Foto: Elisa Mendes
Em tempos soturnos em que prevalecem em vários setores da sociedade pensamentos organizados de homofobia no Brasil, a decisão de se levar aos palcos cariocas uma parte da fascinante trajetória do engenheiro, filósofo, crítico de arte e fotógrafo Alair Gomes constitui por si só um ato de bravura de seus idealizadores. Nascido em Valença, Rio de Janeiro, em 1921, e assassinado por estrangulamento por um rapaz que frequentava o seu apartamento no coração de sua idolatrada Ipanema em 1992, Alair, Edwin Luisi, tornou-se, no futuro, a partir de suas fotos tiradas da janela dos fundos de sua casa no sexto andar de um prédio na Rua Prudente de Morais com vista para a linda praia de seu bairro, ou nela mesma, um dos expoentes da arte homoerótica contemporânea no mundo. O dramaturgo Gustavo Pinheiro se valeu do diário-guia escrito pelo próprio fotógrafo em suas muitas viagens pela Europa, “A new sentimental journey”, de 1983, para alinhavar o arco dramatúrgico de sua narrativa. “Alair” se passa em seu apartamento no qual o artista recebia alguns desses rapazes que fotografava seminus nas areias da Praia de Ipanema nos anos 70 e 80, praticando atividades físicas ou simplesmente em suas posições naturais. A peça aposta em uma conversa direta entre Alair Gomes e o público, como se ele estivesse contando, confidenciando, revelando as suas histórias, acompanhadas de suas percepções, visões e convicções, marcadas por suas experiências únicas em Paris, Roma, Florença e Londres, em que testemunhamos as suas aguçadas e elevadas observação e conclusão do conceito de beleza e estética materializadas na figura do corpo humano masculino. Paralelo a isso, acompanhamos a relação do fotógrafo com embates culturais, comportamentais, intelectuais e íntimos com dois belos rapazes, interpretados por André Rosa e Raphael Sander. André personifica um típico garoto de praia da Zona Sul do Rio de Janeiro das décadas citadas, praticante de surfe, adepto dos trajes despojados da cultura da cidade, e com o falar inerente aos jovens da época. Mantém com Alair um relacionamento no qual percebemos traços de conflito, haja vista que, ao mesmo tempo em que se permite fotografar pelas lentes de seu interlocutor, não admite a condição de se aproximar de uma camada da sexualidade que de certa forma o atemoriza, mas também o atrai. O personagem de André Rosa trava uma luta interna com a sua vaidade nata. Como diz proximamente Alair em uma passagem da peça, os rapazes sabem que estão sendo fotografados, e se aprazem ao serem desejados por seus corpos torneados. O comportamento do moço possui, por vezes, um tom agressivo, inquisidor. No entanto, essa postura se desmonta ao contemplar as suas fotos. Por sinal, contemplar é o verbo que norteou a vida do profissional Alair Gomes. Uma das cenas mais arrebatadoras da montagem se dá quando Raphael Sander descreve com impressionantes minúcias e detalhes (representando a voz de Alair, Raphael entoou um texto dificílimo) as anatomias perfeitas do Davi de Michelangelo. O rapaz defendido por André, a pedido do fotógrafo, posa, desnudo, no alto, como se fosse em um pedestal, como a famosa e universal escultura. Poucas vezes, a nudez no teatro foi tratada com tanta beleza, cuidado e delicadeza. Uma cena essencialmente artística que, certamente, deixou os espectadores alumbrados com a sua pujança estética. Alair trata os rapazes com quem lida como se fossem meninos, e para ele talvez o fossem. Isso é notado nas nuances de humor da encenação, quando lhes oferece repetidamente um “Toddynho” ou “Danoninho”. Por ser um homem incrivelmente culto, sua erudição colide com o desconhecimento cultural dos jovens que o rodeiam. Já Raphael Sander dá vida a um rapaz contido, com ares de circunspecção. O jovem militar nos indica ser um companheiro de Alair. Todavia, o homem jovem demonstra dificuldades em permitir que se torne pública a sua relação mais íntima com o fotógrafo. Sua juventude se confronta, em algumas ocasiões, com a maturidade de seu amante. Vislumbramos na personalidade deste tão jovem militar sentimentos internos também conflitantes, mais uma vez desencadeados pela complexa questão da sexualidade. Tanto no caso do surfista quanto no caso do militar, a virilidade e as identificações do masculino são bastante evidenciadas, ao contrário de Alair, que ostenta uma suave e discreta feminilidade. Em suas andanças pelo continente europeu, Alair Gomes admira os diferentes tipos de beleza do homem e os aspectos notáveis da arquitetura de cartões postais do Velho Mundo. A beleza do homem pode ser descoberta num hippie, pode ser revelada por um rapaz dentro de uma livraria, como pode ser comprovada nos remadores vestidos de Florença. Causava-lhe indignação o fato de homens esportistas e musculosos, habitantes do berço do Renascimento, estarem com os seus corpos cobertos. Nada escapava aos olhos perscrutadores de Alair. As obras de arte, como “A Criação de Adão”, na Capela Sistina, de Michelangelo, ou a própria representação do Cristo morto na cruz foram objeto de suas profundas observações. A dramaturgia de Gustavo Pinheiro se destaca em vários sentidos. Ele procura contar a trajetória deste artista incompreendido por muitos à época, e que hoje, após a sua morte, teve a sua obra, a sua expressão artística mundialmente reconhecida e valorizada, de um modo que tange o poético, o lírico, o sensível, o reflexivo, sem, em nenhum momento, deixar de reunir todos os elementos complementares e constituintes de uma narrativa dramatúrgica consolidada, consistente e atrativa. Seu texto é direto, enxuto, sem delongas. Gustavo se apega somente aquilo que lhe soa necessário nos revelar. Lançando mão do fascínio que o seu personagem real exerce sobre o nosso imaginário, Gustavo focou, como já fora dito, na confidência das histórias de Alair Gomes, que envolvem tanto as suas viagens pelo mundo quanto as suas experimentações como fotógrafo e suas relações, nem sempre fáceis, com os seus modelos fotografados, os rapazes da Praia de Ipanema. Gustavo Pinheiro, autor do sucesso “A Tropa”, consegue atingir com grandes méritos o seu objetivo final. Não se deixou cair na perigosa armadilha de se utilizar do tema que abrange intrinsecamente sensualidade, erotismo e nudez para forçar o apelo natural que o assunto carrega em si. O dramaturgo imprimiu o máximo de singeleza, adotando uma conduta de reverência, e por que não dizer, de homenagem a um artista considerado maldito por alguns. Sua arte e sua vida estão no texto de Gustavo Pinheiro de uma forma exemplar, completa, com diálogos precisos e diretos, aliados aos pensamentos existencialistas, por vezes melancólicos, de um homem que, na verdade, tinha como única e real companheira a sua arte, sustentada pela sua veneração da nudez clássica masculina. A direção de Cesar Augusto prima pela sua assumida delicadeza em retratar o universo deste personagem tão atraente em seus aspectos de personalidade como foi Alair Gomes. Cesar optou pelo mínimo possível de elementos de cena, privilegiando os atores, a linguagem de seus corpos e o impacto das imagens projetadas. Edwin Luisi alterna as suas posições por todo o perímetro do palco, assim como os outros dois intérpretes. As entradas e saídas dos personagens de André e Raphael dinamizam a ação. Os embates entre Alair e os rapazes são feitos inúmeras vezes “tête-à-tête”. Cesar nos proporcionou com a sua direção uma inegável beleza estética ao reproduzir as célebres fotos dos rapazes praianos, conduzindo André Rosa e Raphael Sander na formação fiel e plástica dessas imagens com seus trabalhados corpos. O grande painel que serve como anteparo para a projeção das imagens (fotos de Alair, pontos turísticos que visitou…) também serve para que os atores se coloquem atrás do mesmo, realizando algumas ações físicas, causando um efeito deslumbrante de sombras. São os próprios atores, André Rosa e Raphael Sander, quem exercem a função de contrarregragem, deslocando para as marcas indicadas o telão, a bancada e a cadeira que compõem o cenário. O espetáculo não se estende em desnecessidades, ostentando um caráter objetivo e conciso em suas legítimas intenções. Edwin Luisi, comemorando os seus 45 anos de carreira, com belos trabalhos na TV e no teatro, reconhecido como um de nossos melhores e mais respeitados intérpretes, traz para si este enorme desafio de representar, ao seu modo, o grande artista controverso que foi Alair Gomes. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que somente a presença do ator no palco já provoca na plateia o sentimento de que iremos testemunhar uma memorável atuação. E com Alair, não foi diferente. Edwin captou com sua sabedoria nata e sólida experiência as filigranas que definiriam os principais contornos do perfil do personagem protagonista. Alair é construído por Edwin com bastante sensibilidade e entendimento de seu papel. Não percebemos que o ator quisesse fazer uma transcrição fiel da persona de Alair Gomes, mas sim a sua visão particular, com a ajuda da direção, é claro, do que simbolizou este “menestrel das imagens”. Edwin Luisi compôs o seu personagem com demasiada delicadeza (esta é, sem dúvida, como puderam perceber, a palavra que define o espetáculo). Ele nos passa a naturalidade e a espontaneidade no momento em que as histórias do retratado nos são contadas. A despeito de haver uma discreta melancolia em seu comportamento, não se deixou escapar, por parte do ator, uma bem-vinda dose de ironia à sua conduta, precipuamente no que se refere aos rapazes com quem se relacionava. André Rosa, um cativante ator de teatro, com várias peças em seu currículo, soube, como o rapaz carioca praticante de surfe alvo dos registros de Alair Gomes, identificá-lo com bastante convicção acerca dos aspectos que demarcam as suas ações e reações no trato com o seu interlocutor. Face às diversas circunstâncias, com inegável acerto, André colocou em seu personagem as camadas emocionais que lhe foram solicitadas. Como já lhes disse, ele ora nos apresenta uma conduta inquisidora, levemente agressiva, ora se mostra um rapaz confuso com os desdobramentos advindos do fato de se deixar fotografar seminu por Alair, o que denota o seu preconceito com uma sexualidade que lhe parece incorreta. Ora parece apenas um menino vaidoso ao ver as suas fotos. Seu trabalho de corpo é espetacular, e não nos custa lembrar de sua cena impactante, em seu sentido estético e artístico, ao reproduzir a imagem de Davi, de Michelangelo. Raphael Sander, após exatos dois anos de sua estreia na televisão, dando prosseguimento à carreira neste veículo, pisa nos palcos pela primeira vez nos confirmando sua capacidade de nos provar, com distinta segurança, as intenções mais destacadas de seu personagem. Coube a Raphael defender o jovem militar amante de Alair Gomes. Diferentemente do personagem de André, o papel de Raphael lhe exigiu um grau de sobriedade e comedimento (o que foi cumprido com ampla compreensão), porém com as variações comportamentais atinentes às contingências por que passa. É preciso que se ressalte que Raphael possui uma boa presença cênica, voz articulada e expressividade corporal elogiável. Ele ostenta com a devida verdade a afetividade, demonstrada de modo sutil, pelo artista das fotos. A sensualidade jovem do personagem é sugerida de maneira não ostensiva. Evidencia-nos com clareza a angústia existencial do moço em não desejar a revelação de sua vida paralela com um homem mais maduro para a sociedade. Num repente, deixa que percebamos que é tão somente um rapaz que gosta de uma partida de basquete como tantos outros. Tanto ele quanto André Rosa foram ótimas e acertadas escolhas para fazerem a contracena com Edwin Luisi. O cenário de Mariana Villas-Bôas se baseia em uma economicidade e objetividade que se adequam à encenação. De fato, não haveria necessidade de uma exuberância de elementos cênicos a fim de que os mesmos traduzissem o universo de Alair. Formado por objetos simples, como uma bancada e uma cadeira, além de um grande painel corrediço forrado com tela translúcida, a cenografia cumpre a sua missão de funcionalidade com inegável êxito. O figurino de Ticiana Passos também respeita com dignidade os propósitos de identificação do perfil dos personagens, obedecendo as épocas sugeridas. Para Edwin Luisi, Ticiana optou pela casualidade de seus trajes, em tons neutros. O ator veste uma camisa social de cor clara, uma calça sem ajustes, mais larga, e tênis. O rapaz surfista vivido por André Rosa se apresenta com moletom e bermudas pretos (o intérprete está descalço). Merecem destaque as peças militares usadas por Raphael Sander em seu papel. Todos os paramentos estão presentes. A boina, o pulôver e calça verdes, e os coturnos. Em outro instante, o rapaz veste uma jaqueta de couro preta. Raphael e André desfilam, em determinadas cenas, apenas com calças jeans (seus torsos estão nus, e os pés descalços). A iluminação de Tomás Ribas é deslumbrante, proporcionando-nos vários e únicos momentos de distinta beleza. Tomás se valeu ao máximo de todos os recursos que lhe pareceram condizentes com a atmosfera particular do mundo de Alair. Dois grandes spots (nas partes superiores, tanto à esquerda quanto à direita) exercem função primordial para demarcar as cenas. Os planos se alternam entre os abertos (a luz, no entanto, não é estourada), e aqueles com certo abrandamento de sua intensidade. Tomás se dedicou visivelmente a registrar o valor que as sombras possuem em sua natureza. Essas mesmas sombras são vistas, como disse, a partir dos corpos dos atores que se posicionam, e se movimentam atrás do painel. Os focos assumem reconhecida importância na obra. Só para citar uma das boas utilizações deste recurso técnico, citemos a passagem em que Edwin/Alair recostado sobre o anteparo (a bancada virada) mergulha em algumas de suas reflexões. Em resumo, um trabalho com inquestionável envergadura qualitativa. Coube a Luísa Pitta a sensacional direção de movimento. Luísa executou um indiscutível e louvável “tour de force” no que diz respeito à realização de um elaboradíssimo trabalho de plasticidade dos corpos dos intérpretes. Realmente, arrebata-nos ver ao vivo a reprodução fidedigna, o que não é nada fácil, dos registros fotográficos feitos por Alair Gomes, muitos deles notórios, com os seus personagens reais. André Rosa e Raphael Sander fazem uma bela parceria ao colocarem em prática esta transposição para a realidade do que até então era visto nas impressões fotográficas da obra de Alair espalhadas pelo mundo. O que vemos são uma espécie de “frames” reais destas icônicas fotografias. A postura contida de Edwin Luisi também requer a nossa observação atenciosa. Rodrigo Marçal se encarregou de criar uma trilha sonora que se encaixasse com coerência à ambiência narrativa da peça, com seus fatos e personagens. E logrou vitória ao fazê-lo. Rodrigo, em ocasiões pontuais, insere primorosamente sons incidentais instigantes, e em outros lança mão da envolvente voz de Caetano Veloso com a canção “Mora na Filosofia”, uma composição de Monsueto e Arnaldo Passos. Marcio Mello caprichou no visagismo dos atores. Edwin Luisi exibe cabelos e barbas alinhados. André Rosa adota cabelos ondulados longos, com algumas mechas com tonalidades claras aliadas ao seu castanho, características típicas de um rapaz praticante de surfe das décadas de 70 e 80 (sua barba foi mantida escura, e bem aparada). Raphael Sander se mostra com a sua face imberbe (o que define ainda mais a juventude do militar que representa), e suas melenas estão lisas, em tom escuro, apresentando uma leve desconstrução, o que lhe cai muito bem. Com relação ao videografismo de Renato Krueger, podemos afirmar, com todas as convicções, que o mesmo exerce um papel de extrema relevância no espetáculo em pauta, pois resgata com apurados critérios as imagens eternizadas por Alair, inserindo-nos na profundidade de suas visão e ótica do semelhante masculino. As fotos de Alair Gomes, do Acervo da Fundação Biblioteca Nacional/Brasil, em projeção, não apenas reproduzem a sua obra real, mas colaboram com vitalidade para a nossa interpretação de sua arte. Também são interessantes as imagens dos locais e pontos turísticos que foram visitados pelo fotógrafo, como o Coliseu de Roma. “Alair” é um espetáculo que se confirma como obrigatório de se assistir por uma série de razões. Citemos uma delas. Aproveitando o fato de terem passados 25 anos do assassinato brutal e covarde de Alair Gomes por um de seus supostos amantes, a peça protagonizada por Edwin Luisi vem à baila nos palcos nacionais numa hora mais do que oportuna. Cada vez mais somos assombrados constantemente por estatísticas que indicam a truculência cometida dia após dia contra os homossexuais no Brasil. A classe política venda seus olhos para essa calamidade social. A intolerância à diversidade sexual é estimulada de modo público e escancarado por segmentos políticos (governantes e suas políticas de governo, políticos representantes de diversas esferas com seus inacreditáveis projetos etc), e pasmem, até setores religiosos possuem a sua parcela de culpa na disseminação da discriminação sexual. O caso é grave não somente em nosso país, mas em diversas nações no mundo. Há fortes movimentos que se empenham em transformar esta triste realidade. Mas os mesmos não podem ficar isolados em suas reivindicações em bastantes casos sequer ouvidas. Os crimes não podem se resumir a números frios noticiados em páginas de jornais. A mudança passa pela educação. A educação em casa e nas escolas, porquanto a maior amiga da intolerância é a ignorância. As Artes, com seu poder de comunicação e esclarecimento, têm feito a sua parte. Seja na TV, seja nos cinemas, e até mesmo em campanhas publicitárias de marcas populares. Neste exato momento, um dos representantes que lutam para dirimir esta mazela, ao retratar com absoluta dignidade, elevada bravura e inconteste nobreza, é “Alair”, uma peça teatral que retrata a vida e a obra de um homem, sim, um homem com a sua câmera fotográfica na mão que queria tão somente a sua liberdade. A sua liberdade de ser quem ele era. A sua liberdade de expressar os seus desejos, exercendo o inalienável direito de trabalhar com a sua arte. Pagou um preço alto por isso. “Alair” nos reporta a essas reflexões. Todos, eu digo todos, principalmente os intolerantes, deveriam assistir a “Alair”.
Tão detalhado seu comentário e tão perfeito…assisti ontem e fiquei extasiado…QUE SÓ RESTA-me aplaudi-lo.
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Oi, Marcos. Muito obrigado pelo seu carinhoso comentário. Fico feliz que tenha assistido à peça, e ficado extasiado. Abraços.
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