, no ano de 1970, um período no qual o Brasil vivia um temerário sentimento de ufanismo, sob a égide dos desmandos militaristas de uma ditadura. As inseguranças, fragilidades e anseios de autoafirmação dos jovens, a descoberta da sexualidade, a perda da virgindade e consequências que a cingem e a massacrante pressão exercida sobre “a primeira vez” são discutidos com propriedade. Vê-se desde logo uma propensão de Lia para a adoção de uma postura mais libertária, ao contrário de Rodrigo, que se evidencia levemente conservador. Em 1976, o longa-metragem de Bruno Barreto “Dona Flor e seus Dois Maridos” faz grande sucesso, e os conflitos previstos do casal ganham contornos com maior visibilidade. Os sonhos de Lia de se libertar individualmente se elevam, indo de encontro com o pensamento médio coletivo. Rodrigo se engaja no “Projeto Rondon”, vai para a Amazônia, e chega a uma definitiva e surpreendente conclusão, ou seja, a de que lá tudo é verde. O amor entre ambos existe, é fato, todavia há sempre o fantasma de uma terceira pessoa para desestabilizar o relacionamento. Somos transportados para o ano de 1978, em que Lia satisfaz seus desejos mais íntimos de liberdade. Ela quer ler todos os livros, escutar todas as músicas, ir a todos os lugares, “alimentar-se da cultura do mundo”. Está em Londres, “a cidade onde tudo acontece”. A moça com rescaldos do “Movimento Hippie” e da “Liberdade Sexual” vivencia um desbunde comportamental, com direito à experimentação das drogas, lisérgicas ou não. Contudo, uma avassaladora saudade da terra natal, uma espécie de banzo a abala. Enquanto isso, Rodrigo torna reais seus planos “pequenos burgueses”. Após 1981, chegamos a 1984, e vemos e ouvimos nas ruas pessoas reunidas em multidões e seus brados clamando pelo retorno da democracia que nos fora usurpada pelas armas e pelo direito legítimo de escolhermos de forma direta por meio do voto o nosso Presidente da República, no movimento conhecido como “Diretas Já”. Rodrigo por ora está casado, exerce a função de bancário e o resultado natural desta conjuntura é ter filhos. Os desencontros e contrastes entre Lia e Rodrigo recrudescem, a despeito do persistente amor que os une. Um amor que por vezes é velado e em outras ocasiões se escancara em um quarto de motel com luzes de néon. As mudanças ocorrem não só nas personalidades dos personagens, mas de modo negativo nos costumes. Se antes podíamos namorar nas salas escuras de cinema com Dona Flor nas telas, o que vieram a seguir foram os filmes pornográficos e o seu “sexo profissional” (o filme em cartaz se chama, sujeito à gama de interpretações, “Bububu no Bobobó”; esta situação atesta o limiar da falência dos clássicos cinemas de rua; a direção de Ernesto Piccolo se aproveita deste episódio para criar uma divertida e inventiva cena de plateia). No presente, muitos desses espaços são ocupados por grupos religiosos. Ainda no que concerne aos movimentos, Lia invariavelmente foi a participativa, e Rodrigo, o apolítico. Em 1986, somos assaltados pelos planos econômicos “milagrosos” com o intuito de se combalir a hiperinflação. Não foram poucos aqueles que fecharam portas de supermercados e impediram o barulho das máquinas de marcar preços. Lia foi um deles. Em 1989, é alçada ao Poder uma equipe que promete mudar o Brasil. Sua política econômica cruel acaba com os sonhos de toda (ou quase toda) uma nação. Inclusive o de Rodrigo, que almejava comprar uma casa própria. Algum tempo depois, a juventude colore o seu rosto com tintas de indignação, no movimento “Caras Pintadas”, e há uma renovação política. Em 1994, o Brasil é “tetra”. Já em 2010, o casal se reencontra e suas diferenças se avolumaram. O elo que os liga, entretanto, parece-nos inquebrantável, mesmo com o passar das décadas. O “pequeno burguês” Rodrigo nem é tão pequeno nem é tão burguês. Ele repensa a sua vida, não mais acredita na fidelidade matrimonial e avalia a possibilidade de ter tomado outras decisões no passado. Como ir com Lia para Bora Bora, por exemplo, que atualmente é massagista e tem uma filha que “é a cara dele”. Os anos se sucedem e afirmações otimistas sobre os vindouros são ditas, amparadas no humor. A velhice chega para todos nós, e se tivermos sorte, o amor do outro a acompanha. Todo este atraente e interessante conteúdo narrativo contextualizado na comédia romântica, com as “idas e vindas”, encontros e desencontros de um casal empático na própria natureza, fora apresentado ao público pelos autores com desenhos sensíveis, agudeza de espírito e emoção. O diretor Ernesto Piccolo se utiliza de um prodigioso material para lhe impingir acertados dinamismo e leveza. Esta agilidade é provada em cena não só pela fluidez do texto, mas fisicamente também, com a movimentação constante dos atores e o aproveitamento profícuo da cenografia, inteligente e prática, que inclui dois biombos divididos em quatro partes, transparentes, dobráveis, que se transformam de acordo com a ambiência sugerida (percebem-se outrossim uma armação vazada e corrediça que serve como cama, uma outra diminuta, penteadeiras e três gigantes panos dependurados que são usados para a projeção de imagens marcantes que nos remetem à fase história retratada com seus símbolos e signos, ou alusões poéticas, como uma chuva em Londres). Ernesto aposta no patente e inquestionável entrosamento entre Deborah Secco e Marcos Mion, o que faz com que torçamos inabalavelmente pela felicidade de seus personagens. As músicas, selecionadas com apuro, posicionam-nos na História. Ouvimos Novos Baianos, Chico Buarque, Gal Costa… Caetano, e sua maviosa voz, reina soberano na maior parte da encenação. O diretor explora ao máximo de seus atores as notórias potencialidades interpretativas e de comunicabilidade com os espectadores. É obrigatório que se destaque a bela plasticidade de corpos quando se simula o amor do casal. Deborah Secco está irradiante em cena, exibindo com generosidade todo o seu já conhecido talento, vivacidade e aptidões cômicas e dramáticas. Marcos Mion é absoluto nas suas extroversão e naturalidade no palco, esbanjando, é claro, a graça que lhe é habitual. Marcos, sempre que puder, deveria conciliar suas atividades como apresentador e ator (o seu berço). Os dois exibem incrível perfeição na forma física (seus corpos são mostrados dentro de um contexto). Tanto Deborah quanto Marcos devem dar prosseguimento às suas experiências teatrais. Suas popularidades e sucesso alcançados na TV e demais áreas são justificados. O carisma que detêm transcende o senso comum. A iluminação é bonita e coerente com o propósito da peça. São percebidos gradações (quase “fade outs”), focos pontuais, sejam eles frontais ou laterais, sombras, meias-luzes e plano aberto (num tom suave, jamais “estourado”). Em determinados instantes, notam-se texturas luminosas azuis, lilases e alaranjadas. Os figurinos são tão ecléticos quanto elegantes, que se distribuem em vestidos estampados, com relevos, fluidos, “de noiva”, camisas sociais, polo e regata, terno e gravata, jaqueta estilo militar, calças jeans e social, “underwear” (roupas íntimas em geral), e calçados como sandálias, botas de cano longo, coturnos, tamancos, tênis e mocassins. Com produção de Deborah Secco e Léo Fuchs, “Mais Uma Vez Amor” é um espetáculo, uma comédia romântica, que se vale de um bem estruturado texto para abordar o amor e a sua resistência à implacabilidade da passagem do tempo, com ênfase na História recente e na mudança das pessoas e costumes da sociedade. Aprende-se que o amor nunca é demais. Que sempre há lugar para um “mais uma vez”. Mais uma vez… amor. Mais uma vez… Deborah Secco e Marcos Mion.
Que delícia ler essa crítica e refletir sobre a peça. Obrigada pelo belo texto e pelo diálogo! Ontem assisti no Teatro Abel e foi emocionante ver os dois no palco!
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Olá, minha querida Rosane. Fico extremamente feliz ao saber que gostara deste texto que escrevi com tantos carinho e dedicação, e, acima de tudo, respeito por todos os profissionais envolvidos nesta maravilhosa obra. Sim, a Deborah Secco e o Marcos Mion nos proporcionam forte emoção por suas verdades. E que bom que foi lhes assistir no teatro. Um abraço, parabéns e muito obrigado.
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