Foto: Roberto Naar
Em um ano que começa com a polêmica da republicação da obra de Adolf Hitler, “Mein Kampf” (“Minha Luta”), após a mesma ter caído em domínio público, já provocando vozes dissonantes de lado a lado, o espetáculo de Marcia Zanelatto, “Por Amor ao Mundo, Um Encontro com Hannah Arendt”, que encerra a trilogia de peças sobre mulheres marcantes do século XX (as outras foram “Deixa Clarear”, peça musical sobre Clara Nunes, e “Desalinho”, em que há a representação da poeta portuguesa Florbela Espanca, todas dirigidas por Isaac Bernat), encontra um espaço oportuno e conveniente no cenário teatral brasileiro. Nesta ótima montagem que coincide com os 40 anos da morte da escritora, Marcia esmiúça sem didatismos e com visível sensibilidade, apoiada em cuidadosa e rica pesquisa histórica, a vida da pensadora alemã de origem judaica que estremeceu os conceitos preestabelecidos pelos formadores de opinião acerca das barbáries cometidas pelo Terceiro Reich na Segunda Guerra Mundial, ao criar o termo “a banalidade do mal”, a partir de seu testemunho e estudo do depoimento e julgamento de um oficial nazista, Adolf Eichmann, encontrado anos depois do fim do conflito em Buenos Aires, na Argentina. Sua dedicação a este tema levou Hannah a escrever o livro “Eichmann em Jerusalém – Um Relato sobre a Banalidade do Mal”, surgido em seguida a uma série de artigos publicados na revista americana “New Yorker”. A narrativa de Marcia Zanelatto se inicia com a figura de um narrador interpretado por Michel Robim, após poético momento de expressividade corporal, traçando um paralelo, em conversa direta com a plateia, entre os acontecimentos bárbaros atuais, como as imigrações de refugiados no Mar Mediterrâneo, e os fatos bélicos que aterrorizaram o mundo na primeira metade do século passado. A dramaturga buscou com inegável sucesso nos transmitir a plenitude das profundas ideias de Arendt (Kelzy Ecard), perpassando as principais etapas de sua existência, desde a infância, quando ouvia os conselhos de sua mãe (Carolina Ferman) para que não se deixasse subjugar pelo antissemitismo, até a vida jovem e adulta, com o romance secreto com o seu professor, o filósofo alemão Martin Heidegger, e o posterior casamento com o cientista político Heinrich Blücher, com quem ficou até o final (ambos personificados por Michel Robim). A escritora Mary McCarthy (Carolina Ferman), sua amiga e confidente, serve como ponte crucial para que os seus pensamentos à frente do tempo, e à margem do senso comum, encontrem uma fiel e arguta interlocutora. Entremeando diálogos de cunho político, literário e filosófico, apartes em relação ao cotidiano doméstico das duas mulheres suavizam a aridez dos assuntos discutidos. Soa interessante e complementar a citação de visões particulares de pensadores como Nietzsche e Karl Jaspers, além dos comentários sobre nomes que nos são caros, como o escritor inglês D. W. Lawrence, a poetisa americana Elizabeth Bishop e a arquiteta, paisagista e urbanista brasileira Lota de Macedo Soares. A autora nos esclarece com inteligência textual e coesão dramatúrgica o norte precípuo do ideário de Hannah Arendt: o convencimento de que pessoas normais são capazes de cometer atrocidades. O mal seria banal, e o bem, profundo. Substituiu-se o “Não Matarás” pelo “Matarás”. Para a sociedade, é confortável se sugestionar de que somente “monstros” sejam capazes de perpetrar crueldades. Torna-se dolorosa a aceitação de que o crime possa ser executado por alguém comum, normal. No caso de Hannah, Adolf Eichmann, o oficial nazista, foi o símbolo representativo da “banalidade do mal”, pois apenas e tão somente obedecia às ordens de seus superiores. Eichmann, a despeito do extermínio de milhões de judeus, defendia a sua condição de cumpridor de seus deveres. O que Hannah Arendt, também autora de “As Origens do Totalitarismo”, quer nos provar é que se consentirmos que só a monstruosidade do ser humano é capaz de fazê-lo cometer o inenarrável em termos de delito, estaríamos abrindo um perigoso caminho para a prática de tantos outros atos terríficos. Sendo atacada implacavelmente por não poucos e acusada até mesmo de antissemita, Hanna Arendt, defendendo o diálogo e o pensamento, pelejou por toda a sua vivência para que fossem validadas as suas concepções sobre a relação entre a normalidade do indivíduo e sua capacidade de praticar o mal. No fundo, a pensadora se agarrava a uma ideia de redenção da humanidade. Ao se defrontar com uma jovem contestadora e idealista, Mirna (Carolina Ferman), a filósofa encontrou uma oponente à altura para a defesa de seus audazes conceitos. Toda a dramaturgia de Marcia Zanelatto foi compreendida com ampla exatidão e considerável grau de sensibilidade artística pela direção de Isaac Bernat, que soube equilibrar o vasto, poderoso e delicado material que tinha em mãos, e transformá-lo em uma envolvente, cativante, elucidativa e bonita encenação teatral, com a nítida preocupação de tornar o espetáculo, a despeito do assunto espinhoso de que trata, em algo cenicamente aprazível. Isaac se esmerou na condução da interpretação de seus atores, em suas deslocações certeiras pelo palco, no revezamento calculado do silêncio e do som, na cumplicidade da luz e suas cores como fonte atenuante do ambiente e na força da música vocalizada. O elenco formado por Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Michel Robim se encontra na mais absoluta sintonia com o universo que lhe foi proposto, sendo que, cada um, ao seu modo distinto, impinge aos seus personagens o nível de densidade dramática diferenciada exigida. Kelzy Ecard, usando óculos de grau, e vestindo uma saia plissada grafite e uma blusa com botões, constrói uma legítima, empática e sedutora Hannah Arendt. Kelzy possui inegável domínio de cena, excelente voz, sendo observadora acurada das dimensões de seus gestos cautelosamente mensurados, qualificadores da credibilidade da imponente pensadora alemã. A atriz consegue pincelar o seu papel não apenas com o drama que está implícito em sua história de vida, mas com uma bem dosada aplicação de fino humor, o que lhe confere maior despojamento e a aproxima das “pessoas comuns”. A Hannah Arendt de Kelzy Ecard detém uma perceptível leveza de espírito, em meio a tanta aspereza factual em seu entorno, e isso ocorre graças à compreensão anímica de sua parte relacionada à figura feminina em destaque. Carolina Ferman interpreta várias personagens, sabendo com inteligência cênica diferenciá-las, utilizando-se acertadamente de uma visão própria bastante particular e criteriosa dos perfis demasiado opostos dos tipos que personifica. Como a mãe de Hanna, Carolina, que articula as palavras com respeito às mesmas, mostra a lucidez e o juízo moldados face às adversidades que o antissemitismo já criava. Ao defender a escritora Mary McCarthy, revela-nos alguém possuidor de extrema habilidade na condução de seus pensamentos para acompanhar a velocidade das ideias emitidas pela amiga filósofa. E como Mirna, a jovem que dialoga com a pensadora, numa batalha construtiva de argumentos e contra-argumentos, a atriz imprime uma vivacidade coerente com o comportamento contestador da moça. Michel Robim, como o narrador, exprime clara e explícita comunicação com os espectadores, dando-nos o indispensável entroito para que possamos nos familiarizar com a encenação (antes disso, como dito acima, Michel protagoniza uma belíssima passagem na qual ostenta sua incrível expressão de corpo, com movimentações bastante delicadas e precisas, num balé poético ao som de uma melodia atravessada por emissões do nome “Hannah”). Como Heidegger, o ator empresta um ar de superioridade pertinente ao grande filósofo, cobrindo-o com uma camada de implacabilidade retórica (seu colóquio com a aluna Hannah Arendt é feito num contexto de rimas devidamente alinhavadas). Além de um garçom desenhado com tintas de afetação em seu porte, Michel Robin encarna o marido da filósofa com quem conviveu por toda a sua existência, Heinrich Blücher, compondo-o com segurança, e lhe oferecendo um caráter de companheirismo e parceria que tanto cativaram e encantaram Arendt. A cenografia de Doris Rollemberg exibe como maior trunfo um criativo, belo e imenso painel branco com múltiplas circunferências geométricas que se emaranham, dando-nos a impressão de que estamos diante de uma enorme teia, sem que haja uniformidade em suas bordas (há ainda em seu plano alguns círculos com determinada distância entre si, e no canto superior direito uma bola; a primeira impressão que temos é a de que se trata de um espaço sideral com toda a sua vastidão, ocupado por planetas e satélites, e a mencionada bola simboliza uma luminosa lua). Como adereços complementares, um módulo de madeira corrediço que se subdivide, formando dois assentos e uma mesa, além de uma segunda. Em uma delas, testemunhamos Hannah compenetrada se debruçando sobre uma máquina de datilografar, o que nos reporta a um passado nem tão longínquo em medidas históricas, sem a opressão da tecnologia digital (não podemos deixar de citar um idílico instante em que o ator Michel Robim circula pelo palco com uma bicicleta). A iluminação de Aurélio de Simoni é esplendorosa, explorando com agudeza e sensibilidade uma paleta infinda de cores vibrantes, que são projetadas com contínua alternância sobre o painel que representa o universo. A luz de Aurélio torna o azul mais azul, o rosa mais rosa, o lilás mais lilás, e assim por diante. Os atores também são valorizados com focos sobre si mesmos. O que se vê em bastantes momentos é uma ambiência que se aproxima do onírico. Os figurinos de Desirée Bastos fazem uma bem-sucedida e exitosa viagem no tempo, um passeio nostálgico pelos costumes sóbrios trajados por Hannah Arendt, imprimindo à pensadora uma solenidade e parcimônia necessárias (até mesmo os seus sapatos remetem ao período em que se passa a ação). As personagens de Carolina Ferman, da mesma maneira, são contempladas com vestidos condizentes com os seus perfis (Mirna, no caso, veste roupas mais modernas e exuberantes). E no que concerne aos papéis vividos por Michel Robim, Desiree apostou nos tons cinza e branco, respeitando as regras do comedimento visual. A direção musical de Alfredo Del-Penho nos instiga com suas experimentações melódicas, nas quais estão incluídas vocalizações distintas, canções em hebraico e sons variados de instrumentos (há uma inclinação para a sonoridade jazzística). O que Alfredo nos fornece como material musical nos causa uma miríade de sensações, que vão da estranheza (na melhor das acepções) ao enternecimento. A direção de movimentos coube a Marcelle Sampaio, com um trabalho final esmerado, que se deveu a uma sensível observância dos tipos participantes do entrecho. “Por Amor ao Mundo, Um Encontro com Hannah Arendt” é um espetáculo obrigatório. Não só pelo fato de conhecermos uma mulher do século XX que, com suas arrojadas ideias, ajudou com que muitos passassem a enxergar de outra forma o contexto no qual se insere um indivíduo que cometeu uma barbárie, mas pela razão de nos defrontarmos com uma genuína pensadora que defende ferrenhamente uma reflexão sobre o ser humano e sua condição no meio em que vive. Decerto, Hannah Arendt não é uma unanimidade e nunca será. No entanto, há que se admirar a sua bravura e determinação num ambiente histórico adverso e hostil. O espetáculo de Marcia Zanelatto é uma obra essencialmente otimista, apaixonada. Em uma passagem da peça, Mirna diz a Hanna Arendt que sua avó lhe afirmou que “O mundo só se sustenta com o sorriso de uma criança”. No sorriso de uma criança há amor. E por amor ao teatro, Marcia, Isaac, Kelzy, Carolina e Michel nos proporcionaram este inesquecível encontro com… Hannah Arendt.