
Ao som ensurdecedor de um funk vindo da comunidade, lugar para o qual se tem a vista ao descerrar a cortina de seu modesto apartamento, a destemperada, antiética, ambiciosa e revoltada com suas condições sociais Inês (Adriana Esteves) se confronta com o honesto e passivo marido, o engenheiro da construtora Souza Muniz Homero (Tuca Andrada), na frente da pequena filha Alice (que será defendida por Sophie Charlotte na segunda fase da trama, dez anos depois). O dono da construtora onde Homero exerce o seu ofício é o corrupto e “defensor de hierarquias” Evandro Rangel (Cassio Gabus Mendes), que está na iminência de perder a sua esposa, com quem tem um filho, Guto (papel de Bruno Gissoni no futuro), que se encontra na fase terminal de uma enfermidade. Já Beatriz (Gloria Pires) é uma arquiteta falida, cujo escritório que comandava em Portugal possuía engenheiros que punham materiais de construção ordinários no lugar dos adequados, com a sua anuência. Seu nome está sujo no país luso, onde foi residir casada com um cidadão rico que servia à diplomacia. Também ambiciosa, dissimulada, fria e manipuladora, mas com uma assustadora docilidade quando lhe convém, a filha ninfomaníaca de Estela (Nathalia Timberg), uma senhora distinta que mantém um relacionamento homoafetivo há mais de trinta anos com a advogada de prestígio Teresa (Fernanda Montenegro), retorna ao Brasil do “Vale Tudo”, viúva, e passa a residir em um apartamento deixado por herança. O primeiro sinal de seu apetite sexual desmesurado se vislumbra quando assedia o operário musculoso e suado que faz a obra de seu novo lar (no passado, não deixava “escapar” os surfistas da praia que frequentava tampouco os vendedores de mate). Beatriz precisa, a todo custo, retomar o status social perdido, e o potencial caminho para recuperá-lo seria uma aproximação com Evandro Rangel. Em outra parte da história, que se passa em 2005, conhecemos Regina (Camila Pitanga), uma moça humilde, resoluta, sonhadora e determinada, que trabalha num clube de bacanas para pagar o seu cursinho pré-vestibular. Filha de Cristóvão (Val Perré), o mulherengo motorista de Evandro, preocupa-se com o estado de saúde de sua mãe Dora (Virginia Rosa), que sofre de problemas cardíacos. Antes de pegar um ônibus rumo ao seu curso, conhece o galanteador Luís Fernando (Gabriel Braga Nunes), que se utiliza de todos os meios para conquistá-la, até o infalível convite para tomar um chopinho. A esta altura, Inês se deparou com a foto da amiga de infância Beatriz na capa de uma revista, a “Start”. A elegante Beatriz seria uma viável possibilidade para sua cobiçada ascensão social. Enquanto isso, a enteada de Teresa logra êxito em seus propósitos: inventa ser amiga da cônjuge de Evandro, mostra-se solidária, cativando o empresário e seu descendente. Para facilitar um envolvimento mais íntimo, engendra mais uma mentira, ao afirmar que sua esposa já falecida lhe fez um último pedido: que as suas cinzas fossem jogadas no Rio Sena. Paris é uma cidade perfeita para fisgar homens recém viúvos, carentes e fragilizados. Chega o réveillon. Na praia, Inês, contrariada, brinda a chegada do novo ano com sidra. Beatriz com o melhor champanhe no alto de um hotel de luxo junto com a burguesia francesa, e Regina oferece um barco a Iemanjá, suplicando-lhe que seus “caminhos sejam abertos”. O certo é que os mesmos não serão ao lado do cafajeste Luís Fernando, que é casado com Karen (Maria Clara Gueiros), sendo pai de dois filhos. Luís engravida Regina e lhe sugere um aborto. O casal Beatriz e Evandro volta à pátria que num tempo longínquo será a “pátria educadora”, e decide promover um ostentador e opulento rega-bofe no Morro da Urca, cartão-postal indiferente às mazelas da cidade que ainda insistem em chamar de “maravilhosa”, mesmo com suas violência, balas perdidas e “achadas”. Inês necessita ir a esta festa, e a maneira encontrada para conseguir o desejado convite foi provocar o atropelamento de uma conhecida que fora convidada em plena ciclovia da orla, pagando propina a um entregador de compras para cometê-lo. No evento em que se percebeu a confirmação dos estereótipos brasileiros para o exterior, com direito à samba e passistas, finalmente Inês se encontra com Beatriz, e esta a humilha deliberadamente. Com sede de vingança, a mulher de Homero sente que há uma troca de olhares suspeita entre a sua oponente e o motorista da família. Uma simples câmera fotográfica serve para registrar o flagrante dos dois amantes se acariciando, tendo como fundo a bela e poluída Baía de Guanabara. Inês resolve chantagear Beatriz, exigindo pelo seu silêncio R$400.000,00. Para Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga (colaboradores em “Paraíso Tropical”, de 2007), uma chantagem só não basta. A esposa de Cristóvão precisa de um transplante urgente, e tem que entrar na malograda fila do nosso sucateado sistema de saúde. Um dinheiro “por fora” solucionaria o problema, o que não nos espanta. O motorista chantageia a sua ex amante, ao lhe pedir a quantia necessária para a antecipação da cirurgia, ameaçando revelar ao patrão o affair que mantiveram. Beatriz se vê acuada, e ao surpreender Cristóvão com Inês num bar do Leme, julga que são cúmplices nas extorsões. Sabendo que o homem com quem se envolvera guarda uma arma no porta-luvas do carro, combina com ele um encontro num local discreto para acertarem as contas. Lá chegando, propõe que uma pulseira valiosa que lhe seria dada de presente pelo futuro marido poderia se somar ao montante exigido. Enquanto se beijam, a mão delicada de Beatriz pega a pistola e um tiro certeiro é desferido no chantagista. Beatriz também é uma assassina. A cena termina com o seu vestido vermelho em chamas para não deixar pistas. Um encontro agora é marcado com Inês. Num golpe de mestre, convence a antiga amiga de que deve contar o dinheiro que está no interior de uma maleta. Inês se defronta com a arma do crime. Provocada, acaba a empunhando, deixando as suas impressões digitais, invertendo o jogo de dominação. “Babilônia” (uma alusão não só à comunidade carioca do Leme, mas à cidade da Mesopotâmia, capital do Império Babilônico, em que se misturavam povos, com seus respectivos e diferentes costumes) é uma novela que evidencia o fortalecimento de personagens femininas e suas potencialidades, sejam elas boas ou más. Pelo que se depreendeu de seu primeiro capítulo, será um folhetim ágil, com reviravoltas, suspense, choques sociais e abordagem de variados tabus, como prostituição, rufianismo e homossexualismo. A ambição, como pudemos notar, será o mote do enredo, com todas as sua complexas e diversificadas camadas. E será questionado qual o seu limite. O elenco é poderoso, experiente e estelar, e parece ter se entregado abissalmente aos seus papéis. Gloria Pires, Adriana Esteves, Camila Pitanga, Fernanda Montenegro, Nathalia Timberg, Cassio Gabus Mendes, Gabriel Braga Nunes, Maria Clara Gueiros, Tuca Andrada, Val Perré e Rosi Campos. Cristina Galvão outrossim merece a nossa respeitosa consideração. Teremos ainda pela frente Andre Bankoff, Marcos Palmeira, Bruno Gagliasso, Sophie Charlotte, Thiago Fragoso, Marcos Pasquim, Chay Suede (sua “rentrée” após o Comendador jovem de “Império”) e Daisy Lucidi (e tantos outros que prometem brilhar). A direção geral cabe a Dennis Carvalho (diretor de núcleo) e Maria de Médicis. Ambos impingiram um coerente dinamismo aos takes, que foram valorizados pelos ótimos diálogos. Dennis e Maria exploraram closes, planos e contraplanos, tomadas de câmera levemente trepidantes e circulares (com relação aos atores), o que causou uma intimidade maior com o entrecho. A fotografia assumiu tons diferenciados, sempre em busca de um contexto realista. Não há poesia nas texturas, e sim uma aliança com o acontecimento concreto. A nova produção das 21h da Rede Globo deixa transparecer a marca registrada de qualidade de seus autores, e se desafia a esmiuçar a face obscura do ser humano, sem no entanto preterir os valores da honestidade. “Babilônia” lança a viabilidade de que uma amizade pode vir a sofrer mutações com a passagem do tempo, nem sempre edificantes. Evidencia que a vingança e a chantagem são ferramentas de nossa realidade. E nos oferece a conclusão de que “duas amigas de infância podem ir juntas ‘pro’ fundo do poço, de mãozinhas dadas…”. Nós, o público, assistiremos a esse duelo titânico, incólumes, de preferência do alto deste mesmo poço.