Foto: Douglas Shineidr
Vê-se um homem suspenso no ar. Dele, ouve-se um aprazível assovio. O astronauta de branco (Hugo Bonemer) em sua delicada coreografia corporal, em seu balé sideral, revira-se, movimenta-se, brinca ou desafia a ausência sentida da força da gravidade. O mesmo astronauta canta belamente uma canção em inglês na esperança de se fazer ouvir onde o som não tem direito de existir (concluiu-se, segundo estudos, que no espaço há barulhos, mas os mesmos são extremamente sutis; quanto ao assovio do astronauta de branco, presume-se que seja uma referência à tradução do som das ondas gravitacionais que possuem a mesma frequência daquele). Também suspenso no ar um verdejante arbusto de folhas intocadas que nos faz lembrar de uma Terra utopicamente preservada. O prestigiado dramaturgo Jô Bilac se valeu de uma revelação científica recente importantíssima anunciada em fevereiro deste ano, comemorada com entusiasmo pela comunidade pesquisadora, de um fato já previsto há exatos cem anos pelo físico Albert Einstein em sua Teoria Geral da Relatividade, a existência das ondas gravitacionais (em linguagem simples, são vibrações no espaço-tempo, o material do qual é feito o Universo, possivelmente geradas pela colisão de dois buracos negros, de acordo com os cientistas autores da descoberta), para criar com engenhosidade o seu mais novo texto, “Enterro dos Ossos”, com direção de Camila Gama e Sandro Pamponet. Em seu elenco, além de Hugo Bonemer, Pierre Baitelli, Erom Cordeiro, Júlia Marini e Lidiane Ribeiro. O espetáculo prossegue com Pierre descendo uma das escadas que intermedeiam a ampla plateia do Teatro de Arena do Espaço Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro. Trajando apenas uma regata e um short boxer brancos, o intérprete, também astronauta, profere inflamado e minucioso discurso elucidativo acerca das atuais e impactantes descobertas da Ciência (colisão dos buracos negros com a formação de ondas gravitacionais, liberação de potentes energias, possíveis outros sinais que levem ao desvendamento de como se deu a origem do Universo etc). O homem do espaço (Pierre Baitelli), sentado em terreno arenoso, com pernas levemente dobradas, em sua peleja pessoal contra o vácuo, buscando honroso equilíbrio, compartilha com paixão suas ideias complexas sobre o Cosmos. Os astronautas mergulham em desmesurada audácia ao desejarem desbravar aquilo que lhes é desconhecido e misterioso, a casa onde habitam as galáxias. Alguns deles, num tom de oratória coloquial, discreta ironia, diálogo direto com o público, emissão de opinião pessoal ou percepção particular, discorrem sobre as suas convictas impressões acerca do globo azul distante e os seres vivos pensadores e pequenos que se julgam grandes e sós em sua inteligência na imensidão universal. Os homens, assolados nas coletivas derrotas como “criaturas” de um Deus que jamais vimos, vivem às custas de suas hipóteses, elucubrações, ilações, tendo somente a “certeza” de que a vida lhes é eterna. Preocupam-se em desvendar o desconhecido sem ao menos conhecerem a si próprios. Hugo Bonemer, em um dos momentos da peça, representa o astronauta determinado, resoluto e decidido a subir aos céus, romper a atmosfera, ir ao encontro do escuro infinito rasgado por corpos sem rumo, mas que vivem em sua privada harmonia. Conta-se regressivamente. 4, 3, 2, 1! Pronto! O balão de gás atrás de si estoura. Segue assim a nave do homem superior rumo à obra mais enigmática do Criador. Como um Pilatos moderno, lavemos as nossas mãos face à empáfia humana de se querer descobrir com avidez segredos alheios. Em outra passagem de “Enterro dos Ossos”, a atriz Lidiane Ribeiro incorpora de modo ensandecido durante uma “conferência” a figura que dá voz a uma retórica assustadoramente definível como fascista, totalitária, arbitrária, longínqua do conceito legítimo de liberdade e democracia, cometendo paradoxos e deles se vangloriando. Defende a exploração do Planeta Vermelho, iniciando assim uma nova forma de civilização, dando ao ser humano a chance de se reinventar. Ao pronunciamento insano, assiste impávida, sentada em uma cadeira, a personagem de Júlia Marini. Esta mesma mulher se dispõe a falar num grau de vociferações, anunciando o fim das ideologias. Na verdade, trata-se de um gigantesco asteroide em rota de colisão com a Terra. Conhecemos a “mente” de um corpo celeste revoltoso disposto a destruir em sua plenitude o planeta terreno povoado por seres acólitos de sua discórdia atávica. Os humanos, naturalmente inimigos entre si, ao se verem na iminência de serem aniquilados, perdoam-se, confraternizam-se, unem-se pelo menos na hora do fim coletivo. A Terra está debaixo da terra. Um Cristo Redentor irreverente e suplicante (Erom Cordeiro vestido com bata e bermuda brancas), ressuscitado como um “iceberg” em meio à consumada hecatombe, emite-nos sua inesperada opinião. Com os braços estendidos, com a visão de uma Ipanema sumida e sua “Garota” agora desconhecida, Erom, como um Redentor modesto, ostentando leve sorriso sarcástico na face, e com certa vergonha do fracasso de sua Criação, no bairro soterrado que sempre o abrigou, iluminado pelas luzes das efemérides, revê a sua missão messiânica, e procura preservar a sua sobrevivência divina no seio do caos dominado por “aliens”. Pierre Baitelli, empunhando um microfone de pé (este recurso de som, também o de mão, são bastante usados por outros atores), irrompe simbolicamente como a forma de vida mais resistente da face da Terra, a bactéria. Sua bactéria, mesmo na microscopia de seu tamanho, gaba-se da sua condição de superioridade sobre o homem comum. Num mundo de humanos “inteligentes” já dizimados, a bactéria, cheia de si, soberba, esnobe, faz troça de nós, terráqueos. Ela é a primeira forma de vida, e não há quem possa contestá-la, pois argumentos sólidos não lhe faltam. Arqueólogos alienígenas, com suas cabeças ornadas com lanternas curiosas, escavam a devastação poeirenta de um lugar que um dia já pôde ser chamado de mundo. Ossadas largas, curtas, com formatos irregulares, e um crânio que em período não sabido pode ter sido pensante são descobertos. Não se sabe quem foi, quem é, e para onde foi. O dramaturgo carioca Jô Bilac, detentor de um sem número de peças de sucesso e merecidos prêmios (“Savana Glacial”, “Conselho de Classe” e “Beije Minha Lápide”), nesta montagem impingiu uma considerável dose de arrojo sustentado por notáveis inventividade e criatividade, subliminar humor, causticidade e consistente viés crítico. Adotando uma ambiência futurista com claras referências ao gênero da ficção científica (muito pouco utilizado no cenário teatral), Jô nos ofereceu um texto em que as palavras são demasiado valorizadas, corroborando o seu absoluto domínio sobre as mesmas, e o capricho com que constrói as falas de seus personagens. Mesmo com informações de cunho científico, o seu texto, formalizado sobre pilares de poesia em não poucas ocasiões, chega ao público de modo cenicamente atrativo e instigante. O que se percebe em sua dramaturgia é um bem urdido jogo de vocábulos apropriadamente costurados, o que permite aos seus atores a rica chance de saborear cada fala, cada conjunto de frases que lhes coube. A direção de Camila Gama e Sandro Pamponet é sensível, lírica e objetiva, sem perder em nenhum momento o seu foco narrativo, evidenciado na salutar fluidez da montagem. A dupla de encenadores soube com distinta proficiência não só aproveitar o espaço de arena com suas entradas laterais, como procurou, num exímio trabalho de direção de atuação de seus intérpretes, realçar o talento de cada um, valendo-se de seus imprescindíveis solilóquios. Notou-se também que houve uma apurada dedicação e atenção especial na maneira com que o elenco se desloca em cena, em seus posicionamentos estratégicos, nas mínimas e detalhistas movimentações de seus corpos (afinal, em várias passagens os personagens estão em uma situação de ausência da força da gravidade). Camila Gama e Sandro Pamponet complementaram com inegável êxito o seu espetáculo com o uso de luzes e som não apenas como elementos técnicos, mas como instrumentos indispensáveis para os espectadores se envolverem com a história que nos foi contada. Os atores todos, sem exceção, apresentam-nos excelente uniformidade artística. Cada um dos intérpretes contribui de modo irretorquivelmente precioso para que o espetáculo em questão atinja níveis de alta qualidade e credibilidade cênicas. Erom Cordeiro ostenta refinado e elogioso grau de ironia e contido sentimento de fragilidade sob a sua nova e desfavorável condição, como o Cristo Redentor sobrevivente da destruição plena da Terra. O ator, com sua voz firme, conhecimento de seu corpo, realiza com vitória a composição de seu sagrado personagem. Erom desenha brilhantemente o perfil deste Cristo agora “humanizado”, desprovido de sua intocabilidade sacra. Pierre Baitelli defende com singular nobreza e admirável e honrosa convicção de suas intenções o astronauta do início da peça que nos informa acerca dos muitos fatos de caráter científico que servirão como base para o desenvolvimento do entrecho. Na continuidade de sua atuação, demonstra surpreendente trabalho corporal e de equilíbrio ao se posicionar sobre o chão coberto de areia. Na sua inspirada personificação da “bactéria”, Pierre a compõe com irresistíveis camadas de cinismo, humor, petulância e soberba. Hugo Bonemer, também como um astronauta, exibe no entroito da montagem, numa lindíssima e inesquecível cena em que está dependurado por cabos que nos dão a precisa ideia de que está vagando pelo espaço sideral, uma soberba dominação de seu próprio corpo (ele, com movimentos delicados e concisos, explora suas aptidões físicas com sublime competência, numa coreografia acrobática de se encher os olhos). Além disso, Hugo cantarola maviosamente uma canção no idioma inglês, e assovia com harmoniosa afinação. Como o astronauta que reproduz o lançamento de um foguete (neste instante, o ator está em uma das escadas do teatro), ostenta apreciável segurança no falar, presença forte em cena, e indiscutível entendimento de sua parte quanto à missão de seu personagem na obra narrativa. Júlia Marini, como o ser representativo de um asteroide em rota irreversível de colisão com a Terra, comprova-nos a sua sobeja capacidade de interpretação ao ponto de nos convencer sobremaneira que um corpo celeste inanimado pode manifestar “vida” e se expressar ideologicamente (por sinal, o seu discurso pioneiro se coloca avesso às ideologias). Júlia é uma atriz segura, pujante em sua interpretação, com desenvoltura eminente no palco. E Lidiane Ribeiro, como a conferencista defensora da possibilidade de se promover a civilização em Marte, opta por um caminho inegavelmente acertado e cheio de nuances vocais e posturais na composição de sua personagem, cujas características mais evidentes são os seus autoritarismo, tirania e reacionarismo natos. Lidiane movimenta-se e fala de modo peculiar, procurando até mesmo a linha que beira o cômico, a fim de realçar as tintas de seu controvertido papel. Os bonitos figurinos de Camila Gama apontam para uma oportuna neutralidade, economicidade e assumido despojamento em que se sobressai soberano o branco. O branco astronauta. Vê-se esta cor sob diferentes cortes de roupas, como calças, regata, bata, blazers, saias e bermuda (como calçados, foram usados boots e tênis). Uma bela assepsia que transcende os limites do espaço-tempo. O cenário de Sandro Pamponet nos dá a noção perfeita da desolação espacial ou terrena (ou de Marte) com toda a arena coberta de ponta a ponta de areia, associada a um deslumbrante lirismo simbolizado pelo frondoso arbusto pendurado no centro daquela. Somam-se a este caprichado conjunto visual uma cadeira com design futurista e as ossadas semicobertas de areia de um esqueleto desconhecido. A luz de Renato Machado é arrebatadoramente deslumbrante. Nada passa despercebido aos olhos atentos do reconhecido profissional da iluminação. O arbusto recebe um foco especial que valoriza o seu esplendor, Marte ganha a sua acachapante vermelhidão, o astronauta suspenso é iluminado individualmente, e os demais atores outrossim em suas demais posições. Testemunhamos um azul ofuscante. Há bastantes pequenos refletores superiores que lançam cada um deles uma série de diminutos feixes que se “abrem”, causando um enternecedor efeito. O blecaute é rompido pelas lanternas dos arqueólogos alienígenas. Retângulos e círculos desenhados pela luz nos fazem lembrar de que as formas, todas elas, têm a sua Geometria finita ou “infinita”. Figuras coloridas com formatos indecifráveis e inebriantes são tracejados lindamente sobre a camada arenosa. O som que perpassa toda a peça é executado por Susana Guardado (posicionada na própria arena como se fosse mais uma personagem), que se utiliza de um sintetizador que produz as mais variadas sonoridades. Estas são intrigantes, sensoriais e efusivas (neste último caso, com o acompanhamento frenético das luzes). “Enterro dos Ossos” é um espetáculo teatral diferencialmente moderno. Moderno na atualidade da abordagem de seu tema. Moderno na construção de sua dramaturgia. Moderno na condução poderosa das palavras de nossa Língua, e no modo como elas se relacionam. Moderno ao fazer um teatro ousado, crítico e sem esquematismos, fugindo do lugar-comum e da mesmice. Sua modernidade também se expressa na escalação de ótimos atores com identidades e talentos próprios. “Enterro dos Ossos” fala, da mesma maneira, em linhas gerais, juntamente com as recentes descobertas científicas, como o homem, como astronauta, enxerga com o privilégio da distância o nosso planeta tão obscuro e indestrinçável em seus mistérios e enigmas, e a Humanidade, igualmente obscura e indestrinçável em seus mistérios, enigmas, intenções e verdades. “Enterro dos Ossos” serve para nos mostrar que o teatro está cada vez mais vivo e intenso. “Enterrados” estão somente os ossos de seu criativo título. O nosso teatro, este, nobres leitores, está vivíssimo, e o que é melhor, sempre renascendo. Neste caso, com a providencial ajuda de nossos extraordinários “astronautas”.