
Na década de 70 e início da de 80, o Brasil se encantava com uma bonita mulher morena que ostentava lindamente seus cabelos volumosos (não negando a sua ancestralidade) presos a tiaras floridas e coloridas, com um gingado envolvente, um sorriso cativante, pés descalços no chão, vestidos brancos que remetiam às baianas de Salvador, e uma voz com inacreditáveis potência, afinação e maviosidade. Seu nome era Clara Francisca Gonçalves Pinheiro ou simplesmente Clara Nunes. Numa época em que significativos representantes da Música Popular Brasileira e suas vertentes são retratados nos palcos e cinema, seria no mínimo injusto que não fosse prestada uma homenagem contextualizada em narrativa teatral a uma de nossas melhores e mais talentosas e originais intérpretes. O espetáculo musical “Deixa Clarear”, pensado poética e idilicamente por Marcia Zanelatto não faz tão somente um desenho biográfico esquemático da trajetória pessoal e profissional da sublime artista. Com extrema sensibilidade, absoluta compreensão da alma de Clara, com a intenção irremovível de perscrutar a sua genuína essência, Marcia construiu com olhos sinceros e emocionados de uma admiradora convicta do valor lapidado de sua personagem real algo como uma epifania musical dramatúrgica. O fio da história não se resume ao caminho supostamente fácil de desfiar os não poucos sucessos da cantora, mas em emoldurar um painel no qual se exponham o limiar da descoberta de um talento, a relação afetuosa com os seus familiares (pai, mãe, irmãos…) e o incentivo destes a soltar a sua “voz de sabiá” na terra das Minas Gerais numa deliciosa ambiência ingênua (as reuniões com os seus parentes lhe serviram como um “palco improvisado”), e o seu seguimento rumo à valorização artística, aquisição de popularidade e estrelato. Conhecemos a Clara de um pequeno Brasil que no futuro desbravaria outros tantos Brasis. A peça assume o deliberado propósito de interagir de modo salutar com os espectadores, seja na comunicação direta por intermédio de pensamentos particulares de Clara Nunes acerca do mundo que a cinge, seja na arrepiante participação do público que acompanha as músicas clássicas de seu cancioneiro, refugiadas na afetividade de nossas memórias coletivas. As palmas da plateia num ritmo compassado também se fazem presentes na sua eloquência, como se fosse uma necessidade indissociável daquela de se integrar, ao menos em parte, da consagração ritualística de uma existência diferenciada de uma artista. O texto, como dito, enleva-nos por sua poesia pura, empatia, palavras coordenadas pela emoção e sonoridade, fraseados cantantes, organizando toda essa gama de elementos num conjunto cênico muito bem alinhavado. Nossas raízes africanas e sua potente e fascinante religiosidade fundada nos orixás são clarificadas na postura devota da protagonista. Umbandista, Clara nos conta histórias ou lendas cujos personagens possuem nomes característicos de sua origem. O espetáculo se mostra imparcial ao abordar o proselitismo religioso de Clara Nunes e o misticismo advindo do mesmo. Com a preciosa contribuição de três excelentes músicos, que se utilizam, em sua maioria, de instrumentos percussivos, assim como os de cordas (violão e cavaquinho), além do chocalho, os grandes sucessos de Clara Nunes que se eternizaram, como “A Deusa dos Orixás”, “O Canto das Três Raças”, “Portela na Avenida”, “Morena de Angola”, “Ê Baiana”, “O Mar Serenou”, “Conto de Areia”, dentre outros, são entoados no contexto da costura narrativa de maneira equilibrada e agradável. Canções mais efusivas e dançantes se alternam com aquelas de melodias suaves e romantizadas. A menção à perda precoce da cantora se dá de forma sutil, reverente e delicada. Não foram preteridas de nosso entendimento as referências culturais regionais arraigadas em nossa rica tradição popular, tais como o maxixe, o congado, o frevo e o jongo. Há o exato instante em que abraçou o samba como o norte de sua carreira, gênero que a tornou célebre em todo o país. A encenação teatral não descarta uma passagem cômica, na qual assume visível despojamento: a apresentação da artista no programa do saudoso comunicador Abelardo Barbosa, o Chacrinha, com seus impagáveis calouros. A proposta edificante do diretor Isaac Bernat, parece-nos, é a de tocar o público, fazê-lo lembrar do quão relevante Clara Nunes era e é para a nossa cultura, e nos provar, por meio de suas belíssimas canções, que o nosso repertório já tivera tempos mais áureos. Não à toa são composições que, mais de trinta anos após a sua morte (“Deixa Clarear” foi montada justamente como celebração e homenagem à data), penetram suavemente em nossos ouvidos, revolvendo as mais íntimas e recônditas emoções. Isaac intencionou ocupar todo o espaço cênico com a vasta expressividade corporal da intérprete, mantendo sempre os três músicos no fundo direito da ribalta (à exceção da cena em que participam, como atores, do programa do Chacrinha). Confere-se uma constante interação entre Clara Santhana e os músicos, seja por olhares seja pelo direcionamento de suas falas. A peça ostenta uma fluência naturalmente prazerosa. A atuação de Clara Santhana merece uma apurada análise. O que se depreende ao testemunharmos esta atriz e cantora no alto de um palco é o florescer fulgurante de sua ímpar capacidade interpretativa. Não se trata tão somente de um trabalho de composição, mas de uma absorção sensorial, emotiva, transcendente das características e atributos que definiriam Clara Nunes como a conhecemos. Clara Santhana se conecta com a sua natural beleza a também bela Clara Nunes, por meio de uma força acima do real para nos encantar, e até mesmo, no melhor dos sentidos, enfeitiçar o público. Sua voz é tão potente quanto suave, atingindo uma extensa gama de tons. Límpida, afinada, sublime: essa é a voz de Clara Santhana. A direção de movimento de Marcelle Sampaio é digna de louvores e loas, haja vista que impingiu à personificação da popular e adorada cantora uma exuberante imagem, equilibradamente sensualizada em seus molejos, requebros e meneios, numa perfeita manifestação corporal. Foram meticulosamente pensados e calculados cada gesto, movimentação de braços, danças com ritmos com maior ou menor intensidade e posicionamentos estagnados de contemplação e ascetismo. O fato de Clara segurar a barra de sua frondosa saia do vestido que a imortalizou, e sacolejá-la de lado a outro é de um charme irrepreensível. Um dos trechos mais impactantes do musical, devido às suas verossimilhança, fidelidade e pungência, decorre quando a atriz executa movimentos atinentes à incorporação do orixá Iansã (a cantora, segundo os preceitos religiosos afro-brasileiros do credo que seguia, era filha de Ogum e Iansã). A direção musical de Alfredo Del Penho é vigorosa, pulsante e coerente, no sentido de criar cenicamente o amplo universo artístico da intérprete. As músicas lindas e emocionantes, sem exceção, são estrategicamente inseridas no desenho dramatúrgico de “Deixa Clarear”, sem rupturas ou desvios ilógicos. Os músicos, como já afirmara, são virtuoses e sensíveis no manuseio de seus instrumentos. Os figurinos de Desirée Bastos nos deslumbram com o seu regionalismo e especificidades. Evidentemente, procura-se mais supremacia no branco. Todavia, a multiplicidade de cores pode ser vislumbrada nas tiaras floridas na “morena de Angola que mexe o chocalho amarrado na canela”. Acessórios como pulseiras, inclusive uma ornada de búzios, e braceletes são percebidos. Clara, num primeiro instante, é vista trajando um sóbrio e elegante macacão fluido de cor branca com finas alças. O ápice do capricho da criação de Desirée ocorre quando a artista entra em cena com o memorável vestido em que os seus ombros ficam à mostra, com os respectivos babados e camadas num tom degradé que imiscui o amarelo e o laranja. A iluminação de Aurélio de Simoni nos enternece pela sua acurada sensibilidade para descobrir o caminho preciso para se atingir o propósito inicial da obra. Aurélio sabiamente se apropria do branco e do azul em tonalidades tênues que, como sabem, são as cores da escola de samba escolhida pela artista, a Portela. Os focos são conduzidos com soberba brandura, tanto sobre a cantora em si, quanto sobre os músicos. Há refletores duplos anteriores em ambos os lados (com luzes azuladas no começo) e outros dois sobre o chão nos flancos direito e esquerdo do teatro. As cores, em sua variada paleta, são usadas pertinentemente nos trechos que as solicitam. O cenário de Doris Rollemberg é pautado em uma elegante e adorável simplicidade. No piso do tablado, há algo como um tapete. Ao fundo, há dependuradas e enfileiradas cordas brancas (com diferentes tons mais escuros em algumas) que nos dão a impressão de que estamos diante de uma “cortina mística e ancestral”. Pequenos caixotes de madeira clara também são utilizados, servindo outrossim como diminutos palcos para as pioneiras performances da cantora quando petiza. Um dos pontos mais fascinantes da cenografia é um enorme pandeiro sustentado por um fio, colocado à direita do palco (o mesmo em determinada ocasião é abaixado, Clara o pega, e o remexe languidamente, causando um ruído semelhante ao som das águas). Em “Deixa Clarear”, uma produção da Diga Sim! Produções e Sandro Rabello (coordenação de produção de Clara Santhana e produção executiva de Igor Veloso), pergunta-se em certo período de sua encenação “Quantas cores há no branco?”. Permitindo que nossos pensamentos transcendam, creiamos que muitas. Assim como são muitas as cores de Clara Nunes. Assim como são muitas as cores de Clara Santhana. Muitas são as cores de nosso imenso Brasil. “Deixa Clarear” é um espetáculo musical instigante, delicado, que exerce um poder de sedução indescritível em nossos sentidos. Clara Santhana é como a “sereia que samba na beira do mar”. Clara Santhana cheia de cores conta o seu “conto de areia”. “Deixa Clarear” alumia com seu pandeiro irmão da lua a história de uma guerreira. Clara Nunes, uma bonita mulher morena que usou a sua “voz de sabiá” como espada na sua dura batalha pela paz e pelo amor. E assim deixemos Clara Santhana nos clarear com a sua luz e as suas cores. Uma estrela que nasce renascendo outra.