Foto: Nana Moraes
Em 1995, quando a dramaturga Regiana Antonini estreou o espetáculo “Aonde Está Você Agora?”, este texto já falava a respeito da importância do laço afetivo da amizade em nossas vidas. Quais eram os seus possíveis limites. O que poderia colocar à prova este elo essencial na convivência humana. Dois jovens, de origens e camadas sociais diferentes, viam a sua relação de amigos ser posta em xeque a partir de uma viagem ao exterior que o mais abastado faria, com o consequente afastamento de ambos. Em 2016, Regiana, uma de nossas mais prolíficas e talentosas autoras, também atriz, roteirista e diretora, especialista em escrever sobre pessoas, seus relacionamentos e sentimentos, resolve levar aos palcos uma continuação desta montagem, “E O Vento Vai Levando Tudo Embora…”. Em seu elenco, os ótimos Vitor Thiré, Daniel Blanco e Josie Pessôa, com a direção da própria dramaturga. No ano presente, a peça que tem como inspiração uma das mais belas canções do lendário grupo Legião Urbana, “Vento no Litoral”, é remontada com novos atores, os também excelentes Gabriel Chadan e Juliano Laham (Josie Pessôa continuou com sua personagem Beatriz/Bia). A trama gira em torno de dois jovens amigos, adolescentes, Pedro (Gabriel Chadan) e Gabriel (Juliano Laham), que nutrem um pelo outro um afeto inacreditavelmente puro e legítimo, raro de se ver hoje em dia, num período em que laços indispensáveis como a amizade acabam se esgarçando pela vaidade, pela competitividade, e pelo individualismo do homem, além da ausência de tempo para o convívio pessoal, e até mesmo pelo advento das tecnologias contemporâneas de socialização, que nos afastam mais do que nos aproximam. Há uma gritante diferença entre eles, num oceano de afinidades, que é o nível social e econômico. Porém, o que sentem mutuamente é tão forte que este abismo contingencial não os separa. Pedro é o menos favorecido neste campo, e possui vocação natural para as Artes Visuais, como o grafite. E Gabriel, por conseguinte, é o rapaz rico. Com predileção pela música, tendo como ídolo Lou Reed, adora compor, e pretende lançar um disco. No meio do caminho desta adorável história de amizade há uma pedra. Uma viagem. Gabriel fará uma longa viagem a Nova York para estudar. Será que agora as distâncias espacial e temporal farão com que a amizade de ambos seja chamuscada? Pedro e Gabriel mantêm uma ligação de amistosidade baseada nos típicos códigos juvenis de relacionamento, como um gesto recíproco com as mãos, em sinal de que estão de acordo com determinado assunto, ou atingiram certa vitória. Suas personalidades distintas não interferem na ampla e positiva frequência que existe entre os dois. Os chistes e motejos de um lado a outro são comuns e salutares, servindo como recurso de fortalecimento da evidente intimidade nos jovens. Pedro pode ser avaliado como um rapaz mais simples, pouco sutil no falar (seu tom de voz é mais alto), sem meias-palavras, com movimentações de corpo expansivas, demasiadamente autêntico, um pouco tosco até, mas nem por isso menos sensível e humano. E Gabriel ostenta um caráter mais comedido, potencialmente equilibrado, sendo cauteloso em suas argumentações. Gabriel tem uma tendência para o místico e o esotérico, e não abre mão de seu “Livro da Sorte”, que lhe serve, com os seus signos, como ferramenta de esclarecimento do que está por vir, ou como definidor de uma pontual situação. Já Pedro é cético quanto a isso, todavia, à certa altura, capitula, cede aos mistérios deste pequeno livro, que também, de algum modo, agrega-os. Os dois moços têm uma estreita ligação com a natureza e os seus elementos. Associam episódios que lhes são relevantes a uma noite de lua em sua fase cheia ou quarto minguante, por exemplo. Escrevem frases como traduções de seus pensamentos particulares nas areias de uma praia. Em meio a uma ou outra inofensiva piada comum entre homens trocada, vem à baila o assunto que realmente os estremece: o iminente afastamento deles. O que os assusta de fato é se a leal amizade que construíram sobreviverá aos reveses inevitáveis da passagem do tempo. Decidem fazer um pacto. Iriam se encontrar dez anos depois em uma data acertada na mesma praia onde tantas vezes se divertiram e conversaram. O acordo vai mais além, proposto por Pedro, em tom de desafio. Gabriel seria capaz de preterir um grande e verdadeiro amor em nome de sua amizade? Face ao amigo, que padece de um romance malsucedido, Gabriel lhe garante a fidelidade. Uma década se passou, e mudanças substanciais aconteceram. O desencontro à beira do mar como haviam combinado, o crime que entrou na vida de um deles, o que aparentemente evidenciou ainda mais a distância social dos amigos, e o surgimento de uma linda mulher, Beatriz/Bia (Josie Pessôa), que colocará em risco, abalando os seus mais sólidos alicerces, os laços de amizade costurados por anos. A dramaturgia de Regiana Antonini reúne, com ampla sensibilidade, humanidade, lirismo e honestidade, as características que, em inúmeras peças que escreveu, percebemos como seu norte, a sua orientação de pensamento e criação, a sua meta primeira, que é a de abordar, com incrível capacidade de ficção, temas que são os fundamentos de nossa existência, como o amor, a amizade, a união, a lealdade, o comportamento do indivíduo, suas ações, relações e consequentes reações. Mas antes de tudo, Regiana, seja falando de casais, de duas amigas maduras, de ex-namorados, ou de recém-casados com um pequeno filho e suas adversidades, imprime invariavelmente uma farta dose de amor naquilo que faz, tocando de pronto o espectador, pois diz o que queremos ouvir, e nos faz sentir o que almejamos sentir. Suas peças são empáticas, e “E O Vento Vai Levando Tudo Embora…” representa tudo o que eu asseverei antes com notória propriedade e coerência. A autora discorre sem sentimentalismos tampouco pieguices (atalhos fáceis), sobre o grau máximo a que uma amizade pode chegar, sobre a preciosidade de um abraço apertado entre dois amigos, sobre a tênue fronteira entre o desejo e a traição, sobre a relação homem/mulher e seus valores, sobre a ética existente nos acordos entre as pessoas, e sobretudo, sobre a lealdade em seu sentido mais literal. A escolha de “Vento no Litoral”, arrebatadora canção do grupo brasiliense Legião Urbana composta em 1991, e que nos comove até hoje, como inspiração e referência para o seu texto, foi um supremo achado, haja vista que a partir de suas inspiradas letras se pôde construir um panorama narrativo no qual se inserem com perfeição as situações vividas por dois jovens rapazes descobrindo o mundo através de sua união e amizade, e a interveniência de uma terceira pessoa, no caso uma mulher, com todos os seus conflitos, dúvidas e embates existenciais. Como diretora, Regiana Antonini se imbuiu de uma merecedora “autoridade” para materializar cenicamente aquilo que tão bem escreveu. Quem mais teria legitimidade para pôr em prática com tanta fidedignidade a delicada e comovente história que imaginou para os seus personagens Pedro, Gabriel e Bia? Regiana procurou enfatizar esta forte ligação dos dois amigos com uma direção precisa e sensível de Gabriel Chadan e Juliano Laham. Não há quem possa dizer que não há entre eles uma grande e sólida amizade, baseada no respeito e no amor fraterno. Soube, com elevado conhecimento, utilizando-se de lindas projeções audiovisuais, e tendo o rico auxílio da trilha sonora, demarcar as passagens de tempo que acompanham os jovens. Equilibrou com aguçada percepção os momentos conflituosos, os instantes de descontração e brincadeiras mútuas, as cenas de encontros e desencontros, os embates e as tomadas de decisão. Gabriel Chadan é um ator com reconhecida personalidade. A sua intensidade ao defender um papel é sempre progressiva. Gabriel possui inegavelmente um jeito particular de atuar que nos é irresistível. Sua espontaneidade, naturalidade e franqueza interpretativa saltam aos olhos. Tem aptidões não só para nos fazer rir como para nos tocar. Como Pedro, não foi diferente. Colocou em seu personagem a sinceridade de suas emoções, que são muitas. Pedro é desenhado pelo intérprete com traços e contornos que se justificam, sejam eles de revolta ou de afetuosidade. Juliano Laham, assim como Gabriel, revela-nos um brilho especial sobre a ribalta. Juliano, dotado de enorme carisma, trilha com acerto por todos os caminhos e vias interpretativos exigidos. Fica-nos clara a sua vivacidade e sua observação cuidadosa das camadas emotivas de seu personagem. Gabriel Chadan e Juliano Laham estão, pode-se dizer, bonitos no palco. Não somente do ponto de vista estético/físico, mas no que se refere ao fulgor genuíno e pessoal nitidamente percebido por nós. Na noite em que assisti a “E O Vento Vai Levando Tudo Embora…” a atriz Josie Pessôa, do elenco fixo da peça, havia sido substituída pela atriz Mariana Ferreira. Porém, posso lhes garantir que na primeira vez em que vi o espetáculo, há exato um ano, e em cujo elenco estavam Vitor Thiré e Daniel Blanco (ótimos, por sinal), Josie teve uma atuação admirável, mostrando em todas as cenas de que fez parte, como Beatriz/Bia, uma força natural, uma luz irradiante, uma postura firme, uma voz bem colocada e sem hesitações, sempre convicta dos propósitos de seu papel, além de ser, indubitavelmente, uma atriz muito bonita. A elegante iluminação (e operação de luz) ficou a cargo de Cláudio Martani. Cláudio valorizou a encenação com um plano aberto suave, além de dar um enfoque especial em determinadas passagens nas quais os atores se dirigem para a plateia, como se fossem pequenos monólogos. Sua luz se harmonizou completamente com os elementos do cenário. Merece elogio a projeção feita na parede do teatro simbolizando a Lua em fases diferentes, e o uso, em outras situações, das cores. Diego Timbó se responsabilizou pela preparação vocal e musical dos atores. Seu reconhecido empenho é percebido na eficiente maneira como o elenco projeta e imposta a sua voz. A cenografia de Ruslan Alastair (Truque Produções) nos embevece com seus tecidos de papel branco construídos em formas triangular e retangular. São dois deles, os triangulares, um maior, e outro menor, posicionados à esquerda do palco (há uma cena surpreendente e impactante envolvendo este recurso cênico e Gabriel Chadan). Os tecidos de papel retangulares postos lado a lado, e de cima a baixo, no fundo da ribalta exercem função primordial e complementar do entrecho narrativo, pois são neles que as imagens de vídeo são projetadas. Essas encantadoras imagens assinadas por Gelder Martins, também editor, evocam acontecimentos que se interligam com a história, como desenhos feitos nas areias da praia, o sol no horizonte do mar e o encontro amoroso de um casal (produção da Dialética Filmes). A trilha sonora nos conquista de imediato, lógico, pela própria canção que inspirou o espetáculo, “Vento no Litoral”. Todas as vezes em que esta inesquecível e belíssima canção é tocada, em cenas estratégicas, tornamo-nos reféns de seu virtuosismo. Somos ainda presenteados com outra música marcante, “Vai” (2006), na voz de uma de nossas melhores cantoras e compositoras, Ana Carolina. “E O Vento Vai Levando Tudo Embora”, conclui-se, mantém um relacionamento reverente com o universo musical. Os figurinos de Cal Carpenter são diversificados, e se casam com primor ao perfil dos personagens. Com o passar dos anos, esses costumes se modificam, e Cal respeitou plenamente esta questão. Enquanto os rapazes usam bermudas esportivas, regatas, t-shirts, moletom, jeans, casaco de couro preto, Beatriz traja lindas roupas de influência hippie, que vão das saias ao crochê, incluindo uma bolsa típica. Thiago Medeiros realizou um louvável trabalho de visagismo, realçando a beleza do elenco, sem abdicar do “physique” natural dos personagens. “E O Vento Vai Levando Tudo Embora…” nos deixa uma série de mensagens e lições, estas em sua melhor acepção. Saímos do teatro com uma leveza de alma e espírito, certos de quais são alguns dos valores indispensáveis em nossas frágeis vidas. Certos de que uma amizade verdadeira entre duas pessoas pode atingir um grau de sublimidade jamais imaginado. Certos de que o amor é essencial em nossas existências, inclusive o amor entre amigos, puro e leal. “E O Vento Vai Levando Tudo Embora…” nos confirma a riqueza e unicidade de se ter um amigo. Conversar, brincar e até mesmo brigar com esse amigo, para depois abraçá-lo intensamente. Amá-lo. Como diz a letra de “Vento no Litoral”, achemos o nosso cavalo-marinho, deixemos que a onda nos acerte… E o resto? O resto é com o vento. Ele leva embora.