Uma mulher desesperada, Maria (Juliana Martins), vê o seu amor, um piloto de avião, Ulisses, ir embora em poucas, curtas e frias frases numa prosaica ligação telefônica. Um homem perdido, Paulo (Sergio Marone), sob um pesado edredom verde e amarelo nada pátrio, deitado sobre a nudez de um praticável qualquer, desperta já no seu acelerado processo de desalento face ao quase ou nenhum sorriso que a vida lhe oferece. Paulo também perdeu o seu amor, Bárbara Bergman, em poucas, curtas e frias frases. Não numa prosaica ligação telefônica, mas por intermédio de uma metafórica imagem na qual a loira mulher que amava agradece a Deus pelo aborto do filho que esperavam. Na verdade, Paulo é um cineasta, estigmatizado pela classe como “autoral”, discriminado por um sistema de políticas governamentais que se sucedem assassino da cultura subsistente neste país… medíocre. A autoria de seu filme foi decepada pelos “senhores feudais”, “burocratas tupiniquins” que dominam o mercado de cinema no Brasil. A sua loira mulher “bergmaniana” não por acaso o traiu com o fotógrafo de seu falecido projeto. Solitário, seminu, vestido apenas com o luto de seu short íntimo negro, e um robe tão extravagante quanto as circunstâncias que o cercam, exibe o torso aberto para enfrentar a estupidez do mundo. O homem recorre à companhia deletéria porém leal dos cigarros que fuma e do uísque sem as inúteis pedras de gelo. Confidencia ao seu amigo Oliveira que marcara um encontro real por meio da máquina virtual e surreal. Decorrido um tempo, adentra na pocilga onde mora, a sua própria produtora, uma lânguida e misteriosa Vênus, uma sílfide lasciva resgatada de outra dimensão, coberta por uma capa com capuz preta, que escondia por baixo um deslumbrante e brilhoso vestido de gala de debutante que deixava seus ombros à mostra, a garota de programa Mônica (Juliana Martins). Ela não é um reles e chão ser feminino, como muitos poderiam pensar. Formou-se em Letras. Uma culta prostituta ou uma prostituta culta. Sua diminuta bolsa crua guarda a escravidão química à qual somos consuetudinariamente submetidos. As nossas ansiedade, depressão e oscilações de humor são abrandadas pelas solidariedade e comiseração de laboratórios que se locupletam com nossas desgraças e misérias psiquiátricas e psicológicas. O sexo pago de Mônica é caro, globalizado. Ambos praticam um sexo instintivo, animal, objetivo e carnal. No entanto, não menos orgástico. O ato sexual é assistido por nós como se fosse um filme, com seus takes velozes, imagens congeladas, marcações de corpos deliciosamente suados que se grudam e se desgrudam numa mesma frequência. A língua é um chicote úmido e irrequieto que açoita e desperta o desconhecido prazer em nossa matéria. Para Paulo, o sexo pode ser uma exclusiva forma de expressão do amor e a sensibilidade do homem pode ser bem maior do que a das mulheres. O pranto do macho talvez seja mais copioso. Uma inofensiva brincadeira quem sabe é um indicativo de um desejo latente do casal em apimentar a relação com dominação e submissão. A mulher perfeita para Paulo pode ser a doméstica, a do lar, a servil com coxas roliças e melenas alouradas. Para Mônica (Maria buscando uma nova identidade para escapar de sua frustrante existência) navegar não é preciso, e sim voar. Foge da superfície até nos relacionamentos afetivos. Do contrário, não teria se interessado por um aviador e um mergulhador. Tanto Paulo quanto Maria procuram sedentamente uma concretude em suas vidas, uma palpabilidade. Para ela, esta palpabilidade pode ser representada pelo simples passar de uma manteiga em um pão desavisado. A escalada do amor do casal acidental é doída, morosa, desencontrada, fantasiosa, passional e violenta. A vida nem sempre parece o que é. Ou sempre parece o que não é. O texto teatral de Arnaldo Jabor (um dos mais prestigiados cineastas brasileiros, autor de obras clássicas como “Toda Nudez Será Castigada” e “Tudo Bem”) adaptado de seu longa-metragem homônimo lançado em 1981, “Eu Te Amo” (idealização e coordenação de Juliana Martins) é um relevante, emblemático e abrangente estudo e pesquisa sobre o amor, não se prendendo aos grilhões da pudicícia e moralismos que envolvem o assunto. Em sua dramaturgia, Jabor faz uma crítica acerba à ausência absoluta de perspectivas e horizontes do indivíduo (tendo Paulo e Maria como signos dessa conjuntura) quanto a uma posição estabelecida no mercado de trabalho. O personagem de Sergio Marone é um cineasta que não consegue pôr a sua Arte em prática, porquanto vivemos ou sobrevivemos em uma nação cujos representantes do Poder Público não escondem o seu desinteresse em fomentar a cultura nacional. O que lhe sobram são leis de incentivo possuidoras de critérios passíveis de desconfiança, o que demanda uma acurada avaliação. A burocracia agigantada, as exigências descabidas e uma falta de ordenação financeira e orçamentária desmancham os sonhos de bastantes cineastas que não conseguem levar a sua obra adiante (algumas delas, o que é pior, ficam paradas no meio de sua execução). Já Maria (“a letrada decaída”) não exerce o ofício que escolhera, Letras. Ocupou uma série de cargos que se distanciam de sua qualificação. Uma demonstração clara de que o Brasil desmerece seus profissionais de nível superior, aumentando as estatísticas oficiais de desemprego, subemprego e informalidade. Arnaldo Jabor, com sua essência de cineasta, não nos poupou, que bom, de referências cinematográficas na adaptação de seu roteiro para os palcos. Chaplin, Bresson e Bergman são homenageados, cada um de maneira diferenciada. A ex-mulher de Paulo, como dissemos, chama-se Bárbara Bergman. Sergio Marone tem um momento em que se veste de fraque e usa cartola (“o pierrô chapliniano”), o que nos reporta à figura mítica do adorável vagabundo de Charles Chaplin, Carlitos. E no que concerne ao diretor minimalista francês Robert Bresson, há uma citação da passagem de sua obra-prima, “Pickpocket” (“O Batedor de Carteiras”, em português), lançada em 1959. Na cena mencionada, a personagem interpretada por Marika Green, Jeanne, visita o seu amado, o delinquente Michel (Martin LaSalle) na cela de uma cadeia e lhe diz: “Que caminho estranho tive que percorrer para chegar até você”. Extremamente instruído, Arnaldo insere na narrativa dramatúrgica menções a excelsos pensadores e poetas, como Rilke e Rimbaud. A fim de tornar o universo da montagem admiravelmente mais fílmico, foram convidados para a sua direção e comando dois consagrados cineastas em suas pioneiras incursões teatrais, Rosane Svartman (também roteirista) e Lírio Ferreira. Rosane e Lírio, com evidentes cumplicidade e olhares aliados, propõem uma encenação pautada na valorização dos inteligentes diálogos do texto, apoiando-se e acreditando no largo potencial interpretativo de Juliana Martins e Sergio Marone. Com uma permanente ambiência sensual/erotizada , os atores são levados a um desprendimento pleno de seus possíveis pudores, e o resultado é um panorama elegante em que se destrincha a trama com irretorquível plasticidade visual. Por vezes, temos a ligeira impressão de testemunharmos um “vaudeville” moderno, com as entradas e saídas sucessivas em cena dos artistas, o que gera, por consequência, uma dinamização do entrecho. Um eficiente recurso utilizado pelos diretores são as projeções de imagens, sendo mais uma oportunidade para usar o cinema como linguagem no teatro (há os depoimentos em “close-up” de Bárbara, Paulo e Maria, além de flagrantes de mar e seu fundo, uma torneira que goteja e uma arquitetura requintada com lustres luxuosos). As tais imagens são projetadas em três espécies de portais que lembram pequenos palcos dentro de um palco maior. Sendo assim, aquelas ficam cortadas, picotadas, subdivididas sobre esses painéis, no entanto atingindo a completude de sua configuração ao final. A poesia imagética outrossim se impõe em “Eu Te Amo”. As cenas de amor e sexo são coreografias de corpos e formas em perfeitas sintonias e conjunções. Juliana Martins como Maria/Mônica e Sergio Marone como Paulo estão louvavelmente integrados no contexto da sinopse com suas belas e intensas atuações. Juliana esbanja elevadas doses de sensualidade, invariavelmente com bom gosto e refinamento postural. A atriz que acompanhamos em diversos trabalhos na televisão está, sem dúvida, no auge de sua maturidade artística. Com amplo talento e beleza física iluminada, Juliana se desdobra verdadeiramente em dois papéis com psicologias distintas, ainda que sejam de uma mesma pessoa, o que não é tarefa fácil. Como Maria, seu perfil é mais próximo de uma mulher comum com suas angústias vezeiras. Já como Mônica, a intérprete se vale de acaçapante sedução, com comportamento determinado, um certo ar “blasé” e detentora de fina ironia. Sergio Marone, outro ator com reconhecido talento na TV, ostenta uma impressionante solidez como ator de teatro, com pujante presença cênica que não se escora em sua inquestionável beleza, mas nas múltiplas ferramentas de atuação de que dispõe para compor Paulo. O ator revela extensa compreensão das idiossincrasias de seu “character”, traçando um elogioso desenho analítico do cineasta que interpreta. Maria/Mônica e Paulo são personagens com vários compartimentos emocionais que foram depreendidos com grande acerto pela dupla de protagonistas. Em um espetáculo como “Eu Te Amo”, é imprescindível que os atores se entendam em cena, confiem um no outro, joguem, brinquem em conjunto, compartilhem suas cargas emotivas. O cenário de Fabiana Egrejas transmite harmonia, charme e objetividade. Além dos portais (constituídos por um tecido plástico/sintético), há uma cadeira de diretor, uma exígua mesa/cômoda com portas sobre a qual estão uma garrafa de uísque, copos, balde de gelo e uma cigarreira. Do outro lado do tablado, encontra-se um praticável (como fora dito) onde Paulo dorme e seu edredom amarrotado. E, por último, uma arara corrediça em que se veem dependurados os figurinos do casal. Estes couberam a Márcia Tacsir, que os pontuou com exuberância, sofisticação, despojamento e casualidade. Merece especial atenção o longo brilhoso de gala de debutante supracitado (ajusta-se muito bem em Juliana). São vistos demais longos, ambos pretos. Um com golas recortadas, sem mangas, com fenda e zíper frontal. Outro com a parte superior com rendas semelhante a um “corselet”. Como acessórios, dois tipos de escarpins pretos. No tocante a Paulo, os short íntimo e robe com arabescos (também falados) cingido por uma faixa violeta, jeans, camisa social acinzentada e tênis. A iluminação de Rogério Emerson é diversa, instigante e congruente com o retrato de vida dos amantes. Com parcas luzes, formam-se imponentes sombras. O foco geral é assumidamente claro como se a intenção fosse a de nos levar de volta à realidade. Quando Paulo e Maria praticam o ato sexual, há um foco central sobre os seus corpos. Os “blackouts” são recorrentes. E se vislumbram gradações luminosas. A direção musical aposta num agradável e nostálgico ecletismo, com direito a Chico Buarque, Maria Bethânia, Peninha e The Rolling Stones (toque do celular de Paulo). “Eu Te Amo” tem, ao meu ver, significativos méritos: revela Arnaldo Jabor como um excelente dramaturgo (seu texto esmiúça as variadas camadas desse complexo sentimento que é o amor com notável inteligência); corrobora o talento de Rosane Svartman e Lírio Ferreira como diretores de teatro; e confirma o brilho de Juliana Martins e Sergio Marone como artistas também do tablado. Se no filme de Robert Bresson, a mulher que visita o seu amado na cela de uma prisão lhe diz “Que caminho estranho tive que percorrer para chegar até você”, posso do mesmo modo asseverar: “Que caminho extasiante e jubiloso tive que percorrer até chegar a Juliana Martins e Sergio Marone em “Eu Te Amo”, de Arnaldo Jabor.