Foto: Divulgação do espetáculo
Monique (Bia Arantes) é uma jovem estudante de Veterinária, romântica e sonhadora, geminiana com ascendente em Sagitário, que possui com Felipe (Daniel Blanco), um rapaz doce, culto, tímido e poeta diletante com voz pausada, um “não relacionamento que talvez seja o mais não relacionamento de todos os não relacionamentos”. Felipe, com seus modos acanhado e contido, é visto por seus pares de geração como um sujeito “travado”. Os dois se conheceram há exatos sete anos, porém só vieram realmente a se falar com a providencial intervenção do professor de História Glauber que os colocou como dupla em uma tarefa escolar. A relação de ambos sempre fora classificada tanto por um quanto por outro como sendo apenas uma duradoura e fiel amizade. Na verdade, o escrevedor de lindos poemas já a amava nos dois primeiros anos. Sequer houve por parte do moço neste lapso de tempo a tentativa de um singelo beijo na amada ou a esperada declaração de amor com o emblemático “Eu te amo!”. Felipe, que prefere expressar em versos o que sente do que verbalizar (ele diz em certa hora algo como: “Amar é simplesmente sentir o amor sincero”), tem como amigo de longa data (desde a tenra infância) Leandro (Bernardo Velasco), que detém um comportamento diametralmente oposto ao seu. Leandro é como vários rapazes com os quais nos deparamos na sociedade: o galã da turma, popular, esportista (é praticante de skate), sedutor, fanfarrão e machista (todavia, há uma fileira de qualidades em seu cerne que serão desveladas no decorrer da história, para a nossa surpresa). Confidente de Felipe, sabe do amor platônico que o amigo sente por Monique. Como não poucas vezes ocorre na vida, o inesperado irrompe, e toda uma teia de relações até então estabilizada, ou no limite da sua estabilidade, é estremecida. Em momento qualquer, Monique e Leandro se encontram, e o segundo lhe revela que a conhece desde muito por meio das centenas de fotos espalhadas em sua rede social, bastantes delas ao lado de seu parceiro Felipe. Uma forte atração física é sentida pelos dois, e o inevitável acontece: um beijo ardente. A atração que se tornou uma traição. O encontro de lábios fora dado justamente no dia em que o poeta decidira beijar a mulher de seus sonhos. A culpa e o remorso pela traição ao amigo iniciam uma série de conflitos nas consciências de Monique e o skatista. Uma sequência de perguntas é feita a partir daí e questões são levantadas. Como lidar com a traição? Enfrentá-la, assumi-la, confessá-la? E como abrandar o devastador arrependimento que os assola tanto na emoção quanto na razão? São esses os motes utilizados com sensibilidade, graça e propriedade por Rafa Ferrah (argumento) e Pedro Jones (dramaturgia) na peça “A-Traídos”. O espetáculo, também dirigido por Pedro e uma realização da Ferrah Produções, traça um oportuno, proveitoso e inteligente painel das complexas dimensões comportamentais juvenis contemporâneas. Na era em que tudo é fugaz, efêmero, superficial e consumista, discute-se com adequação como estão o caráter, a índole, a ética, e de que forma a mocidade lida com os valores inseridos no amor e na amizade. Indagamos: os jovens têm limites ou ao menos noção de que os mesmos existem, e de que para o bem estar coletivo deveriam ser obedecidos? Tomamos por conclusão que as atitudes e ações dos três jovens são sementes em desenvolvimento do que eles virão a ser no futuro como seres adultos. Em situação nenhuma, Monique, Leandro e Felipe podem ser definidos como simples arquétipos de uma fase geracional, mas sim, certamente, como signos aos quais devemos de jeito obrigatório prestar maior atenção. Todos nós, sejamos adultos ou pertencentes a quaisquer faixas etárias, estamos direta ou indiretamente ligados aos jovens e suas questões, seja como irmãos, pais, avós ou amigos. Debatem-se outros temas, desta vez concernentes à condição feminina. O que afinal deseja a mulher (o psicanalista austríaco Sigmund Freud já se perguntava quanto a isso na célebre frase de um artigo de sua lavra: “Afinal, o que querem as mulheres?”)? A mulher pode vir a sentir atração, ou até mesmo amar, um homem com potencial fragilidade, acentuada sensibilidade e timidez em grau elevado que o impede de expressar vontades e sentimentos íntimos, assim como Felipe? Ou sua libido se manifesta com maior potência (e quem sabe nutrir um sentimento que exceda a institiva atração física, ou seja, amar) ao se defrontar com um representante do sexo masculino cujos maiores atributos são a beleza física e uma irresistível “pegada”, mas que no entanto é desprovido de conteúdo intelectual razoável, como Leandro? Reitero o que há pouco inquiri, só que distintamente: – O que satisfaz a mulher na plenitude? A falta de traquejo de um Felipe em seduzi-la ou o tesão que um “cara gostoso” como Leandro lhe proporciona? E o beijo? Por que se cobra tanto acerca do beijo? Por que quando adolescentes somos massacrados, e por vezes discriminados se ainda não demos o primeiro beijo? Há um prazo para isso? O beijo não é tão somente uma amostra de afeto banal como se vê hoje em dia e em gerações recentes passadas, com bocas estranhas se “conhecendo” numa noite, e no dia seguinte que mal se cumprimentam. O beijo do amor, não o descompromissado (este de modo algum deve ser condenado moralmente) tem a sua hora, o seu momento, a fim de que a garantia de sua verdade seja legitimada. Por vezes, infelizmente, constatamos que uma parcela das mulheres incentiva a prática machista, julgando que sejam os homens os “predadores”, e elas as “presas”. O que dizer dos rapazes que assediam as moças com agressividade, sem cuidado tampouco cautela, e elas aceitam e consideram normal, próprio dos machos, com o único objetivo de “se darem bem” e de terem “pegado mais uma na balada”, e se vangloriarem após para os amigos? A mulher sábia é aquela que diferencia um homem do outro, e a mulher mais sábia ainda é aquela que não se deixa prender às arbitrárias convenções sociais de que não pode seduzir alguém por quem se interessa, sob o risco de ser tachada de vulgar ou algo pior. Que problema há se chegar em um rapaz e explicitar sinceramente e sem excessos o seu sentimento afetivo? Que problema há se a mulher perceber que o rapaz a ama e ela outrossim o ama, e tomar a decisão de lhe dar um beijo? Problema nenhum. E quanto à amizade que é abordada no texto? É fato que sendo um elo de afetividade será invariavelmente passível de estremecimentos, abalos e desvios de rota, sendo o maior deles a traição. E onde há a traição há a presença ou não do ato de se perdoar. E quando é um amigo que trai? E quando esta traição é dupla? A traição de quem se ama e a traição de seu melhor amigo. Não nos esqueçamos de que somos falhos. Todavia, até que ponto nossas almas são tão elevadas para relevar um golpe tão feroz? Na peça, há frases (cito-as proximamente) que são ditas e denotam com coerência os acontecimentos que envolvem estes iniciantes na vida: “Toda escolha implica em perdas”, “O amor do amigo é o maior de todos” e “A vida não é um manual de instruções”). O texto dramatúrgico de Pedro Jones, a partir do argumento de Rafa Ferrah, conjumina notadamente sensibilidade, emoção, um encantador romantismo e uma leve comicidade na trama que envolve Monique, Leandro e Felipe, e todas as dificuldades, enfrentamentos de conflitos, descobertas, dúvidas, questionamentos natos a esta etapa da vida tão bonita quanto desafiante. A direção, que também coube a Pedro, intentou e logrou atingir uma equanimidade entre a dinâmica das cenas e suas pausas pontuais, o silêncio imperioso, e importantíssimo que se diga, uma primorosa dedicação ao notável trabalho interpretativo dos três atores. O encenador consegue, para o nosso deleite, que sejamos conquistados e atraídos (sem trocadilhos) por cada um dos papéis que compusera, com todas as qualidades e supostos defeitos inerentes ao mais comum ser humano em sua fase jovem. Percebe-se que houve uma salutar preocupação com o preenchimento do espaço cênico pelos artistas, os quais se dirigem de um lado a outro, correm, caminham do seu jeito, revezam-se e se alternam, ou ficam todos juntos no fundo do palco com extrema concentração e disciplina como observadores distanciados da narrativa, deitam-se, vão ao proscênio, sentam-se na beira do palco e até mesmo circulam pela plateia. A expressividade corporal dos atores é notável, apresentando-nos impressionante vitalidade e não pouca variedade de posturas e gestuais. O elenco foi exemplarmente escolhido. São atores belos e talentosos que já os conhecemos por seus trabalhos na televisão, mas que na ribalta se desprendem por completo e nos exibem toda a sua capacidade de atuação e construção de um personagem. Bia Arantes desenha com admirável acerto a sua Monique, que ora está confusa (não sabe quem ama, não sabe o que quer), ora está romântica e apaixonada, ora está indignada (com o não acontecimento dos fatos), e em determinadas ocasiões contemplativa, imersa em seus pensamentos divididos com o público (ou interagindo mais objetivamente com os espectadores). Bernardo Velasco é uma presença cativante em cena. O ator, independente de sua beleza (como os demais) e harmônica forma física, não nos poupa de seu talento, com as composições que lhe são conferidas. As suas espontaneidade e naturalidade são forças motrizes do sucesso de seu Leandro. Daniel Blanco faz parte de um time de atores que nos causam imediata empatia. O jeito meticuloso de elaborar o seu tímido e apaixonado Felipe encanta a cada um de nós. Daniel se esmera (aliás, todos) em valorizar cada palavra que profere, conferindo-lhe o nível de emoção solicitado. Os três atores formam um conjunto cujos entrosamento e afinidade colaboram de maneira definitiva para o êxito indiscutível do espetáculo. A cenografia de Rafa Ferrah é charmosa, caprichada e nos remete a uma leveza acolhedora da peça, com três painéis quadrados constituídos por ripas de madeira, sendo que cada um deles pertence a um personagem. O primeiro, de Felipe, possui cartas, papéis nos quais foram escritos os seus poemas; o segundo, o de Monique, tem distribuídos ramalhetes, ramos de flores; e o de Leandro é adornado com toalhas (é bom que se frise que os painéis ficam pendurados por fios imperceptíveis). Pedro Jones (que acumulou a dramaturgia e a direção) faz uma linda e singela iluminação, fugindo a qualquer tipo de exagero desnecessário. Novamente como se a intenção fosse a de impingir a brandura de uma inocência quase perdida dos jovens. Os três painéis citados são focados cada um por luzes diferenciadas: laranja, verde e azul, seguindo a ordem. Não há o preterimento do plano geral suave, dos focos sobre um único ator ou em dupla, luzes transversas em verde, vermelho e azul, além de brancas na parte anterior do tablado. Há um recurso de alternância de apagar e acender de luz sobre os intérpretes ao fundo que merece menção destacada. Os figurinos de Daru Lima são despojados, alegres e coerentes com a personalidade da cada “character”. Bia usa um vestido claro florido com alças, sapatilhas, um cordão e uma pequena bolsa. Bernardo traja uma moderna regata azul com um bolso frontal, uma bermuda cargo, meias listradas e tênis. E Daniel se vale de uma blusa xadrez sobre uma t-shirt bordeaux (com tênis da mesma cor), jeans e um par de óculos. A trilha sonora foi criada pelo cantor e compositor Guga Sabatiê, que também é ator. Guga tem o mérito de enriquecer com os acordes melodiosos de um violão acústico o universo jovem retratado na peça. As inserções musicais são pertinentes e dignas de elogio. “A-Traídos” é um espetáculo com muitas qualidades, que vão dos assuntos abordados e discutidos com graça, contudo sem perder a seriedade, até o brilho e carisma de Bia Arantes, Bernardo Velasco e Daniel Blanco. Um entretenimento que valoriza o teatro, que deve ser visto não somente por jovens, mas por todos, pois o que se trata é universal. Onde há amor, pode haver traição. Onde há atração, pode haver traição. Da mesma forma com a amizade. Entretanto, acima disto tudo há o perdão. Contra este, não há vencedores. E onde há dois rapazes e uma moça chamados respectivamente Bernardo, Daniel e Bia não há traição, há sim amor e amizade incondicionais pelo palco. Somos “A-Traídos”, sem meios de escaparmos, por esses três talentos, logo quando abrem os seus sorrisos em cena.