Foto: Ellen Soares/Gshow
A primeira imagem à qual assistimos na estreia da nova minissérie da Rede Globo, “Justiça”, de Manuela Dias, com a direção artística de José Luiz Villamarim, foi a do decadente prédio modernista Holiday, com suas linhas geométricas semicirculares, localizado em uma das principais capitais nordestinas, Recife. Há dezenas de janelas, mas somente uma delas chamará a nossa atenção. Ouvem-se seis tiros (outros tantos já foram disparados). Num ângulo de câmera inusitado, a partir do buraco causado pelo projétil, vimos a autora daqueles. Quem faz um treinamento de tiro ao alvo é a sofisticada e charmosa professora da Faculdade de Direito Elisa (Debora Bloch). Após uma tórrida cena de amor entre a professora e seu namorado Heitor (Cassio Gabus Mendes), reitor da instituição acadêmica onde Elisa trabalha, a mulher que durante sete anos aprimorou suas habilidades no tiro pega uma carta, e decide lhe entregar, com a condição de que fosse aberta no dia seguinte. Por pressão de Heitor, logo ficamos sabendo de seu conteúdo. Elisa quer pôr um fim ao seu relacionamento, pois tem em mente a execução de um plano de vingança, estando disposta até mesmo a amargar os anos que lhe restam em uma cadeia. A história, que se passa nos dias atuais, retrocede ao ano de 2009. Deparamo-nos com uma linda e alegre jovem na proa de uma lancha com os seus amigos. Esta moça se chama Isabela (Marina Ruy Barbosa), filha de Elisa. Namora Vicente, rapaz rico, inconsequente e possessivo (Jesuíta Barbosa – o ator pernambucano está em sua terceira parceria com Villamarim, depois de “Amores Roubados” e “O Rebu”, e em sua segunda com Manuela Dias, após “Ligações Perigosas”). No meio da relação dos dois existe um obstáculo, Otto (Pedro Lamin), namorado de adolescência de Isabela, que inflama o ciúme doentio de Vicente, filho de um abastado empresário do ramo de transportes, Euclydes (Luiz Carlos Vasconcelos). Elisa está prestes a iniciar um caso amoroso com um rapaz bem mais novo do que ela, Téo (Pedro Nercessian). Téo é filho de Antenor (Antonio Calloni), sócio de Euclydes na empresa, que acaba lhe dando um grande golpe financeiro, levando o pai de Vicente à bancarrota. Vicente, que havia pedido Isabela em noivado, o que deixou a sua mãe um pouco contrariada, desespera-se com a possibilidade concreta de perder o seu status social, e com isso a sua namorada. Depois de ouvir conselhos de um dono de quiosque, Celso (Wladimir Brichta), resolve ir à casa da noiva, presenteá-la, e lhe dizer que está disposto a assumir o seu compromisso mesmo diante das dificuldades. Isabela, após conversas com sua mãe, indecisa quanto à continuidade de seu namoro com Vicente, não está só em sua casa. Ao seu lado, intimamente, Otto. Vicente chega, e flagra o casal nu embaixo de uma ducha de banheiro trocando ardentes carícias. Saca a arma que costumava portar, e sem hesitação, movido por paixão, dispara à queima-roupa cinco certeiros tiros na mulher que amava. Elisa testemunha o crime, e se junta ao corpo desfalecido e ensanguentado de sua filha. Uma Pietà com sangue e lágrimas. Vicente, enquadrado no artigo 121 do Código Penal, é condenado a 7 anos de reclusão. O plano de vingança de Elisa sobre o qual falamos no começo é justamente assassinar quem tirou a vida de sua filha quanto tinha apenas 18 anos. Para esta mãe não foi feita a justiça. Para ela, 7 anos de reclusão não se equivalem a 18 anos ceifados de uma jovem, e mais tantos outros que estariam por vir. À espera de Vicente na porta da penitenciária onde cumpriu a sua pena, na data de sua soltura, Elisa, pronta para pôr em prática a sua justiça, é obrigada a revê-la. Antes de apertar o gatilho “justiceiro” contra Vicente, uma cena a faz reavaliar seus intentos. Vicente agora possui uma filha pequena que o ama, que fica feliz ao reencontrá-lo, e uma esposa, Regina (Camila Márdila). Desta forma foi apresentado o primeiro episódio da minissérie “Justiça”. A nova produção da Rede Globo nos oferta um formato diferente daqueles aos quais estamos acostumados. A cada dia da semana (segunda, terça, quinta e sexta) será dedicada uma história, sendo que todos os personagens se entrecruzam de alguma maneira. Enquanto acontece um fato, um outro envolvendo um outro participante da obra decorre (neste episódio, Elisa e Téo testemunham o atropelamento da bailarina Beatriz vivida por Marjorie Estiano, estopim para o desenrolar de outro enredo). No que concerne à questão de haver tramas paralelas com personagens que se conectam, já vimos este recurso sendo usado com bastante propriedade pelo cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu nos filmes “Amores Brutos” (2000) e “Babel” (2007). Porém, José Luiz Villamarim, um diretor sempre inventivo e habilidoso na condução das cenas e no cuidado com que trabalha a interpretação de seus atores imprimiu a sua própria marca. Fica-nos evidente ao apreciarmos os seus takes que Villamarim é um apaixonado pelas lentes de sua câmera. Ele gosta de “brincar” com ela, explorar todas as suas possibilidades, não ficando estagnado em uma só proposta cênica. Uma das movimentações de câmera mais destacada é aquela que “persegue” o intérprete em seu percurso, sendo filmado pelas costas. O diretor se caracteriza também pela sua objetividade fílmica. Não percebemos perdas de tempo em cenas desnecessárias. Tudo aquilo que ocorre em uma trama dirigida por José Luiz possui um sentido, uma função, provocando como corolário uma redobrada atenção do telespectador. A boa fotografia de Walter Carvalho se aproxima do naturalismo, buscando alguns tipos diferenciados de filtro. Walter usou em determinados momentos com inegável beleza a luz natural (como o dia de sol no mar), além de ter feito uma bela fotografia quando Elisa e Téo passeiam à noite à beira-mar pela Praia da Boa Viagem. A produção musical de Eduardo Queiroz e a gerência musical de Marcel Klemm se fazem notar pela adoção inspirada de canções e ritmos que remetem ao pop e muitas de suas vertentes, como o rock, o rock eletrônico, o regional e o romântico. A trilha incidental desenha com êxito o clima de tensão que paira por quase toda a narrativa. No entanto, a canção que mais nos emociona e nos toca é a primorosa versão do novaiorquino Rufus Wainwright para o clássico de Leonard Cohen, “Hallelujah” (a cena final que exibe Elisa em seu carro rumo à penitenciária a fim de matar Vicente é desde já antológica por sua potência imagética). O elenco do primeiro episódio se destacou de modo sublime. Houve a preocupação em inserir na vocalidade dos intérpretes um acento nordestino que fosse o mais próximo do genuíno, fugindo deliberadamente do sotaque carregado já visto em bastantes produções do gênero. Debora Bloch, como Elisa, ostentou a plenitude da dor de uma mãe que perde a sua filha de forma bárbara, e após a frieza impressionante de uma mulher que busca vingança em nome da sua justiça. Cassio Gabus Mendes é um intérprete que invariavelmente contribui para a nossa teledramaturgia com a sua atuação irretocável. Marina Ruy Barbosa surpreendeu-nos com a sua cada vez mais evolutiva maturidade artística, ao dar vida à jovem leviana Isabela. Marina fez cenas de absoluta sensualidade com Jesuíta Barbosa. A atriz de melenas ruivas, com sua beleza de face e corporal, ofusca as telas de televisão espalhadas pelo país. Jesuíta Barbosa é um ator que possui o costume de estar presente em produções de alta qualidade, e não raras vezes, para não dizer sempre, honra-as com os seus inesgotáveis talento e carisma. Jesuíta traz em sua persona algo que nos atrai, não se chegando à conclusão do que nos causa esta atração. Pode ser o seu adorável sorriso, a sua voz com modulação diferenciada ou a força que emana de seu corpo físico não forte, entretanto esbelto. Luiz Carlos Vasconcelos, respeitadíssimo artista de teatro, TV e cinema, emprestou a sua elegância interpretativa ao sociável empresário Euclydes. Pedro Nercessian quando apareceu em suas primeiras cenas quase não o reconhecemos. Pedro está com feições mais adultas e bonitas. Estas características, somadas ao poder de sedução e charme solicitados pelo perfil de seu papel foram atendidos com brilho pelo ator. Conhecemos o mineiro Pedro Lamin, que ganhou um personagem de realce neste primeiro episódio ao ser o pivô de toda a tragédia envolvendo Isabela, Vicente e Elisa. Pedro soube aproveitar cada detalhe de suas cenas, mostrando-nos segurança e convicção. Coube a ele uma realista cena de sexo no chuveiro com Marina Ruy Barbosa. “Justiça” é uma minissérie excelente pelo que nos foi apresentado em seu início. Viram-se apuro e inteligência dramatúrgicos, direção em perfeita sintonia com o texto e time de atores reconhecidamente valoroso. Manuela Dias, em sua segunda oportunidade como autora principal de uma obra (a primeira fora, como dito acima, “Ligações Perigosas”), firma-se como uma de nossas mais inventivas, hábeis e notáveis representantes de novos teledramaturgos. Sua capacidade em criar ou adaptar histórias merece todas as loas possíveis. Com esta minissérie, Manuela Dias nos oferece a chance de debatermos aquilo que nos é caro, precioso e inalienável: o sentimento de justiça. Um sentimento que em poucos casos se alia às leis ultrapassadas de um Código Penal imaginado no início da década de 40. Um Código ultrapassado e indulgente. Um Código que o nosso Congresso Nacional não quer tampouco pretende mudar. Um conjunto de leis que em inúmeras ocasiões pune as vítimas e inocenta os criminosos. O nosso Brasil legal, imoral em sua leniência em progredir, atende com gosto à criminalidade, e faz chorar de Norte a Sul famílias inteiras que levam em seus rostos fortes bofetadas de uma senhora a qual conhecemos bem. Seu nome é impunidade. Para ela só queremos algo. Nem que seja apenas na minissérie de Manuela Dias. E seu nome é muito mais bonito: JUSTIÇA.