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Desde “O Som Ao Redor” (2013), longa-metragem anterior do cineasta recifense Kleber Mendonça Filho, premiado nacional e internacionalmente, que tanto o público quanto a crítica especializada tem ficado atenta a este profissional do audiovisual que mostrou com a sua obra uma abordagem da sociedade e seus conflitos do cotidiano sublimemente particular, visivelmente pujante em suas imagens, com um roteiro marcado por notável elaboração. Se em “O Som Ao Redor”, Kleber traçava com bastante impacto a mudança de rotina dos moradores de uma pacata rua de Recife após a chegada de milicianos, em “Aquarius” ocorre também a mudança de rotina de uma pacata jornalista, Clara, vivida por Sonia Braga, que vê a sua tranquilidade ir embora quando uma construtora liderada pelo jovem engenheiro civil Diego (Humberto Carrão) decide comprar todos os apartamentos do antigo prédio onde mora sito em frente à bela Praia da Boa Viagem, para a construção de um novo e sofisticado projeto residencial, o “Aquarius”, nome que, na verdade, já era o do imóvel. Só que a bem-sucedida jornalista e escritora, amante da música em discos de vinil, como os de Maria Bethânia e Roberto Carlos, repele a gananciosa proposta da empreiteira, resistindo ao poder do dinheiro, ao lobby, às sabotagens, às ameaças veladas ou declaradas dos interessados na venda da propriedade e à pressão de sua própria família e dos seus até então vizinhos. Esta sinopse, que à princípio nos parece simples, ao contrário disso não possui nenhuma simplicidade. A sinopse (ótimo e extremamente bem costurado roteiro de Kleber Mendonça Filho) serve como estopim de uma série de altercações interpessoais nas quais se percebe assustadoramente até que ponto vai a ambição humana, e com ela uma intrínseca maldade, uma patente falta de caráter e ausência absoluta de ética, inclusive no que se refere à mocidade, porém exibe com equânime vigor a capacidade de luta de uma bela mulher madura que enfrenta tudo e todos na defesa dos seus direitos legítimos, uma espécie de “Uma Contra Todos” (parafraseando uma recente série de TV). Estes dois filmes de Kleber apresentam uma direção que foge ao padrão estabelecido por bastantes produções cinematográficas nacionais exibidas no circuito, não se enquadrando com exatidão num gênero específico. A sua obra mescla em um só conjunto altas doses de drama, aterrorizante clima de suspense e tensão, retrato e denúncias sociais com um estudo minucioso do comportamento do homem, com direito a alguns instantes de corriqueira comédia. Em suma, Kleber radiografa nossas próprias vidas. Sua câmera não é mirabolante e nem nos oferta ângulos espertos, inovadores tampouco revolucionários. Isto fica para os blockbusters norte-americanos, e para os congêneres brasileiros que tentam emulá-los. Suas lentes buscam o real, o cotidiano, o simples, o cru, os objetos que decoram uma casa, o close sem pretensões estilísticas, os relacionamentos comuns entre as pessoas e as suas consequências, as tomadas necessárias, e não com o propósito de se burlar o establishment estético ao qual nos habituamos a assistir em períodos atuais. Por estas mesmas razões, e por um hiperrealismo que nos assombra, é que provavelmente os longas de Kleber perturbam o espectador e a crítica, lançando um novo caminho para o cinema que se faz no Brasil. “Aquarius”, que foi cercado de polêmica desde que foi exibido como concorrente à Palma de Ouro em sessão de gala no Festival de Cannes (houve um protesto político por parte do elenco e diretor), e se estende até hoje pela reivindicação para que a classificação indicativa da produção baixe de 18 para 16 anos (o que foi conseguido no último dia 1º de setembro). O cineasta realiza com este filme uma eloquente homenagem à época dos anos 80, utilizando-se do recurso do flashback (claro, a fotografia, nesta etapa, evidencia uma textura que remete, pode-se afirmar, às polaroides). Já na atualidade, a meritosa direção de fotografia de Pedro Sotero e Fabricio Tadeu opta por tonalidades naturalistas. Há cenas emblemáticas na criação fílmica de Kleber, como a inicial, quando Clara, muito jovem, interpretada pela atriz Barbara Cohen (uma bonita artista que deve despertar o seu interesse) dentro de um carro “oitentista” com seus amigos numa praia deserta (vale asseverar que a direção de arte de Juliano Dornelles e Thales Junqueira reproduz com precisão detalhes desta icônica fase), ouvem num potente som um dos maiores clássicos da banda britânica Queen, “Another One Bites The Dust”. Em outra passagem, Queen também é escutado em outro de seus standards, “Fat Bottomed Girls”. O diretor também se valeu de sua obra para denunciar o triste preconceito vigente não só por parte dos homens, mas de um modo geral, contra as mulheres que se viram obrigadas a serem submetidas a uma mastectomia (esta cena nos revolta e nos comove). Em apenas uma frase revela o preconceito racial incrustado no Brasil (“sua pele mais morena”). O elenco de “Aquarius” é um dos pontos máximos do filme. Primeiro, porque traz de volta para as grandes telas de cinema aquela que foi e sempre será uma de nossas eternas musas do cinema nacional, Sonia Braga, recolocando-a em seu posto conquistado com performances memoráveis em “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e “O Beijo da Mulher-Aranha”. Sonia, que também possui atuações antológicas na televisão, como nas novelas “Gabriela” e “Dancin’Days”, certamente com a Clara de “Aquarius” nos ostentou uma de suas mais consistentes, maduras, intensas e tocantes interpretações. Sonia construiu a sua Clara com impressionante estoicismo. As suas paixões são interiorizadas, exceto em suas expressões sexuais. Clara desvela um humor desconcertante face às adversidades por que passa. A sua bravura diante da soberba e inescrupulosidade dos detentores do poder econômico, representantes da especulação imobiliária, serve-nos de exemplo e referência. A mulher que tem em seu apartamento um pôster de “Barry Lyndon”, de Kubrick, e pilhas de vinis é personificada por Sonia Braga em um dos auges não só de sua beleza física madura, mas também interpretativa. Humberto Carrão, famoso e admirado ator de novelas, pertencente a uma promissora geração de artistas jovens, numa interpretação pontuada por sutilezas, convence-nos brilhantemente como o moço que estudou nas melhores escolas estrangeiras, formando-se em Business, como diz, o que o faz voltar ao Brasil cheio de “sangue nos olhos” para vencer na profissão, nem que para isso tenha que se utilizar dos meios mais escusos e corruptos. O espectador e os personagens ficam confusos ao se depararem com a sua beleza, simpatia e carisma, amparada por voz mansa, com a potência de sua vilania. O próprio diretor Kleber Mendonça Filho definiu o ator desta maneira em entrevista ao jornal O GLOBO: “Humberto tem cara de pessoa boa, menino brasileiro rico, mas que esconde uma falta de caráter formidável”. E continua: “E agora que eu conheço Humberto e lembro de Diego, dá para ver como Carrão é um ótimo ator. Ele e Diego não têm nada em comum”. Maeve Jinkinks, bela atriz brasiliense, com importante galeria de filmes em seu currículo, e que ficou bastante conhecida como a Domingas de “A Regra do Jogo”, na Rede Globo, interpreta a filha de Clara. Maeve é daquelas artistas que disseminam a sua adorável doçura por onde quer que passem, fotografando muito bem nas telas. Mas se engana quem pensa que esta doçura está presente em todas as suas performances. É preciso que vejam a atriz em longas-metragens como “Boi Neon” e “Amor, Plástico e Barulho”. Inclusive, a premiada Maeve está em seu segundo trabalho com Kleber, pois participou de “Um Som Ao Redor”. E o que dizer do premiadíssimo Irandhir Santos? Irandhir é, para mim, sem quaisquer sombras de dúvidas, um dos mais talentosos e versáteis atores surgidos nos últimos tempos no Brasil. Fez uma infinidade de bons e elogiados filmes, e já está construindo uma carreira de sucesso na TV (atualmente, destaca-se como Bento em “Velho Chico”, na TV Globo). Irandhir Santos (também repetindo a parceria com Kleber) vai do homem simples, chucro, ao indivíduo subserviente, até chegar ao charmoso guarda-vidas Roberval de “Aquarius”. O excelente ator cumpre com a nobreza de sempre a missão de dar vida a um dos poucos amigos de Clara que a ajudam. Temos ainda a presença do jovem ator pernambucano Allan Souza Lima, como Paulo, um sedutor garoto de programa que sacia ardentemente os urgentes desejos sexuais de Clara. Destaque na novela “A Regra do Jogo”, Allan mostrou que sabe fazer comédia. No filme em questão, o intérprete tem poucos momentos na tela, mas estes são o bastante para que Allan deixe transbordar toda a sua sensualidade viril de modo absolutamente natural. Outros atores que merecem as nossas merecidas considerações são Carla Ribas, Julia Bernat e Thaia Perez, dentro de um elenco muitíssimo bem escalado. “Aquarius”, que entrou na concorrida lista de filmes candidatos a lutarem por uma vaga na indicação brasileira para a disputa pelo Oscar de Filme Estrangeiro (tendo consideráveis chances de consegui-la, a despeito de novas polêmicas), é um filme que deve obrigatoriamente ser visto por aqueles que amam o cinema, que apreciam a diferença de sua linguagem, que são devotos de uma reflexão após uma obra cinematográfica, que não buscam somente o entretenimento, e que estão abertos a discussões relevantes sobre o ser humano, seu comportamento e relações, que são levantadas em cima de fatos do dia a dia, que consuetudinariamente acontecem bem ao nosso lado. Em determinado momento do longa de Kleber Mendonça Filho, a praga “cupins de demolição” tem a sua representação. A destrutividade ancestral do homem comum também nos é escancarada sem meios-termos. Uma das lições que aprendemos com esta excelente obra em cartaz nos cinemas é a de que se pode combater sem medo os “cupins de demolição”, espalhados por toda a parte, próximos ou distantes, sempre prontos e dedicados em nos aniquilar em sua totalidade. Mas sempre existirá uma Clara em seus caminhos. As “Claras” da vida nos parecem inofensivas, vulneráveis. Apenas nos parecem. Basta que se juntem a um só tempo um edifício antigo de Recife chamado “Aquarius” e uma das musas do nosso cinema nacional cujo nome é Sonia Braga, conduzidos pela batuta de um cineasta de nome Kleber, para que vocês, espectadores, não temam nenhuma praga. Seja ela social, humana ou literal. Esta é a mensagem de “Aquarius”. Nada mais a dizer.