Dois únicos personagens. Dois policiais. Denny (Malvino Salvador) e Joey (Augusto Zacchi). Uma duradoura e forte amizade os une. Até que o imprevisto, o inesperado acontece. E o que antes parecia sólido, irremovível se mostra tíbio, frouxo, sujeito a questionamentos e reavaliações. Até que ponto se pode confiar em uma amizade? Qual é o seu nível de lealdade e segurança? Como se defrontar com a dor lancinante causada por uma traição? Para responder a essas perguntas e tantas outras que nos amofinam, o autor, roteirista e produtor americano Keith Huff (escreve para séries consagradas, como “House of Cards” e “Mad Men”) levou aos palcos da Broadway em 2007 “A Steady Rain”, com bastante êxito, recebendo elogios generosos da crítica especializada. Huff se utiliza da dupla de “representantes da lei” para desenhar de modo abrangente uma narrativa dramática na qual se percebe com nitidez um panorama escalonado das diferenciações dos comportamentos, sentimentos e emoções humanas. Na tradução feita com elevada propriedade por Daniele Ávila Small, “Chuva Constante” (título adotado no Brasil) nos apresenta Denny e Joey por intermédio de seus pensamentos, convicções e elucubrações sob a forma de monólogos ou diálogos acalorados. Não há, nem se vê razão para isso, uma determinação específica de local tampouco tempo em que se passa a história. Porém, somos direcionados para uma potencial realidade que nos lembra a estadunidense (tal impressão em nenhum momento nos distancia do entrecho). Imaginamos uma metrópole com suas arraigadas mazelas e uma cultura contaminada pelos consumismo, preconceito, xenofobia e barbárie. A felicidade plena está na realização pessoal de constituir uma família típica, com esposa (Connie), filhos (Steve e Noel) e animal doméstico? Denny acredita que essas conquistas e os bens móveis que possui, como uma televisão com dezenas de polegadas, garantem o seu sucesso. Ao contrário de seu parceiro Joey, que é solitário, acaba de se livrar do alcoolismo, e reside em um desprezível quarto qualquer. É possível que haja motivos para um amigo sentir inveja do outro? Desde já, vimos que Denny é impulsivo, transgressor, violento, irônico e emotivo. Joey, no entanto, busca se aproximar mais do juízo, da racionalidade e do comedimento. Quem está certo? Quem é o melhor? Não se sabe. Para Denny não existem códigos de ética e conduta a serem obedecidos. A hierarquização de sua categoria profissional e a nefanda burocracia dos órgãos públicos são testemunhados na figura de um capitão de polícia. O racismo é discutido com olhares distintos. O sistema de cotas é justo, necessário? A alvura de sua pele e a de seu companheiro impede a sonhada promoção (um racismo “às avessas”). Nos logradouros, a convivência de diversas etnias e seus idiomas e dialetos ininteligíveis só reafirma o abismo infindo que se abriu na comunicação e socialização dos indivíduos da era moderna. No submundo frequentado por cafetões, prostitutas e “serial killer”, pode-se esbarrar com um portorriquenho ou com um infante desnudo e choroso de origem vietnamita. Uma “Torre de Babel” do século XXI com todas as máculas e obstáculos que lhe são próprios. O texto de Keith decide privilegiar o enfoque na relação de amizade, e demonstrar o quanto esta é passível de adulterações e distorções, provocadas invariavelmente pelas fraquezas natas ao homem. Nos dias de hoje, não poucas vezes, uma instituição fadada ao fracasso. Um de seus agentes poderá ser a traição e o rastro que deixa. O ato de trair obriga a remodelação de toda a conjuntura de relacionamentos até então sedimentados. Na peça, supõe-se que uma experiência sexual assume, dependendo de seu contexto, um viés religioso. A solidariedade e sua beleza incorre no risco de ser recebida com ingratidão e o golpe traiçoeiro. Os estilhaços de um vidro de janela alvejado por um projétil de uma Magnum 44 não só derramam sangue dos inocentes mas alteram a estrutura conjunta familiar estável. O pai da vítima Steve, Denny, muda substancialmente seus propósitos de vida e suas emoções são reorganizadas. Na existência, tudo nos parece falível. Constata-se que a vida está distante de ser algo seguro, protegido por nossas veleidades. É sim um objeto etéreo, quebradiço, pronto a se dissipar com qualquer desvio de rumo. A culpa definirá a amplitude da dor que sentiremos no futuro, e a sua nulidade demarcará de fato quem somos na essência. A dramaturgia crua, realista e intensa de Keith Huff obteve uma direção precisa, eloquente e fluida de Paulo de Moraes. Paulo (prestigiado encenador reconhecido no Brasil e no exterior, laureado com importantes prêmios tanto pela Armazém Companhia de Teatro quanto por projetos independentes) atentou com afinco e denodo para o trabalho interpretativo de seu elenco, sem, todavia, preterir os demais aspectos cênicos tão relevantes quanto. Paulo de Moraes envereda por um caminho pautado pela temática policial, que nos reporta aos filmes de gênero numa escala evolutiva de suspense, apreensão, reviravoltas e surpresas. Os atores se “enfrentam” num tenso e pulsante diálogo, com acusações mútuas, defesas ferrenhas de suas posições e opiniões, e confissões individuais desconcertantes. O cenário (duas cadeiras de madeira com estofamento de couro, um telão para projeção de imagens e múltiplos refletores de pé espalhados por ambas as laterais), que também coube ao diretor, serve-lhe como fundamental ferramenta para a dinâmica da ação. Os intérpretes usam os citados móveis de formas variadas, e posicionamentos diversificados. A nossa identificação com o universo retratado é imediata e eficaz. O recurso de se filmar ao vivo as cenas da montagem é uma criativa e eficiente solução para incrementar o nosso entendimento da obra (precipuamente o ator Augusto Zacchi e o gestual de suas mãos). As imagens projetadas dos irmãos Rico e Renato Vilarouca são expressivas, bonitas e impactantes (João Gabriel Monteiro é o videomaker). A preparação corporal de Patrícia Selonk objetiva o alcance pelos intérpretes de uma linha postural condizente com a oscilação de seus humores, e o retorno por parte daqueles é visível e bem-sucedido. A iluminação de Maneco Quinderé é insinuante, atrativa, não linear, com uma ampla paleta de opções no que concerne a texturas e densidades. A encenação é valorizada por luzes pontuais/focos, planos abertos numa medida equilibrada, gradações e os feixes que provêm dos refletores nas laterais do palco, aumentando a ambiência “noir”. A direção musical de Ricco Viana se alimenta de trilhas incidentais instigantes e persuasivas, culminando na potência de um rock’n’roll. Os figurinos de Malu Kelvingrove são coerentes e alinhados. Malvino traja calça jeans, camisa social branca com listras verticais cinzas, uma gravata grafite, uma jaqueta também acinzentada e como acessórios cinto e sapato marrons. Augusto veste camisa branca com colete, calça, cinto e sapatos, além de um coldre. Otto Jr. faz a voz do cafetão Lorenzo. Quanto às atuações, Malvino Salvador, um ator que iniciou a sua carreira nos palcos, defendeu papéis marcantes na televisão e experimentou com êxito o cinema, cuja última atuação no tablado fora numa peça de Sam Shepard, também dirigida por Paulo de Moraes, “Mente Mentira”, arrebata os espectadores com a sua verdade interpretativa, a sua visceralidade emocional e a sua fina ironia. Malvino carrega uma explosão de sentimentos numa carga dramática crescente compatível com o desenvolvimento de seu papel, Denny. Com sua forte presença em cena, evidencia as totais compreensão e absorção da alma do complexo policial a quem dá vida. Um ator que merece ser visto e revisto na ribalta. Augusto Zacchi, um artista com relevante e significativa experiência no teatro, constrói Joey com resolução, pujança e ciência da psicologia de seu personagem que vive numa permanente altercação com o seu colega de ofício. Augusto nos transmite uma segurança no que faz, seja no uso do corpo ou voz, indispensável para a credibilidade de sua atuação inserida no quadro dramatúrgico apresentado. O ator passeia com desenvoltura pelas várias camadas emotivas de seu papel. Malvino e Augusto encontraram as sintonia e frequência perfeitas para que pudéssemos crer na veracidade da existência de uma longa amizade que sobreviveu ou não aos reveses e dissonâncias comuns a qualquer parceria. “Chuva Constante” (uma produção de Cinthya Graber, Luis Erlanger e Malvino Salvador), com Malvino Salvador e Augusto Zacchi, é uma aposta muito mais do que válida para se integrar no cenário teatral brasileiro. A dramaturgia de Keith Huff é obrigatória por suas coragem e honestidade no trato de assuntos que, independentes de espaço e tempo definidos, fazem parte da cadeia universal dos relacionamentos do homem, com suas numerosas nuances. Muitas seriam as interpretações ou impressões quanto ao fato de a chuva não deixar de cair no desenrolar da sinopse. Pode ser a constância do imprevisto e do inesperado em nossas vidas. Como pode ser a constância com que o teatro nos transforma e nos leva a uma sadia reflexão, que vai além do simples entretenimento. “Chuva Constante” não em poucos momentos permite que um feixe de luz solar derribe a predominância de um clima chuvoso. A chuva do lado de fora ou na peça pode até cessar, mas a qualidade deste espetáculo dirigido por Paulo de Moraes, e estrelado por Malvino Salvador e Augusto Zacchi, esta será sempre constante.