Blog do Paulo Ruch

Cinema, Moda, Teatro, TV e… algo mais.

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Foto: Paula Kossatz

A iniciativa de se falar abertamente sobre sexo em um contexto narrativo já é, por si só, valorosa. E o deslinde das camadas mais obscuras e veladas da ancestral e íntima prática humana, perpetrado com ousadia e intrepidez por João Fonseca e Sacha Bali na configuração do texto da peça “Cachorro Quente”, livremente inspirado na obra do autor americano Chuck Palahniuk (um de seus maiores sucessos fora “Clube da Luta”, adaptado com êxito para os cinemas por David Fincher) elevou o tema a um patamar sobranceiro que lhe é justo. A parceria bem-sucedida de João e Sacha teve início há sete anos com o espetáculo “Pão Com Mortadela”, baseado em contos e poemas de outro americano com pensamentos transgressores, Charles Bukowski (a encenação, indicada ao Prêmio Shell de Melhor Direção, que também teve como alicerce o livro “Misto-Quente” – “Ham on Rye”, narrava momentos da infância, adolescência e juventude do poeta tão maldito quanto idolatrado). Neste entremeio, o romance de Palahniuk, “No Sufoco”, serviu como manancial de elementos inspiradores e catárticos para que os dramaturgos, escorados em uma autêntica liberdade expressiva e solidez estrutural de conteúdo, abordassem acerca de um tema ao mesmo tempo delicado e instigante no formato de encenação cênica. Em “Cachorro Quente”, quadros são montados com o propósito de se desenhar uma história representativa das questões suscitadas. Sacha Bali interpreta Luca Mastroianni, cuja existência é visualizada desde a infância, a fim de que nos familiarizemos com os seus conflitos quanto à sexualidade e identificação pessoal. Luca é filho de Nina (Rosanna Viegas), uma mãe opressora e autocrática ligada à máfia italiana. O menino choroso e ingênuo é educado de modo intervalar e traumático em espaços temporais atípicos durante as fugas de sua progenitora delinquente, e quando por ela era sequestrado. Não se sabe ao certo qual a sua origem paterna. O conhecimento que possui sobre si mesmo é permeado por uma ficção delirante. Seus estudos de Medicina são abruptamente interrompidos devido à premência de cuidar de sua mãe que está padecendo de insanidade mental. A saída esdrúxula do rapaz que come todas as noites cachorros quentes no jantar para subsistir é a simulação de engasgos contínuos em restaurantes com o intuito de provocar a solidariedade perene dos comensais. Um castelo de mentiras sequenciais é premeditadamente edificado para a manutenção do golpe. Seu amigo Denilson (Renato Góes) é testemunha de seus ludíbrios. Denilson é um signo genuíno de nossas vulnerabilidades face aos pedidos do corpo físico. Torna-se refém de compulsivas masturbações. Um escravo do nada misericordioso onanismo. Metaforicamente, há que se catar pedras a fim de que se substituam os atos de prazer sexuais que escancaram o nosso desejo solitário. O jeito estouvado ou apalermado de Denilson é um útil instrumento provocador de nossa comoção. Ele e Luca frequentam um grupo de autoajuda para viciados em sexo, liderados pela indicadora/especialista em sexolatria Bia (Pedro Henrique Monteiro). Neste encontro coletivo em busca da reabilitação ou redenção, a dor e o sofrimento são democraticamente compartilhados. O sexo com suas vertentes “pervertidas” é visto como um problema real e concreto. Ao lado de Carina (Olivia Torres), para quem a casualidade e banalização intermitentes da prática sexual se tornaram agentes incômodos, estão o jovem Jorge (Rosanna Viegas), um sujeito com “ares de periferia”, e Samanta (Laila Zaid), vítimas de seus excessos, fantasias, desvios e até mesmo tragédias imprevistas. Segundo a doutrina do grupo, doze passos são necessários para se atingir o objetivo final de libertação. Agora, no que tange à instituição psiquiátrica onde Nina é internada, deparamo-nos com seres andarilhos perdidos aplacados por completa deterioração de suas faculdades mentais. Neste mesmo local em que aromas florais servem como atenuantes de odores indesejados, os médicos são tão insanos quanto os seus pacientes, a quem chamam de “coelhos”. Lá trabalha Dra. Patrícia (há uma surpresa quanto à sua identidade), uma médica geneticista defendida por Laila Zaid, que faz previsões apocalípticas sobre o fim do mundo e da Humanidade, com direito a pragas dizimadoras. E Luca se vê envolvido nesses vaticínios. Patrícia o convence de que suas raízes paternais estão em um líder religioso universal. O rapaz que volta e meia profere a proposição “Amor é besteira. Emoção é besteira. Eu sou um babaca, e eu tenho orgulho disso” se convence de que é possuidor de dons extraordinários, inclusive de cura. Num tom de humor e escracho, vislumbramos as faces negras da demência, da esquizofrenia, da psicose e de outros transtornos psíquicos. Tabus como sodomia, felação, brinquedos eróticos e vídeos pornográficos bizarros são discutidos sem ranços de moralismo. “Cachorro Quente” é uma peça que, obviamente, distingue-se por sua inquebrantável e benéfica audácia, ao exibir, sem pudicícia, um volumoso painel de informações e questões sobre sexo que foram muito bem coordenadas e costuradas em um fio narrativo consistente. O diretor João Fonseca, com a ciência de sua dramaturgia e de Sacha Bali, impinge à encenação uma linguagem libertadora, subversiva, anárquica, com vieses cênicos que lembram bastante o legado de José Celso Martinez Corrêa e seu Teatro Oficina, orgiástico e antropofágico. O espaço de semi arena é utilizado com proveito máximo (entradas e saídas dos atores, um recurso próprio do “vaudeville”, e posicionamentos variados daqueles são percebidos). O norte escolhido pelo diretor, parece-nos claro, foi a opção pela dinamização das cenas. Todavia, notamos outrossim situações reflexivas em que uma fala ou outra é cortada pelo silêncio. João Fonseca logrou avolumado êxito com seu talentosíssimo elenco, tirando de cada um, sem exceção, infindos recursos interpretativos, que ora se fundam na naturalidade ora se amparam na composição (a emoção se imiscui com o humor; palavras proferidas pelos atores que, a princípio, poderiam soar ofensivas, são aceitas pelo público de maneira natural). Sacha Bali, como Luca Mastroianni (em todas as etapas do personagem), mostra que é um intérprete dotado de pujante carga emotiva e sensibilidade cômica. É visível e notável o seu destemido mergulho na essência de seu papel. Sacha indica que é um conhecedor pleno de cada linha e entrelinha do texto que com denodo escreveu (junto com João Fonseca). Um ator que domina o palco com carisma e verdade. O mesmo se pode dizer dos demais artistas em cena. Rosanna Viegas é uma atriz que nos impressiona por sua força natural de incorporação da alma de seus personagens. Com sua potente e versátil voz, imprime crédito e graça à mãe mafiosa Nina (com acento italiano, vemos uma mulher que vai do autoritarismo à dependência emocional, que a faz até certo ponto mais humilde, quando se vê acometida pela devastadora demência causada pelo Alzheimer). Não nos esqueçamos de Jorge, um trabalho escorreito de composição, além de uma sensual dançarina de “inferninho”. Olivia Torres ostenta a multiplicidade de seu talento ao construir com inteligência e entendimento cênicos cada papel que lhe coube. Olivia nos oferece um fantástico trabalho de composição ao personificar uma oriental, Miçairi, viciada em uma prática sexual pouco aceita e cercada de preconceitos (seus gestual e voz são arrasadoramente engraçados). Sensualiza na medida exata, e evidencia convicção ao defender tanto Carina quanto uma garota de programa. Laila Zaid (com um “physique” aristocrático) nos conquista irremediavelmente com seu humor sutil (algo que se aproxima da tradicional comicidade britânica; o absurdo é dito com espantosa fleuma por Samanta, um dos membros do grupo de autoajuda). Já como a manipuladora e delirante médica geneticista Dra. Patrícia exibe sua capacidade de sedução, oscilando sensivelmente pelos tons de comportamento exigíveis. Renato Góes esbanja surpreendente e ampla gama de elementos de composição que enriquecem sobremaneira os tipos diferenciados aos quais dá vida. Renato sabe explorar as possibilidades vastas de seus corpo e voz, no intento de lograr atingir uma completude interpretativa. Comprova-nos o que disse com o supostamente atoleimado Denilson, com o idoso vitimado pela desorganização de suas ideias (internado na clínica) e no policial grotesco e truculento (seu glossário é tosco e denota a sua estupidez). E Pedro Henrique Monteiro circula pelo palco com a desenvoltura de um ator que pactuou com o teatro uma intimidade indissociável. Oferta-nos o seu valor como artista, seja como a divertida, surreal e charmosa Bia, a indicadora/líder do grupo de reabilitação, especialista em sexolatria, seja como o policial fanfarrão, seja como o médico da instituição que profere as maiores barbaridades com desconcertante naturalidade, ou como o Tarzan oriundo das fantasias sexuais mais peculiares. A iluminação de Luiz Paulo Nenem se engaja na profusão de viabilidades cromáticas e de intensidade. Vislumbramos a alternância de feixes luminosos azuis, rosas, verdes e vermelhos, planos abertos e focos nos atores. Ou seja, jamais se cai na estagnação ou inércia de efeitos, o que resulta em um proficiente resultado. Tanto a cenografia quanto os figurinos são de responsabilidade de Nello Marrese. A cenografia se propõe prática, funcional e crua. De fato, nada mais seria necessário como peça complementar e enriquecedora da ambiência da trama além de uma pilha de diversas caixas de papelão colocadas ao fundo, como algumas vistas no centro da ribalta. A funcionalidade se faz presente com as sobejas maneiras com que o elenco se utiliza delas, demarcando cada cena. Os figurinos são destacados primeiro pela sua versatilidade e criatividade e segundo pela sua pertinência, adequando-se ao perfil dos “characters”. Os costumes se caracterizam também pelos despojamento, ludicidade, elegância e sensualidade. Rafaela Amado realizou primorosa direção de movimento. É fascinante e admirável testemunharmos os corpos dos atores terem sido explorados de forma tão prodigiosa. O elenco dança descontraída e sensualmente, adota posturas pensadas com meticulosidade, movimenta-se com continuidade e de jeito particular, e silenciosamente pausa nas horas em que se pede o tempo. Os atos e a prática do sexo são legítimos e vitais em sua intenção. Jamais são vulgares, agressivos ou gratuitos. A música é um aspecto diferenciador da encenação. Ela emoldura os momentos. Há distintos gêneros, como o rock e suas variações (como um Radiohead, e sua melancólica “Creep”) e baladas dançantes como “Happy”, de Pharrel Williams. “Cachorro Quente” (uma realização de João Fonseca, Sacha Bali e cena 27 Produções) é irrefutavelmente um espetáculo que movimenta, remexe nossas impressões primárias acerca do sexo. A peça é privilegiada no sentido de nos fazer pensar, avaliar, constatar conceitos, preconceitos e posições no que tange a algo tão presente em nossas vidas e na do outro. Por sinal, o outro, que nos parece tão “normal”, tem sim as suas fantasias, tem sim potenciais perversões, administra bem ou mal os seus desejos. Você pode estar sendo visto e desejado por quem sequer imagina. Você pode ser o obscuro ou claro objeto de desejo de alguém. Você pode alimentar o vício sexual de ente próximo, sem que saiba. Sua nudez pode ser imaginada por outrem. Sacha Bali, na introdução do programa da peça, assevera que “tentamos construir um mundo a partir de pedras e caos.” Não há como não concordar com Sacha. E João Fonseca se diz “viciado em teatro”, e que “o elenco é sexy e viciado na sua profissão”. Com certeza, essas condições foram fundamentais e determinantes para o sucesso desta obra. Em uma passagem de “Cachorro Quente”, o personagem Luca de Sacha Bali reflete: “A Arte não nasce da felicidade.” Decerto, nossas misérias são demasiado inspiradoras. Em oposição a esta assertiva, a felicidade pode nascer da Arte. Ou, sendo mais específico, a felicidade pode nascer de… “Cachorro Quente”.

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