Blog do Paulo Ruch

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zana-e-halim
Foto: Divulgação/TV Globo

“A casa foi vendida com todas as lembranças/todos os móveis/todos os pesadelos/todos os pecados cometidos ou em vias de cometer/a casa foi vendida em seu bater de portas/com seu vento encanado/sua vista do mundo…”. Com o poema de Carlos Drummond de Andrade, “Liquidação”, sendo datilografado, e narrado pelo personagem Nael (Irandhir Santos), fomos levados ao futuro de “Dois Irmãos”, a prestigiada e premiada obra homônima de Milton Hatoum, vencedor do Prêmio Jabuti de 2011, agora em formato de minissérie de Maria Camargo, com direção artística de Luiz Fernando Carvalho. Vimos Zana (Eliane Giardini) em prantos sobre a cama, despedindo-se de sua casa, mas levando consigo todas as dolorosas lembranças que corroeram a sua vida. A trama, gravada em Manaus, em locações como as praias do Rio Negro, compreendida entre as décadas de 20 e 80, narra a trágica e sofrida relação de ódio entre dois irmãos gêmeos, filhos de imigrantes libaneses, Omar e Yaqub (Lorenzo e Enrico Rocha, na infância; Matheus Abreu, na adolescência, e Cauã Reymond na fase adulta). Em uma de suas primeiras cenas, percebemos a preferência explícita da matriarca Zana (Juliana Paes, linda num papel totalmente diferente aos quais estamos acostumados a vê-la) pelo menino Omar, diante do olhar desolado de seu marido Halim (Antonio Calloni, sempre uma acertada escalação). Singrando as águas do Rio Negro, o excelente Antonio Fagundes vive Halim já avançado em idade, recordando o seu passado, e nos afirmando que “depois, tem certas coisas que a gente não deve contar para ninguém”. Zana e Halim possuem uma outra filha, Rânia (Letícia Almeida). Os pais estão ansiosos à espera de Yaqub (Matheus Abreu, que se assemelha a Cauã Reymond), que vem do Líbano, cuja guerra chegou ao fim. Enquanto os jubilosos pais levam o introspectivo Yaqub para a casa, imagens do cotidiano de Manaus (incluindo as de arquivo) mostram as mudanças da cidade durante os cinco anos em que o moço ficou fora. A única coisa que não mudou foi a constante chuva que se abate sobre a capital (“Só em Manaus, chove assim”, segundo Halim). A chuva faz com que Halim reavive a sua memória, recorde-se como foi a sua chegada à cidade, como um simples mascate (nesta fase, é interpretado pelo ator e cantor Bruno Anacleto, extremamente carismático, tendo se saído muito bem em sua atuação). No restaurante de Galib (Mounir Maasri, também responsável pela crível prosódia do elenco), encanta-se por sua filha, Zana (a doce, bonita e graciosa Gabriella Mustafá), que não lhe dá a mínima (ou apenas finge). Halim teria que vencer a sua própria timidez e o preconceito por ser muçulmano para conquistar a sua adorada. Em uma das melhores cenas da minissérie, com notável interpretação de Bruno Anacleto, Salim recita em público, no restaurante de Galib, um inflamado poema em árabe, dedicado ao seu amor, traduzido pelo seu amigo na rua sob a chuva, Abbas (Munir Kanaan). Após o festivo casamento, o pai viaja para o Líbano, e falece. Zana, por um tempo, cultiva o seu luto. Mas Nael não nos deixa esquecer de que “os mortos um dia acabam morrendo de verdade”. Tudo começa a mudar quando Zana manifesta o seu desejo de ter filhos, três filhos, o que contraria Halim. O casal resolve abrir uma loja, e oferece os móveis do antigo restaurante para um orfanato, representado pela rígida e inescrupulosa freira vivida pela ótima Viviane Pasmanter, que lhe entrega a indígena Domingas (Sandra Paramirim) para lhe servir como criada. Segundo a corruptível irmã, Domingas “tem bons dentes”. Domingas na verdade simboliza a catequização cristã imposta aos índios desde priscas eras. Uma “escravização” do povo indígena em pleno século XX. Aparece em cena, como refresco cômico, o excêntrico casal formado por Estelita (Maria Fernanda Cândido, divertida) e Abelardo (Emilio Orciollo Netto, com uma boa composição), vizinhos de Halim e Zana. A pequena Domingas sacia a sua curiosidade com uma certa obsessão ao observar a troca de carícias entre o jovem par. Zana engravida. Na noite do parto, chove e venta. Primeiro, nasce Yaqub. Após, com dificuldades, Omar, o Caçula, com problemas nos pulmões. Um vaso quebra, como se fosse um prenúncio. A partir daí, não se sabe se pelo seu nascimento arriscado, Zana passa a se dedicar de modo exagerado a apenas um filho. Uma espécie de Sofia que escolheu por vontade própria um único para cuidar. Inicia-se o desmoronamento familiar, e a crônica de um drama anunciado. Halim parecia estar com a razão ao não querer ter filhos. E a rivalidade dos gêmeos já era por ele pressentida. É Carnaval, e toda a família comparece a uma festa onde está Estelita. Ambos os gêmeos (Lorenzo e Enrico Rocha) se interessam pela mesma menina, Lívia (Monique Bourscheid). No instante em que Yaqub fora deixar a sua irmã em casa, Omar conquista a garota fantasiada. Nos dias que se seguem, a tensão entre os meninos cresce. Lívia provoca os dois. Ao som de “Claire de Lune”, de Chopin, “O Garoto”, clássico de Chaplin, chega à cidade, o que deixa as crianças animadas. O filme será exibido na residência extravagante de Estelita, sempre preocupada com os seus macaquinhos. A cabeça de uma boneca sorridente que remexe os seus olhos, observada por Omar, parece anunciar o pior. Entre uma gargalhada de Estelita e uma gag de Chaplin, diante dos olhares trocados entre Lívia e Yaqub, a fúria de Omar só aumenta. Um beijo se consuma entre os dois. Nem a falta de luz o interrompe. Somente um caco de vidro usado por Omar para marcar para sempre no rosto de seu irmão o ódio sentido. A guerra fraterna está apenas em seu começo. A direção de Luiz Fernando Carvalho, como de costume, para quem acompanha seus trabalhos, esmerou-se em todos os detalhes, trazendo à tona com capricho, precisão e cuidado estético uma história dramática consagrada na literatura brasileira. Luiz Fernando é, como sabemos, um “diretor de atores”. Ele não só descobre novos talentos, e os lapida, como potencializa os recursos interpretativos de quem está há mais tempo no ofício. Percebemos que o diretor, cada vez mais delicado em sua visão do panorama narrativo, procurou realçar, com a sua câmera, os pequenos gestos, os movimentos fugidios, o quadro, o móvel, a rede, a escada, enfim, elementos que poderiam passar despercebidos, mas que em suas mãos ganham vida. Valorizaram-se sobremaneira a preparação e o close nos pratos típicos árabes, com a sua miríade de cores (inevitável não nos lembrarmos do longa-metragem dinamarquês “A Festa de Babette”, de Gabriel Axel, de 1987). A direção de Luiz Fernando é humanizada. Ele faz com que acreditemos naqueles personagens que se põem à nossa frente, com todas as suas emoções, sentimentos, dores e alegrias. O elenco deste primeiro capítulo se destacou com atuações potentes de Antonio Fagundes (seu Halim possui uma melancolia, uma nostalgia associada à ironia), Antonio Calloni (soberbo e intenso como Halim, também), Juliana Paes (uma legítima e passional matriarca, transbordando a sua beleza), Maria Fernanda Cândido (jovial, encarregou-se de imprimir leveza a Estelita) e Emilio Orciollo Netto (hábil na composição de Abelardo). O ator e cantor Bruno Anacleto, natural de Rondônia, foi uma excelente escolha. O rapaz nos cativou em todas as cenas. Torcemos pela sua vitória na conquista do amor de Zana. É um jovem artista que merece outras oportunidades na teledramaturgia. Também merecem os nossos elogios a atriz Gabriella Mustafá. Todos os intérpretes cumpriram com incontestável brilho a incumbência que lhes foi dada, defendendo com dignidade os seus papéis. A cenografia de Juliana Carneiro e Claudio Duque, e a produção de arte de Marco Cortez corresponderam com fidelidade máxima e inconteste encanto à época retratada (os anos 20, e os que se seguiram). Destaque para um avião da Panair do Brasil no hangar do aeroporto. O figurino de Thanara Schonardie seguiu o mesmo caminho de fidelização dos costumes das diferentes fases. A direção de fotografia ficou a cargo de Alexandre Fructuoso, que soube explorar com inteligência as camadas de luminosidade diversas. Há momentos vivazes, com luz natural, outros mais sombrios, num tom azulado, e outros que se aproximam da sépia. A música original de Tim Rescala é indescritivelmente sublime, com distintos acordes de inúmeros instrumentos. Suas melodias possuem o inefável poder de desenhar com emoção todos os quadros que emolduram determinada cena. Tim, a cada produção, supera-se. A abertura de Alexandre Romano, Eduardo Benguele e do pintor Carlos Araújo é deslumbrante, como há muito não se via. Acompanhada de uma imponente música, testemunhamos pinturas de rostos e corpos expressivos que parecem registrados em pedras de diferentes matizes. “Dois Irmãos” é uma minissérie que tem por desafio transportar para uma outra seara uma obra que já se estabeleceu com sucesso em outro veículo, no caso o editorial. Mas pelo que assistimos em seu primeiro capítulo, esta nova atração da Rede Globo detém todas as ferramentas para se tornar mais uma produção inesquecível da emissora. O telespectador deseja ver, acompanhar, espiar esta jornada dolorosa e emocionante de uma família, marcada por amor, ódio, paixão e ciúme. Queremos ver até que ponto vai a ira entre os irmãos Omar e Yaqub. Se não há algo que possa reverter este laço despedaçado entre eles desde a tenra infância. Se a chuva de Manaus continuará. Quando o pranto de Zana cessará. Se não existe entre esses dois irmãos um resquício sequer de sentimento que não seja tão somente o ódio. Difícil dizer. Nem Zana sabe. Nem os dois irmãos sabem.

Categorias: TV

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