Foto: João Júlio Melo
Aquela que foi considerada por Aristóteles como sendo o mais importante exemplo de tragédia grega, “Édipo Rei” (479 A.C), e que serviu como objeto de estudos de psicanálise para Freud e Michel Foucault, oferece os elementos basilares e fundamentais para que o dramaturgo Pedro Kosovski, integrante da Aquela Cia. (“Cara de Cavalo”, “Outside: Um Musical Noir”, “Edypop” e “Caranguejo Overdrive”) pusesse em prática a encenação “Laio & Crísipo”, com a direção de Marco André Nunes (seu fiel colaborador e também membro da Aquela Cia.), com os atores Erom Cordeiro, como Laio, Ravel Andrade, como Crísipo, e Stella Rabello, como Jocasta. O espetáculo é uma proposta moderna, contemporânea, com elementos pop, equilibrando o viés dramático próprio à fonte de que se origina, com um leve verniz cômico, ao se levantar a questão do conceito de tragédia clássica e seu lugar no tempo, e o papel que seus partícipes possuem em suas tramas universais. Lançando mão de excelentes músicos tocando ao vivo (Mauricio Chiari e Pedro Nego), que parecem de modo particular interagir com os personagens centrais, o espetáculo de Pedro Kosovski, que pode ser referido como uma ópera-rock, costura arrojadamente o entrecho de sua narrativa com uma pesquisa aprofundada da obra de Sófocles, fornecendo-nos a sua visão pessoal, diferenciada e anticonvencional, com tintas de sensualidade conduzidas com potência e elegância, reportando-nos à Grécia Antiga e seus ícones míticos com fluidez e beleza cênicas. Sua linguagem transgride o academicismo vigente na montagem de textos trágicos/clássicos ao qual estamos acostumados a assistir, o que é meritório, haja vista que qualquer iniciativa legítima e bem-intencionada de se romper paradigmas e conservadorismos no campo dramatúrgico é saudável para o cenário teatral e para o público sedento por novidades. “Laio & Crísipo” nos narra o ardente caso de amor, paixão e desejo entre o rei de Tebas Laio (no futuro, assassinado por seu filho Édipo, confirmando a macabra profecia do oráculo de Delfos) e o jovem Crísipo, filho do rei Pélope (confiado a Laio para que aprendesse noções de política, lutas e arte). O enredo se desenvolve, em grande parte, em um metafórico deserto para o qual Laio se refugia após o exílio de Tebas, provocado por conspirações políticas e disputas acirradas de poder. Laio, “o rei da pederastia”, é recebido como um soberano para onde ruma, mesmo na condição de exilado. Além das diversas licenças poéticas adotadas que se convergem (a peça, que tem Jocasta, mãe de Édipo com Laio, e que se casou com o filho como fora previsto na citada profecia, como narradora de importantes fatos e participante crucial do enredo), percebe-se, a despeito do período histórico ocorrer em 800 A.C, uma certa atemporalidade. A liberdade e contemporaneidade textuais utilizadas por Pedro permitem com que Laio e Crísipo se aventurem em corridas frenéticas de motocicleta munidos de seus capacetes negros, numa imagem simbólica de ato sexual, sem destino, seguindo a ordem de uma linha reta e todos os riscos que a mesma contém com a sua ausência de finitude. Um “On the Road” grego. As corridas são uns dos pontos altos da encenação, em que os atores usam a pujança de suas vozes num timbre rascante, num grito viril ensurdecedor e libertador, ao som de batidas eletrônicas pulsantes, e vibração feérica de feixes luminosos que se alternam com acentuada velocidade sobre seus corpos. Laio é um homem que abusa de seu poder de masculinidade e sedução, cínico, com forte capacidade de manipulação de seu semelhante, o que facilita a sua aproximação inescapável de Crísipo, frágil, ingênuo, romântico e sonhador. Crísipo acredita em suas promessas de amor, em uma lua de mel nas águas do Mar Egeu. Por outro lado, testemunhamos uma Jocasta lasciva, distanciada, convicta, firme, fria na descrição dos acontecimentos, e voraz no aspecto sexual. Jocasta é vista numa passagem da sinopse como uma prostituta de beira de estrada, dançando voluptuosamente, recebendo as ordens de um Laio voyeur e autoritário. O relacionamento de Laio e Crísipo é movido por alta voltagem sexual. O corpo musculoso e suado de Laio envolve o corpo delgado e indefeso de Crísipo com ferocidade erótica. A boca úmida do homem com barba se junta à de seu amante imberbe numa explosão incontida de desejos. Ouve-se a respiração compassada e desejosa do homem maduro ao agarrar o seu mancebo, já vitimado por paixão incontornável. Laio trai Crísipo com Jocasta. O vestido longo de veludo vermelho com fenda insinuante da mulher bela de melenas loiras é coadjuvante no encontro de seu corpo alvo com o corpo nu másculo do exilado Laio, com seu indomável apetite pela carne do outro. Estas relações interpessoais se ambientam num universo com ares apocalípticos, no que tange à sua desolação, solidão e desesperança. O autor oferta ao espectador a liberdade de se redesenhar o final conhecido dos seus personagens, lançando mão de uma relativização histórico/mítica. Com esta montagem, observamos cada um de seus integrantes defenderem o seu espaço no contexto de suas experiências e uma preocupação de se estabelecerem como relevantes figuras da tragédia contada. Jocasta diz que nada aconteceria sem a sua intervenção. Crísipo quer ser lembrado no futuro. Nas entrelinhas da obra, o real e o irreal se imiscuem, o trágico se redefine, a paixão se torna amor, e a esperança renasce. A direção de Marco André Nunes se propõe a seguir um caminho em que se intenta atingir um nível de compreensão distinta acerca do conceito complexo de tragédia. Mas na verdade, Marco o simplifica e o relativiza. O encenador logra considerável sucesso em seus objetivos precípuos com a montagem. Uma das qualidades mais visíveis de sua habilidosa direção é saber extrair o máximo de intensidade dramática e emocional de seus atores, fazendo com que estes digam o texto inspirado em uma tragédia clássica num tom coloquial, espontâneo e inteligível, obedecendo as características pessoais de seus perfis. Além disso, soube com destreza extrair de seus intérpretes suas potencialidades sensuais, resultando em uma manifestação corporal provocativa, com extensa significância, e plenamente inserida no contexto narrativo (as cenas de intimidade entre os casais são bonitas de se ver, indicando a trilha de erotismo implícita na história). Erom, Ravel e Stella se movimentam de modo constante e permanente, trocando de maneira racional suas posições (em alguns episódios, um ou outro fica imóvel, enquanto os demais realizam suas cenas). Há um instante em particular que exemplifica bem o nível de modernidade e o desenho pop objetivados pelo diretor em consonância com o texto dramatúrgico: os três atores dançam charmosa e alegremente ao som de uma canção dos Eurythmics, “There Must Be An Angel (Playing With My Heart)”. Simplesmente encantador este momento teatral em toda a sua ludicidade. Erom Cordeiro, um ator que coleciona trabalhos dignos nos palcos, tendo encenado Teneessee Williams, Edward Albee, Anthony Shaffer e Neil LaBute, só para citar alguns, mostra-se, a cada peça de que participa, mais dominador de suas intenções interpretativas. Erom exibe maturidade artística patente ao construir o seu Laio com toda a gama de sedução, cinismo e poder que caracterizam primeiramente o personagem que nos embevece. Soma-se a isso o fato do intérprete possuir um carisma natural e uma desenvoltura envolvente, o que faz com que os papéis que defenda, sejam eles de origens variadas, antagonistas ou heróis, ou sujeitos comuns, tornem-se cativantes para o público. Laio conquista não somente Crísipo e Jocasta, mas nós, espectadores. Erom, com Laio, lapidou ainda mais o seu talento lapidado. Ravel Andrade é um jovem ator que transborda emoções consistentes e tocantes por todos os flancos ao assumir a fragilidade, as incertezas e inseguranças, a decepção de um amante, o romantismo ingênuo dos apaixonados, e uma bravura repentina pronta para enfrentar quem a ele se opuser, em determinados períodos. Ravel Andrade, que no início do espetáculo, impressiona-nos com a plasticidade de seu corpo seminu com movimentos contorcidos e sensuais, trajando apenas tiras pretas de couro aparente, numa imagem genuinamente fetichista, compõe Crísipo com ricas nuances, detalhes e filigranas que o tornam plenamente verdadeiro no universo trágico/amoroso do qual faz parte, e se torna vítima. Stella Rabello, como Jocasta, transita com exuberância pelo palco, deixando rastros de sua tentadora beleza e traiçoeira sedução por onde quer que passe. Stella consegue nos convencer acerca da multiplicidade de sentimentos da mulher fatal, em uma de suas diversas definições possíveis. Porém, Jocasta é muita mais que isso. Jocasta é fria, intensa, passional, sensual, lasciva e forte, e a atriz Stella Rabello atende e cumpre a todos esses requisitos de um ser feminino dotado de inegável complexidade. O cenário de Aurora dos Campos é inventivo e insinuante, ao dispor no fundo do palco, sobre um pequeno tablado com alguns degraus, três espécies de nichos de madeira vazada em cujo interior os atores se posicionam em cadeiras do mesmo material, e se movimentam. Em cima de cada nicho, há um letreiro luminoso com luz vermelha (o que confere um ar de luxúria e erotismo), que indica os nomes dos personagens míticos, na seguinte ordem: Laio, Jocasta e Crísipo. Nestes espaços, Erom, Stella e Ravel têm vários comportamentos, ostentando suas aptidões expressivas corporais, e expondo os seus pensamentos individuais. Contudo, os artistas não são obrigados necessariamente a ficarem no lugar com o seu respectivo nome, permitindo a dinamização da ação. As mesas de som dos músicos ficam dispostas cada uma de um lado da ribalta, e sobre as mesmas há alguns objetos de cena, como uma faca e os capacetes das motos. Os figurinos de Marcelo Marques são propositadamente contemporâneos e sensuais, valorizando as formas físicas do elenco (calças justas de jeans ou não, com a cintura quase baixa, casacos, uma camisa na qual se lê “Édipo”, o vestido longo vermelho com fenda, e a roupa fetichista são alguns exemplos). A roupa, como símbolo pujante da representação de uma época, emula assim com a Antiguidade em que se situa a narrativa, causando um resultado interessante, criando um novo estilo, algo como “urbano trágico”. A luz de Renato Machado nos fascina irresistivelmente com sua extensão de possibilidades adotadas. Sua iluminação demarca as cenas com sobeja propriedade, sofisticação e capacidade de embelezamento. Destacam-se os feixes luminosos sobre os nichos, ou sobre um ou dois deles, com o aproveitamento de sombras. Há um plano aberto mais próximo do suave, luzes que vêm por detrás do palco, quatro refletores em fila colocados no chão do lado esquerdo do espaço teatral, exercendo função essencial na valorização das cenas com seus potentes focos. Um dos mais impactantes e belos momentos da iluminação de Renato decorre quando os atores simulam estar em cima de uma motocicleta em altíssima velocidade (como já disse, o espocar das luzes sobre a imagem dos atores é deslumbrante e empolgante). E por último, uma enternecedora referência ao teatro de sombras, com suas silhuetas eloquentes. A direção musical de Felipe Storino é sensacional, um deleite para aqueles que creem que um som estudado, selecionado, no sentido de somar, acrescentar ao espetáculo como conjunto cênico é primordial. Felipe se vale não só dos competentíssimos músicos à sua disposição, com guitarras e sintetizadores, lançando mão de uma diversidade de sonoridades eletrônicas marcantes e contagiantes, como se utiliza de composições originais interpretadas com absoluta verdade e charme por seus atores. A direção de movimento ficou ao encargo da prestigiada coreógrafa Marcia Rubin, que se empenhou ao ponto de conquistar um patamar de excelência, precisão e qualidade riquíssimo e notável em sua execução. “Laio & Crísipo” serve tanto para reafirmar a sólida parceria teatral de Pedro Kosovski e Marco André Nunes na condução da Aquela Cia., como associar com convicção Pedro a um dramaturgo renovador e criativo de sua geração. A peça se incumbe de nos confirmar de que é possível realizar algo cenicamente diferente, respeitando os valores inamovíveis da arte teatral, mas transgredindo um determinado comodismo vigente. O espetáculo se encarrega de nos provar de que é viável da mesma forma contar uma história clássica universal que nos seja próxima nos dias de hoje. O amor, a paixão, o desejo, o medo do futuro e a conquista por um espaço em nossas próprias histórias são atemporais. Crísipo diz que “no futuro todos irão se lembrar de seu amor com Laio”. No futuro, iremos todos nos lembrar também de todo o amor de Erom Cordeiro, Ravel Andrade e Stella Rabello em dar luz e sentido a “Laio & Crísipo”, como personagens reais da vida.
Laio e Crísipo é uma obra prima!Todos perfeitos!
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Muito obrigado pelo comentário, Juarez Santos. Abraços.
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