Blog do Paulo Ruch

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silencio
Foto: Renato Mangolim

Esther (Suzana Faini), sentada em uma cadeira, enquanto aguarda a preparação cuidadosa da mesa de jantar do Shabbat Shalom judaico (tradicional comemoração que se inicia no pôr do sol da sexta-feira e se finda no pôr do sol do sábado, em que as famílias se reúnem e se confraternizam, em prol da harmonização de seus laços e do fortalecimento de suas ancestrais tradições) por sua doce neta Débora (Gabriela Estevão), uma jovem e bela professora trajada com um recatado vestido rosa, prestes a se casar com o também judeu Flávio (Vicente Coelho), desfia um rosário de pensamentos e opiniões próprios eivados com certa acidez no tocante às instituições como casamento e religião e aos comportamentos de seus entes próximos. A reunião familiar servirá da mesma forma para celebrar o aniversário de 50 anos da passiva Regina (Verônica Reis), filha de Esther e David (Rogério Freitas). Regina é oprimida regularmente por seu marido machista Beto (Alexandre Mofati). David é um senhor calado que, devido aos tremores que se espalham pelo seu corpo, apoia-se em uma bengala, e também em repetidas doses de álcool, sendo repreendido com veemência por sua elegante esposa que ostenta brilhantes joias. Esther possui uma outra neta, Clara (Priscila Vidca). A moça transgride as tradições defendidas com potência por alguns de seus pares ao se vestir de maneira despojada e por ter uma oratória liberal, sendo obrigada a escutar insinuações afrontosas de sua ríspida avó. Clara é uma intelectual que no momento se dedica a fazer uma pesquisa para um livro que está sendo escrito por seu avô David. Durante a peça de Renata Mizrahi, que se apresentou no Festival de Teatro de Curitiba, recebeu os Prêmios Cesgranrio e FITA de Melhor Atriz para Suzana Faini (e várias indicações, inclusive Melhor Texto no Prêmio Cesgranrio e no Prêmio FITA, Melhor Espetáculo Júri Popular no Prêmio FITA, Melhor Atriz para Suzana Faini no Prêmio Shell, Melhor Atriz Coadjuvante para Verônica Reis e Revelação para Vicente Coelho no Prêmio FITA, todas no ano passado), o jantar citado é usado como instrumento possível para o desencadeamento de discussões entre os membros do clã, as quais açambarcam ranços de preconceito e hipocrisia, acobertados pelas vestes da religião que professam. Esther, em quaisquer horas, lança lampejos de moralismo, defrontando-se com suas netas, sob vários aspectos, preferencialmente o afetivo e o profissional. A matriarca, representante feroz dos preceitos da religião judaica, na sua ótica, acredita que as mulheres devam se casar até os 30 anos, caso contrário seriam estigmatizadas pela sociedade. E de preferência com maridos abonados. Discrimina de modo direto a condição de Débora ser uma professora num país, o Brasil, que remunera mal esta categoria. Condena o fato de Clara não se vestir de modo adequado e conveniente, como dito, e levanta suspeitas quanto à sua orientação sexual. A sua relação com o marido David se resume a condenações costumeiras devido ao seu hábito, também mencionado, de beber com frequência. Admira o seu genro autoritário e infantilizado Beto, que tiraniza a própria esposa, que por largo período da obra cênica se submete aos desmandos de seu cônjuge que sempre busca uma “brecha” para burlar os rituais sagrados do Shabbat. Repreende ainda David por estar escrevendo um livro que até então se desconhece o tema, e não admite que empregue o seu dinheiro na pesquisa de sua neta. O que se vê são bastantes conflitos interpessoais num universo familiar que coloca no mesmo patamar os dogmas e preceitos religiosos com vícios e valores deturpados de um ser humano. Renata não quis, acredito, utilizar-se de uma família específica, no caso a judaica, com o intuito de criticá-la e submetê-la a julgamentos morais, mas sim mostrar em um painel dramatúrgico que por trás de uma instituição poderosa que é a religião, regente dos elementos constituintes de uma convivência familiar, escondem-se mazelas e deficiências de personalidades comuns a tantos indivíduos ou conjunto destes. O espetáculo toma um novo direcionamento, o que faz com que outras discordâncias e altercações sejam despertadas, com a revelação do assunto principal do livro de David: a vinda das judias polacas do Leste Europeu para o Brasil entre fins do século XIX e início do século XX para se prostituírem. Além de exibir uma contrariedade de gerações e conceitos, o tema tabu para a comunidade judaica proporciona um inteligente debate na peça sobre parcela de nossa História que não pode ser apagada, e sim avaliada com olhares cuidadosos e isentos. Em nenhum instante, faz-se um juízo parcial acerca das polacas. Diz-se que diversas delas sabiam de seu destino, e de que outras se defrontavam com a armadilha que se escamoteava atrás da promessa de uma vida melhor no Novo Mundo, nas Américas. Os cafetões janotas e insuspeitos que as exploravam são mencionados. Temos, assim, uma noção clara e detalhada, com a narrativa criada por Renata Mizrahi, que não pretere a emoção que exala de cada personagem envolvido com o seu discurso determinado, seja ele favorável ou desfavorável às imigrantes polonesas, do fato histórico. Culpa, vergonha e preconceito são postos na berlinda. Em contrapartida, há os que se aliam à honra, à verdade e à dignidade da pessoa. O silêncio tão propalado no Shabbat é quebrado. De maneira ruidosa e dura. Um segredo é revelado. Toda a estrutura de uma família montada por anos se esfacela face a uma notícia imprevista, e a autora faz bom uso deste trunfo. Passamos a conhecer com maior esclarecimento o perfil de cada “character” pertencente ao contexto dramático que se emoldurou. A direção hábil e objetiva de Priscila Vidca e Renata Mizrahi é focada no convencimento de que os personagens fazem parte realística e intimamente de um único núcleo familiar. A proposta cênica de se retratar uma família disfuncional, como qualquer outra, mas, no caso da peça, a judaica, que se vê diante, além de valores individuais que se colidem, mas de um segredo que transmutará toda a configuração circunstancial pré-existente, é conduzida com sobejos êxito e coerência. Os diálogos são afiados, cabendo aos atores, seguindo uma alternância, uma presença em cena constante a fim de que não percam o dinamismo do andamento do entrecho. O espetáculo, que é anunciado como uma comédia dramática, cumpre a sua promessa, não permitindo que o gênero drama domine todo o espaço da obra, contudo, o segmento da comédia ao qual se alia é aquele próximo da mordacidade, um humor acre que causa risos nervosos na plateia, o que é um mérito. As diretoras procuram impingir à encenação um grau de mobilidade cênica que não admite que o enredo destrinchado descambe para uma inércia narrativa. Tal sucesso é alcançado pelo texto que obedece a uma sucessão de fatos e situações atrativas, e à ocupação física mutável por parte dos atores no perímetro da ribalta. Os artistas trocam as suas falas em distintas posições (uns se colocam à frente do palco, outros atrás, um de frente para o outro, alguns sentados, outros não, além de triangulações entre os mesmos). A condução do assunto “judias polacas”, elemento fundamental da peça, é realizada de modo certeiro, no que diz respeito ao ponto exato para que se iniciasse a nova etapa de conflitos e clímax. O elenco se revela coeso e harmônico, esbanjando a credibilidade de uma família judaica que vive no Brasil, transmitindo uma verdade interpretativa em todos os vieses, que vão das saudações ditas em hebraico, às rezas tradicionais, e aos rituais atinentes à religião, como a lavagem das mãos em uma bacia. Atores audazes que provam desde o começo do espetáculo que, por meio de seus personagens, estão dispostos a nos contar uma história diferente usando toda a sua carga de emoção disponível. Suzana Faini, uma de nossas mais prestigiadas atrizes, já em suas pioneiras locuções exibe a sua magnitude como artista, espalhando a sua nobreza na atuação, amparada numa voz pujante e sugestiva que ecoa por todo o ambiente. Suzana defende Esther, uma senhora amarga, ressentida e preconceituosa, mas com inquebrantável sentimento de apego às tradições judaico/religiosas, e por conseguinte à sua família, mesmo que seja de um jeito um tanto quanto torto, com notória sublimidade e ofuscante brilho. Ainda assim, não se trata de uma mulher apenas com defeitos, e sim um ser humano frágil na sua existência, que deixou com que aqueles sobrepujassem as suas potenciais qualidades como esposa, mãe e avó. Rogério Freitas, como o patriarca David, realiza uma composição magistral do homem preso a um segredo determinante e deflagrador da ação. Rogério se preocupou, e atingiu o seu intento, em construir um homem extremamente vulnerável em sua condição física. Vimos a princípio um David silencioso, com poucas inserções orais, todavia, em certo momento, testemunhamos um David que até então poucos ou ninguém conhecia, bravo, destemido e sem receios das consequências de suas atitudes. Alexandre Mofati busca identificar Beto como um genro, pai e marido multifacetados, pois o enxergamos como um sujeito opressor que trata sua esposa infantilmente, um cidadão ambíguo com relação à sua obediência aos rituais sagrados de sua religião, e um indivíduo mergulhado em poderosos preconceitos. Alexandre delineia os traços do perfil de seu papel com a eficiência e o valor que lhe foram demandados. Gabriela Estevão com plenitude impinge candura e indignação à bonita Débora, quando se torna protagonista de distintas passagens da narrativa. A atriz percorre o difícil atalho da transição de posturas com admirável fluidez. Priscila Vidca, com sua engajada Clara, exibe com nítida presença cênica toda a transgressão do membro da família que se mostra capaz de enfrentar o “status quo” daquele clã em disfunção. Cabe a Priscila um dos momentos-chaves do espetáculo, que é o de explicar tanto para alguns personagens quanto para o público a história das judias polacas. A atriz, também diretora da peça, correria o risco de esbarrar no limite tênue do didatismo, porém a sua compreensão como intérprete lhe proporcionou um resultado feliz nos seus propósitos. A Clara de Priscila Vidca funciona como um agente modificador, aquele que traz mudanças e leva terceiros a se empenharem em sair do comodismo individual. Verônica Reis, como Regina, imprime com medidas exatas o que se verifica, entre outros detalhes, nas suas linguagem corporal fragilizada e emissão vocal num nível abaixo dos demais, toda a complexa passividade da esposa aviltada pelo marido. Verônica possui a virtude de nos surpreender em uma virada de sua personagem, que só é vitoriosa por sua vocação em graduar as emoções diferenciadas. E Vicente Coelho, como Flávio, o futuro marido de Débora, que chega numa fase da trama em que todas a verdades já haviam sido reveladas, em que todo o silêncio que ditava as ordens da convivência familiar rompera, construiu o seu papel com as nuances de perplexidade natas de quem se depara com uma situação que não corresponde à esperada. No entanto, o jovem ator se vale de gracioso humor e efusividade, integrando-se facilmente no quadro ficcional apresentado. Cabe a Vicente um belo episódio da encenação no qual lidera com firmeza e credibilidade uma prece em hebraico. O cenário de Nello Marrese corresponde com eficácia à ideia de se reproduzir um lar comum a qualquer família de natureza judaica. Convicto em suas intenções, Nello posiciona uma cadeira de madeira com estofamento vermelho no lado esquerdo do palco, tendo mais à direita, e servindo como parte precípua da história, uma mesa retangular composta com taças, copos e garrafas de vinho, coberta por uma sóbria toalha, e quatro cadeiras. Mais ao fundo, percebe-se uma pequena estante sobre a qual há utensílios para rituais sagrados judaicos, como uma bacia e uma toalha branca. Os pufes que lhe estão próximos são usados pelos atores na hora do jantar. Os figurinos de Bruno Perlatto estão condizentes com a personalidade de cada membro do clã, demonstrando a sua versatilidade para compor diferentes tipos. As peças de vestuário passam pela elegante blusa azul de Suzana Faini, pelo colete cinza sobre blusa branca de Rogério Freitas, até o costume conservador de Verônica Reis, sem se esquecer obviamente dos quipás. A iluminação de Renato Machado sublinha com destreza toda a ambiência daquele espaço em que se encontram familiares e se desenrolam os conflitos. Como o espetáculo apresenta diversos escalonamentos dramáticos, com aberturas para a introdução da comédia acerba, Renato, do mesmo jeito, busca seguir esta variação, e suas luzes e tons se alternam a fim de complementar com absoluta satisfação o conjunto cênico. Juntam-se a um plano aberto bem suave e agradável, focos como aqueles sobre a citada mesa, valorizando os que estão ao seu redor. “Silêncio!” é uma peça importante sob vários prismas. Aborda com desenvoltura em sua narrativa um tema tabu para um povo sem resvalar para parcialidades (e deixa os seus espectadores inteirados do assunto), e a partir daquele outras questões não menos relevantes para o núcleo familiar e para nós como um todo são levantadas. Um espetáculo que nos aproxima de uma realidade em potencial distante, mas que está bem ao nosso lado. Com um elenco unido na sua perseverança em nos contar com verdade teatral uma boa história, a obra de Renata Mizrahi, em sua essência, faz uma exaltação à supremacia da verdade em detrimento do silêncio que acumula hipocrisias, e destrói ruidosamente as relações humanas. “Silêncio!” é uma peça que não pode ser calada por tudo o que representa como expressão dramatúrgica. A voz cênica de “Silêncio!”, gigante em sua extensão, ultrapassando as fronteiras do palco, far-se-á ouvir por onde quer que passe, despertando ouvidos que teimam em se manter surdos. Muito além do proscênio.

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