
Do fundo do palco, em meio à ambiência de uma meia-luz, caminhando vagarosamente entre tecidos diáfanos, irrompe, até ser alumiada em todo o seu esplendor, alguém que nos é deveras especial e querido, uma cidadã das Artes, uma “operária da ribalta”, que atravessou com galhardia o tempo fugidio, multiplicando-se em faces distintas de variadas vidas em histórias contadas. Já com luz forte sobre si, de corpo inteiro e peito aberto, reconhecemos aquele sorriso honesto, os olhos faiscantes que outrossim sorriem e a voz que se faz ouvir com pia reverência. Nicette Bruno está só no piso sacro de um teatro, em seu primeiro monólogo,“Perdas e Ganhos”, da escritora gaúcha Lya Luft, adaptado e dirigido por Beth Goulart. A matriarca de um clã amado e admirado neste enorme Brasil propõe a nós, espectadores, um franco diálogo, uma conversa direta, uma especulação elevada sobre a existência da pessoa humana, seu ciclo natural, suas etapas, com as circunstâncias atinentes, as dores dos desencontros e os amores dos encontros, memórias escondidas, saudades sentidas, um presente que se sente, um passado lembrado e um futuro esperado. O espetáculo solo se utiliza não somente de uma interlocutora para se comunicar com o público, mas de três outras personagens oriundas do romance da mesma literata, “Silêncio dos Amantes”, buscando uma aproximação saudável e inspirada com aquele. Os temas de que trata a encenação são esmiuçados com sinceridade, emoção e nível substancial de sensibilidade. Beth Goulart, nas suas adaptação e direção (assistência de direção de Ana Paula Bouzas), destaca-se pela precisão e valorização de cada palavra, pausa e silêncio do texto, além da movimentação da intérprete em cena, funcionando exemplarmente como um símbolo oratório de nossos desabafos coletivos. A dramaturgia concisa e fluida se infiltra com congruência nas estratificações da vivência do homem, com as respectivas peculiaridades, elementos e sentimentos que a caracterizam. Na tenra infância, somos moldados, “esculpidos” em definitivo nas nossas personalidades (que conosco permanecerão por toda a vida) consoante as influências e ingerências que nos são transmitidas pelo núcleo familiar vigente ou fatores externos. Somos em quaisquer episódios, como indivíduos, defrontados com a livre escolha de nossos atos. Somos motivados a atingir a um estado de felicidade plena. Entretanto, não aquela que se funda em artificialidades, ilusões e pretensões megalômanas, mas a que se aproxima da que sentimos quando éramos infantes, capazes de enxergar nas diminutas coisas, imperceptíveis aos olhares azafamados, um legítimo valor e sentido para a experiência terrena. Nas íngremes veredas da vida pelas quais temos que obrigatoriamente trilhar devemos nos habituar, queiramos ou não, com as perdas e ganhos constantes. A perda de uma consolidada amizade, de um emprego estabelecido ou de um bem amado que nos é tão caro. Porém, entre uma perda e outra, ganha-se. Ganhamos força com a derrota. Descobrimos que a nossa essência, a parte intocada de nosso espírito, esta se mantém firme, pujante e inquebrantável. As perdas são necessárias, urgentes para o nosso crescimento. Podem parecer apenas fatídicas, “filhas da fortuna”, todavia seus surgimentos abruptos à nossa frente contêm uma lógica própria a princípio insondável. Talvez pela sua imprevisibilidade, estamos, mesmo que não saibamos, prontos e dispostos para nos soerguermos. O entrecho se vale também de uma mãe que no decorrer de sua condição dividiu suas atenções afetivas entre dois filhos de modo não equânime: um deles era alegre, jovial, otimista, sociável e bem-sucedido, e por esta razão recebia maior vigília materna, enquanto o outro se defendia em retraimentos, incomunicabilidade e dificuldade em demonstrar emoções. A decisão encontrada pelo segundo para pôr um termo a esta penosa contingência fora “mergulhar no desconhecido temerário”, escapando desta forma da angustiante obviedade de seu cotidiano. O corolário de desatino fora o esfacelamento emocional e psicológico de sua genitora, que para aplacar suas potenciais culpas e omissões pelo feito se lança em fantasias e imaginações. Na pele de diversa personagem, Nicette Bruno vivencia uma mulher afetada pela separação traumática de seu companheiro, que a traiu. Sente-se desiludida face ao que a sorte lhe reservou. Na outra ponta, encontra-se um homem de nome Benjamim, uma vítima viva de atroz perda sofrida, com feridas permanentemente abertas. Por incrível que possa nos parecer, as perdas podem ter o condão da aproximação, da complementação e da união dos pares, formando-se um amálgama no qual se insere uma força motriz provocadora de esperanças concretas de se reconquistar a felicidade que os “abandonou”. Quando se perde um alguém que nos fora tão amado, que conosco esteve presente nas vicissitudes e júbilos, que compartilhou risos e lágrimas, que estendeu a sua mão nas horas em que mais necessitamos, não podemos fraquejar e nos deixarmos cair em um abismo profundo, escuro e sem fim de desolação. Podemos sim encontrar o mínimo de felicidade que nos resta, e com perseverança e vontade, agarrando-se à luz da vida, e transformá-la em seu máximo possível. Aquele que partira, não partira de vez. Sua voz em espírito se faz escutar nos momentos oportunos. Em uma terceira representação do ser feminino, uma senhora desgostosa de sua rotina e de seus arraigados valores, aborrecida com as manias recorrentes de seu marido, vê-se num repente obrigada a olhar para dentro de si mesma, refletida em um espelho acidental, e enxergar a verdade de imagem duplicada, que lhe demonstra a traição da qual a sua matéria física foi vítima, invadida pelo poder destrutivo de um mal (algo que foge à mais racional compreensão humana, e nos afunda em ilações existencialistas e religiosas como vias explicativas do imprevisto infortúnio). Coube-lhe doravante ser responsável pela modificação desse estado de coisas propulsionado por medo, insegurança e incertezas, sob uma ótica personalíssima do caso dominante. Há que se lançar mão de uma eficaz ferramenta de enfrentamento do revés. Um modo de se lidar com uma questão penosa se alinhando com a fantasia, o sonho e a metáfora. Os volumes de seu dorso deixam assim de serem sinais indicativos de breve finitude para serem, quem sabe, polos nascentes de asas brancas que lhe permitam avoar por ares menos opressores e intolerantes aos quais se submetia, como todos nós, mortais. Antes de seu voo alegórico, dá-se ao direito inalienável a um derradeiro gozo particular e íntimo. A velhice não deve jamais ser mirada exclusivamente como um atestado das perdas gradativas (e sim, dolorosas) de nosso viço original e deleitoso, que nos faz sermos aceitos com mais facilidade pelo coletivo social. É imperioso que pensemos que o decurso inclemente dos anos nos ofereça um aprimoramento precioso de nossa sabedoria e percepção de mundo. As verdades, se antes estavam embaçadas na juventude e fase adulta, na velhice se escancaram. Portas que se mostravam fechadas para os nossos conhecimento e cognição, entreabrem-se. Passamos a descobrir o inexplorado, escondido nos recônditos misteriosos de nossa mente viva. A felicidade idealizada assume impensados contornos. As transformações são exteriores e internas, sendo que estas revelam um processo evolutivo de percepções que nos apresentam demais horizontes. Quanto à morte, não é ela quem nos espera. Somos nós que andamos com passos lentos ou lépidos em sua direção. E a felicidade tão sonhada, almejada, disputada, utópica ou viável, esta, para ser alcançada, há que se ter paciência. O texto de “Perdas e Ganhos”, uma adaptação da obra homônima de Lya Luft realizada por Beth Goulart, como dito, comprova-nos uma vez mais (a atriz e diretora já fizera o mesmo com o grande sucesso “Simplesmente eu, Clarice Lispector”) a sua irretocável capacidade para capturar a magia, a alma e o direcionamento narrativo coerente da dramaturgia. Com este dom, transmutou com habilidade os elementos históricos de que dispunha em algo concreto, palpável, cenicamente belo (e por essa razão com consistentes possibilidades de se chegar o mais próximo de seu público), a peça em si. O fato de possuir real domínio sobre o texto em mãos abriu um espaçoso caminho para uma execução próspera e exitosa como diretora da obra. A encenadora transitou com liberdade e conhecimento entre as fronteiras da teoria e da prática. Pode-se dizer que Beth Goulart tenha se pautado em uma tríade louvável em qualquer espetáculo: o ator/atriz, a palavra e a verdade. A comovente e sincera interpretação de Nicette Bruno associada à lapidação cuidadosa das palavras e vocábulos condensados em oração resultou em um produto teatral instigante, diferenciado e familiar (no sentido da identificação interpessoal). A peça detém um tempo particular necessário para que todas as questões existenciais colocadas em pauta sejam debatidas de maneira espontânea, sem esquematizações. A diretora não se limitou a posicionar a intérprete em uma única demarcação. Nicette Bruno passeia com elegância e discrição por todo o perímetro da ribalta, senta-se, vai ao proscênio e usa com equilíbrio os flancos daquela, o que evidencia um dinamismo bem-vindo à produção. Uma direção que adotou deliberadamente o tom confessional como ponte eficaz entre ator e plateia. Nicette Bruno, ao defender não somente a interlocutora principal, mas três outras personagens, desvela para os espectadores o que já nos era sabido, ou seja, em seu primeiro monólogo (o que configura de imediato um importante momento no cenário teatral), a atriz permite que sejam afloradas em medidas exatas a sua rica e prodigiosa carga dramática/emotiva em todas as fases da encenação. O que nos causa impressão é o desfile sequencial de intenções interpretativas que segue nuances muito distintas e tênues entre si. A consagrada atriz nos enternece ainda por sua postura corporal impecável (preparação corporal de Ana Paula Bouzas), sempre senhora da ação da qual é a protagonista. Usa sua elevada vitalidade em prol da construção de seus papéis. Não percebemos em nenhum instante nas suas composições traços de tecnicidades. O oposto a isso é revelado na visível exploração dos interiores de sua inteligência cênica. Uma bela artista que, com sua voz inconfundivelmente pujante e dócil ao mesmo tempo (preparação vocal de Rose Gonçalves), num tom grave feminino, torna legítima e viva cada palavra que emite. O cenário de Ronald Teixeira opta por uma quase ausência de elementos, indicando uma cativante “nudez” do palco. Esta valorização do espaço aberto é no entanto enriquecida por verticais painéis de tecidos translúcidos (capazes de se unir e de se dividir) nos quais são projetadas bonitas imagens (videografismo de Renato Vilarouca e Rico Vilarouca) da vida de Nicette Bruno e outras de contexto bucólico e natural, além de uma totalmente dedicada à história de uma personagem (filme “O Anjo” – produção e direção de vídeo de Rachel Couto e Rodrigo Benatti), que denotam uma imponência visual à montagem. Compõem ainda o cenário uma coluna com ornamentos clássicos, um tamborete de madeira e uma cadeira ladeada por dois pufes. A iluminação de Maneco Quinderé é virtuosa e poética. Seu olhar sempre arguto compreende as mensagens diretas, oblíquas e subliminares do texto. Sua luz, assim como a peça, carrega consigo uma intenção de verdade. Maneco, com acerto, direciona seu foco com predominância sobre a atriz, valorizando, desta forma, sua face, expressões, gestos, andanças, oferecendo-lhes o tom certo para cada emoção contígua. Vemos assim configurações de branco, azul, vermelho, com direito a um nível mais ou menos intenso de seus feixes luminosos, até que se chegue, em ocasião pertinente, a um blecaute. Os figurinos, que tiveram a produção de Beth Goulart, são refinados, conferindo uma elegância e sofisticação pertinentes à beleza natural da artista e ao contexto propositivo da encenação. Nicette Bruno nos encanta com um conjunto de três peças (duas blusas e uma calça de cor preta, que com a luz se aproxima de um grafite mais escuro) feitas com tecido sedoso, em cuja parte superior, na região do colo, vislumbra-se uma ornamentação de brilhos (ruptura do negro). Um fino xale com estampas serve como adereço para uma das personagens representadas. O visagismo de Vavá Torres e Graça Torres é adequadíssimo e caprichado, realçando ainda mais os atributos harmoniosos de Nicette Bruno. A direção musical de Alfredo Sertã se encaixa num apropriado patamar de intimismo, poesia e suavidade sonora. Delimita as cenas, e o espaço entre elas, com aguçada sensibilidade, tornando-se um indispensável suporte para o desenho emocional da peça (há inclusive uma versão de Diogo Carvalho para “Clair de Lune”, de Debussy). “Perdas e Ganhos” cumpre uma rica missão no quadro teatral contemporâneo: prova-nos a viabilidade de se construir uma obra cênica em que um de seus mais consolidados pilares de sustentação é algo que nos é valioso também na vida, a verdade. A verdade, todavia, de “Perdas e Ganhos”, não se mostra solitária. Uma verdade que se escora nas forças de uma atriz, suas palavra e emoção. Uma verdade que só veio à tona pela dedicação e confiança de uma diretora habilidosa e sensível. A peça protagonizada por Nicette Bruno, e dirigida por Beth Goulart é um libelo que se assume reverente ao amor, ao afeto e à nossa infinita capacidade de superação diante das perdas gerais. Estas, sejam diminutas ou avolumadas, dependendo de nossas veleidades e propósitos de espírito, podem se transformar sim em ganhos. Depreende-se que no jogo complexo da vida e das Artes, onde se aposta, arrisca-se, teme-se, brinca-se, perde-se e se ganha, “Perdas e “Ganhos”, desde o momento inicial em que Nicette Bruno entra em cena com seus olhos faiscantes que outrossim sorriem e sorriso que alumia, já mostrou ao que veio: ganhar. Ganhar… com a verdade.