Foto: Leo Aversa
O teatro tem para o seu artista muitas funções. Dentre tantas, uma delas é usá-lo como meio possível e infalível de se expressar de uma forma que atinja o seu público com uma história pessoal relevante que, para ele, precise ser compartilhada, e ao sê-la, sirva como expurgo de suas dores e ressentimentos, sejam pretéritos ou presentes, e manifestação aberta de seus amores e aspirações. “Processo de Conscerto do Desejo” é isso. O desejo de Matheus Nachtergaele de revelar e dividir com os seus espectadores, não na TV ou no cinema, mas no maior veículo vivo que existe, o palco de um teatro, o seu drama originado pela ausência de sua mãe, a poetisa Maria Cecília Nachtergaele, que no emblemático ano de 1968, tirou a sua vida, deixando-o órfão com apenas três meses de idade. As únicas herança e lembrança que recebeu de Maria Cecília foram suas poesias, intactas, prontas, belas, puras, doídas e contemplativas em sua natureza. Matheus, que sempre conviveu com esta acachapante solidão, tinha, não se sabe ao certo quando tomou ciência disso desde sua descoberta como ator, uma dramaturgia em suas mãos. Poderosa, forte, sensível e absolutamente redentora. O intérprete, num ato admirável de coragem, concebeu-a, transformando-a com a sua direção e atuação em um dos espetáculos mais comoventes e honestos já vistos. Alguns podem se perguntar o porquê da significância de seu título. Por que “Processo de Conscerto do Desejo”? Segundo ele mesmo disse: “Quero consertar meu desejo em poesia, num concerto”. Uma resposta definitiva. Mal a plateia se formava no Teatro da UFF, em Niterói, no Rio de Janeiro, que apresentou o projeto “Solos em Cena”, com 16 monólogos encenados, Matheus, encerrando com garbo a iniciativa do espaço cultural, já estava em cena, cantando suavemente e num tom baixo uma delicada canção. Esta peça, por sua singularidade, não necessita de um começo tradicional. Na verdade, ela começou a partir do momento em que Nachtergaele se deu conta de sua viabilidade cênica. Vestindo uma malha preta sedutora colada ao seu corpo, e sobre ela um vestido de mesma cor, com fenda, decote e transparência e pequenas flores com prevalência do vermelho situadas atrás (há simbolismos neste traje híbrido, com o feminino de Cecília e o masculino de Matheus, carregando o luto esperado), o ator exerce a sua nobre missão de transmitir aos que desconheciam a sua experiência individual, e aos que já sabiam também, mas a conheceriam sob um novo contexto. As poesias de Maria Cecília Nachtergaele, que o próprio protagonista não sabe se foram feitas para ele ou não, volto a lhe dizer, são ao mesmo tempo tristes (fala-se bastante da solidão e todas as suas implicações), emotivas, contemplativas (referem-se não poucas vezes à noite, suas estrelas) e lúdicas (como a do menino e sua pipa colorida no ar). Uma delas narra a história de uma dançarina espanhola que nos revela a trajetória trágica de um toureiro conterrâneo. O intérprete, primeiramente, impressiona-nos com sua belíssima voz, afinada, aveludada e canora (esplêndida e soberba preparação de Célio Rentroya). As canções que entoa são aquelas preferidas de sua mãe, uma defendida lindamente no idioma italiano. Cantigas populares infantis são cantadas de maneira estilizada. Como as músicas eram uma das paixões de Maria Cecília nada mais justo que as mesmas estivessem presentes em cena. Matheus também pôde mostrar ao seu público, extasiado do início ao fim com a sua performance, os seus dotes como dançarino, ostentando uma invejável dominação de sua expressividade corporal (exuberante, minimalista e irretocável trabalho de corpo de Natasha Mesquita). Alguns bons exemplos são aqueles nos quais o ator personifica a dançarina já mencionada e quando, com as suas próprias mãos, simula uma lépida mariposa. O ator, que se alterna entre pensamentos dele mesmo e as poesias de sua progenitora, possui a chance de se exercitar plenamente como artista. Seja declamando os escritos poéticos, seja interpretando (defende a própria mãe o acalentando no colo, utilizando-se de reiterações típicas do “Diário do Bebê), seja cantando ou interagindo de maneira muito bem aceita por sua plateia, numa espécie de congraçamento raro visto no teatro, tendo como recurso para a sua realização a convocação de todos para uma dança coletiva catártica. Não houve quem recusasse ao irresistível convite de um Matheus Nachtergaele em estado de graça para com ele dividir o seu mágico momento. O concerto do título do espetáculo se traduz na presença de grandes músicos, o violonista Luã Belik e o violinista Henrique Rohrmann, que acompanham com elegância e refinamento as principais passagens da montagem. Ainda no que tange à completude de Matheus Nachtergaele em sua atuação, o ator, que tem em sua face uma maquiagem escurecida carregada abaixo de seus olhos (poderíamos interpretar como as vistas inchadas de prantos derramados), orquestra um deslumbrante trabalho de pintura de seu próprio corpo. Como se a tinta amarela da qual se utiliza para se pintar e manchar a sua roupa não se configurasse apenas como um meio de impacto estetizante, mas sim como um acessório representativo da metamorfose de um ator para a sua realidade espacial cênica, para o seu universo íntimo e particular. A máscara amarela em seu rosto pode ser a nova identidade de que necessita para seguir em frente com as suas vivências transmutadas em Arte. Matheus Nachtergaele se incumbiu de dirigir a ele mesmo. De fato, seu espetáculo solo é tão pessoal que nos parece sensato e plausível que o intérprete saiba mais do que ninguém sobre o que deseja que seja testemunhado no palco, ou no caso desta peça, também fora dele. Nachtergaele não se ateve a amplas pretensões estéticas, bastando para ele a simbolização digna de seus sentimentos e emoções por meio das poesias de sua mãe, acompanhadas da sonoridade etérea e envolvente dos instrumentos de seus excelentes músicos. O ator fundamentou primordialmente a sua encenação (uma mescla de performance, atuação, declamação, dança, canto, concerto) no binômio texto/música. O resultado não poderia ter sido mais bem-sucedido, pois Nachtergaele é um artista extremamente popular, querido, carismático e detentor de um talento múltiplo. A iluminação de Orlando Schaider, em sua maioria, busca um tom não naturalista (pode-se afirmar que há uma textura que se aproxima do amarelado), de certo modo onírico, não se eximindo, entretanto, da adoção de recursos indispensáveis, num contexto tradicional, para o desenho visual de uma cena. Em certa ocasião, Orlando ilumina toda a ribalta com um vermelho forte, ofuscante. Já em outras, direciona seus objetivos para os focos e sombreados (há instantes em que só vislumbramos o rosto ou o corpo de Matheus). Usou outrossim o plano geral, incluindo a plateia, os blecautes, os refletores que apontam frontalmente os espectadores, e outros tantos laterais com visível intensidade potente. Orlando Schaider colabora com maestria para o embelezamento de todo o panorama cênico. O cenário se resume a uma cadeira de madeira estilo Luis XV com recosto de vime propositalmente perfurado, situada no lado esquerdo do palco, com a qual o artista interage. Acrescenta-se um imenso laminado posto no fundo do tablado que ora reflete a imagem do ator ora deixa transparecer a figura imponente do violinista. O seu impacto imagético sobre nós, espectadores, é irrefutável. “Processo de Conscerto do Desejo”, uma realização da Pássaro da Noite Produções, com direção de produção de Miriam Juvino, é um espetáculo teatral, pode-se dizer, talvez, inclassificável. Não se classifica tão somente o transbordamento legítimo de um ator dentro de sua mais genuína emoção. Como também nos é difícil e árido classificar o seu grau de desejo em simplesmente “realizar”. Para que conseguisse tal feito, Matheus Nachtergaele elaborou um processo. Mas não um processo qualquer. Deveria ser um processo com um concerto de músicos. Porém, não parou por aí. Matheus Nachtergaele tinha por objetivos e intentos “consertar” esse desejo. Com os músicos. Nasceu, neste exato instante, “Processo de Conscerto do Desejo”, com três protagonistas. Mas não era apenas Matheus Nachtergaele em cena? Não, não era. Matheus divide a cena com brilho eterno com dois grandes parceiros de vida: sua mãe Maria Cecília Nachtergaele… e suas poesias.