Blog do Paulo Ruch

Cinema, Moda, Teatro, TV e… algo mais.

12347729_803370926451935_1050376271422994180_n
Foto: Divulgação do espetáculo

Em 1968, o cineasta, escritor e poeta Pier Paolo Pasolini, tão prestigiado quanto controverso, lança no Festival de Veneza aquela que seria considerada uma de suas mais importantes obras, o filme “Teorema”, com Terence Stamp e Silvana Mangano. Polêmico e marginal, Pasolini, autor de “Decameron” e “Salò ou os 120 dias de Sodoma”, fez uma crítica às instituições italianas da época, por meio de uma história em que uma família burguesa tem a sua rotina e os seus valores alterados pela visita de um estranho. Valendo-se desta referência e dos escritos de outro insigne poeta, Arthur Rimbaud, Francis Mayer decidiu transpor para os palcos, com dramaturgia de sua lavra, este enredo em que se fala abertamente, sem pudores ou ressalvas, sobre como o ser humano em sua essência lida com os seus mais obscuros desejos, e como estes podem vir à tona, sem controle, a partir de uma provocação externa não aguardada. O espetáculo dirigido por Francis se inicia com um rapaz alvo seminu (Vinicius Vommaro), com os braços estendidos para o alto como se acorrentado estivesse. Ele clama pela liberdade legítima, defende o seu ideal de felicidade e ataca o moralismo acaçapante da sociedade e seus membros. Usando a figura de um narrador ou voyeur (Vinicius Vommaro), o encenador nos coloca a par dos acontecimentos que advirão com a chegada misteriosa de um belo moço (Lucas Malvacini) vestido apenas com um bem cortado terno vermelho na casa de uma família aparentemente perfeita nas suas relações, obediente aos ditames e convenções impostos por uma coletividade hipócrita em seus conceitos de idealização de estado de felicidade. Todos os integrantes do núcleo familiar, um a um, serão em maior ou menor grau transformados em sua personalidade formada por bases que lhes deixam acomodados, e em posição conveniente para a vista alheia. O visitante, o Hóspede vivido por Lucas Malvacini, leitor voraz das páginas de um livro de Rimbaud, com voz mansa e envolvente, seduz com a sua razão particular, seu dom de manipulação, sua beleza que derriba os fracos, e retórica dominante frente a qualquer argumentação contrária ao que pensa, desperta ferozmente os desejos outrora escondidos do pai, o empresário bem-sucedido Antero (Regis Farah), da mãe, a infeliz esposa Laura (Flavia Santa Maria), da filha liberal Ornela (Izabella Guedes), do filho primogênito atormentado, Michel (Felipe Salarolli), e da empregada doméstica Elisa (Luciana Albertin). Do começo ao epílogo de “O Hóspede”, o universo sexual do indivíduo, com os seus infinitos enigmas, com suas barreiras intransponíveis para o seu definitivo conhecimento, é explorado. Não importam os gêneros aos quais pertençam os desejos. O que se propõe com esta produção é a abordagem sem rodeios ou subterfúgios da importância de se discutir o sexo, respeitando o seu significado em nossas vidas, dentro de uma estrutura narrativa convincente, lançando como instrumento a simbologia dos relacionamentos interpessoais narrados em tom ficcional, mas em aliança com uma realidade possível. Francis Mayer, como diretor, preocupou-se em nos contar uma história instigante, ardente, sensual e intensa, não permitindo que o ritmo do enredo arrefecesse, e que a nossa atenção e curiosidade pelo que nos é apresentado se mantivessem intactas. Francis não preteriu a ocupação plena do espaço da ribalta pelo seu elenco. Os atores se aproveitam de todo o perímetro do tablado que lhes é fornecido a fim de dinamizar as cenas. Além disso, percebe-se um cuidado especial quanto à palavra dita pelos seus intérpretes, procurando o nível preciso das intenções dos personagens. A nudez masculina, sempre um risco, é representada com elegância e naturalidade. Contextualizada, torna-se elemento constituinte do painel exposto. O elenco está coeso, afinado e totalmente em consonância com a proposta dramatúrgica que lhe foi feita. Lucas Malvacini, como o Hóspede, mostra a sobriedade e a precisão dos gestos que seu papel demanda. Possuindo pujante carisma, beleza inconteste e sedução nata, o que lhe favorece na construção de seu “character”, Lucas atinge com sucesso a profundidade comportamental do visitante imprevisto, alcançando os patamares exigíveis para a elaboração vitoriosa do complexo personagem. Como ressaltado, sua entoação vocal é calibrada no sentido de envolver suas vítimas, exibindo outrossim adequada espontaneidade. Vinicius Vommaro, como o narrador/observador da peça, dá vida a uma voz dissociada da ação, como se fosse uma testemunha privilegiada dos fatos, não os julgando, atento aos episódios, esclarecendo de forma clara e pertinente, inclusive desvelando as entrelinhas, o desenvolvimento do quadro cênico. Vinicius Vommaro, com potente e articulada vocalização, elogiosa expressividade de corpo, impinge valor irrefutável à fundamental missão que exerce. O narrador de Vinicius serve como significativa ponte entre nós e a ação dramática. Regis Farah desenha a princípio as linhas do perfil do chefe de família Antero com doses de severidade e postura inquebrantável, mas em seguida nos oferta um homem angustiado, fragilizado e pusilânime defronte à sua contingência, logrando com habilidade esta difícil transição. Flavia Santa Maria, como a esposa Laura, transmite-nos a plenitude de suas paixões represadas, e depois libertas, demonstrando também com verossimilhança a angústia de uma mulher insatisfeita com o seu matrimônio. Flavia reafirma com êxito os sentimentos conflituosos que assombram a existência de Laura. Diego Rosa interpreta um viril e atlético garoto de programa, possuidor de sedução selvagem, habitante das ruas cariocas, que leva uma das mulheres retratadas na encenação para sua casa em uma ladeira qualquer no silêncio noturno. Diego vivencia seu personagem com a força dramática solicitada. Tal qual um homem imerso em sua congênita selvageria, toma em seus braços com sensualidade agressiva a moça inerte refém das próprias fantasias antes inexploradas. Izabella Guedes compõe Ornela, a filha mais nova do clã, com doçura efusiva, amparada em uma infantilidade proposital com pinceladas de humor. Os seus desejos íntimos pelo hóspede são incontornáveis, e compatíveis com o furor sexual percebido nas garotas de sua idade. Pode-se dizer que se trata de um momento leve do espetáculo, que trilha, como sabemos, pela vereda do drama assumido. Luciana Albertin, como Elisa, a encarregada dos afazeres domésticos da casa, personifica com ajuste e compreensão interpretativa a também jovem mulher subserviente no trabalho, no entanto demasiado aberta para a libertação de suas intenções afetivas com o rapaz visitante. Luciana prova que por trás de seu protocolar uniforme de serviçal há alguém disposto a se consumir em profundas e ardentes realizações pessoais. E Felipe Salarolli atua com genuína vontade para conferir credibilidade ao moço preso num largo emaranhado de conflitos individuais no tocante à sua identificação sexual. O ator oferece a Michel, o seu personagem, uma sutileza nas suas dores internas, e algo próximo à redenção arrebatadora ao se desvencilhar das amarras dos preconceitos por ele criados, em decorrência da sociedade moralista na qual vive. O cenário segue um padrão parcimonioso que auxilia na valorização do ator e seu texto (há um gradil ao fundo com uma porta vazada sobre um elevado de madeira com escadas laterais; no centro do palco, encontra-se um módulo com capacidade de subdivisão que atende às necessidades de uma cama). A iluminação é uma eficiente aliada no embelezamento da obra com o uso cauteloso de sombras, focos pontuais e transversais, com a utilização de cores, como o vermelho e o rosa, atrás da referida porta vazada com o objetivo de demarcar distintas cenas. A trilha sonora se insere com pertinência no contexto dramatúrgico, lançando mão de melodias incidentais insinuantes e vocais femininos poderosos. Os figurinos são variados, complementando com propriedade a montagem (destaca-se, dentre outros costumes, a alfaiataria do bem cortado terno vermelho, já citado, usado por Lucas Malvacini). “O Hóspede” é uma peça teatral que desde já nos provoca o interesse por resgatar, sob a ótica de seu dramaturgo e diretor, Francis Mayer, o legado de dois notáveis e incompreendidos, pela sua suposta marginalidade, literatos, Pasolini e Rimbaud. O mundo subversivo, transgressor e atraente destes poetas que decidiram se rebelar contra a ordem moral de suas épocas justifica a concretização do espetáculo. Conclui-se com esta obra que a aparência das instituições é volátil e quebradiça, e que a existência humana pode ser modificada a qualquer momento com a intervenção de um agente externo, como o Hóspede. Até mesmo nós, espectadores, devemos ser prudentes com visitas inesperadas. Se for o Hóspede de Lucas Malvacini, a decisão de abrir a porta para a sua entrada é exclusivamente sua. Esteja certo de que ele mudará para sempre a sua vida.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: