Blog do Paulo Ruch

Cinema, Moda, Teatro, TV e… algo mais.

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Foto: Elisa Mendes

O Brasil vive tempos contraditórios. Se por um lado se debate em diversas esferas temas até então considerados tabus, ou mesmo desconhecidos por parcelas da população, como diversidade sexual, transgêneros, transfobia etc, por outro somos aterrados por uma onda crescente de segmentos políticos e sociais que defendem, aberta e escancaradamente, a intolerância, o retrocesso, a discriminação e o desrespeito aos direitos humanos, o que só nos faz trilhar um caminho de atraso, irracionalidade e irresponsabilidade. A Arte, desde as suas priscas eras, representa uma ferramenta poderosa de esclarecimento, transformação e reflexão. Há pouco, o país se familiarizou com o drama da personagem trans Ivana, personificada pela atriz Carol Duarte, da novela “A Força do Querer”, de Gloria Perez, na Rede Globo. Muitos passaram a conhecer esta realidade que não ganhava o seu devido destaque nas mídias de massa. Sabíamos de casos pontuais, mas sem que houvesse explicações de suas naturezas. No teatro, somente este ano, tivemos bastantes espetáculos, com ótima aceitação, que abordaram de maneira lúcida as questões relacionadas acima. “Gisberta”, de Rafael Souza-Ribeiro, com idealização de Luis Lobianco, seu protagonista, assume um papel fundamental na atual conjuntura no que se refere a denunciar, por meio de sua dramaturgia e encenação, a tragédia que se procura ocultar da barbárie sofrida por homossexuais, travestis, transgêneros e afins, que são assassinados diariamente apenas por serem diferentes em suas orientações sexuais por seus algozes pelos quatro cantos do país, recordista mundial na prática destes crimes. A montagem ganhou o Prêmio LGBT da Parada Gay de São Paulo, na categoria Artes Cênicas, além de receber indicações aos prêmios de Melhor Ator e Direção Musical pelo Botequim Cultural. “Gisberta”, que teve a pesquisa dramatúrgica de Luis Lobianco, Renato Carrera, seu diretor, e Rafael Souza-Ribeiro (investigação de Luis Lobianco e Rafael Souza-Ribeiro), conta-nos a história verídica de um transexual brasileiro que, após enfrentar resistências de alguns membros de sua família, e dificuldades de se estabelecer em sua terra, resolve tentar a vida como artista transformista na Europa, primeiro na França, e depois no Porto, em Portugal. O que começou como uma trajetória de ascensão, reconhecimento, sucesso, glamour e dinheiro neste mundo marginalizado da sociedade, terminou com a sua morte brutal, não conhecida no próprio Brasil, cometida pelo espancamento homofóbico e transfóbico de quatorze adolescentes portugueses dos 12 aos 16 anos que, depois de perceberem o seu potencial falecimento, jogaram-no no fundo de um poço com água suficiente para afogá-lo, caso estivesse vivo (e estava). Esta aberração poderia ter acontecido aqui mesmo, em nosso país, daí a necessidade e a urgência de se levar aos palcos a história trágica deste artista. Desde a sua mais tenra infância, Gisberta (ou Gisberto, seu nome de batismo), já nos indicava a sua feminilidade, que se apresentava por gestuais delicados e preferências “inadequadas” para um menino. A família de Casa Verde, em São Paulo, dividiu-se quanto ao comportamento “não convencional” do caçula de oito irmãos. Suas três irmãs procuraram acolher o jovem que não se identificava com o seu corpo masculino, ao contrário de seus irmãos homens, chegando a ser violentamente agredido por um deles por estar vestido e maquiado como uma mulher. Gis, como era chamado intimamente, sempre gostou de se trajar como tal, e cantar. Ainda criança, foi levado ao médico para ser tratado (isso nos lembra os projetos assombrosos nascidos nas Casas Legislativas brasileiras com promessas de “cura gay”). Assustou-se ao ver que os seus amigos mais próximos estavam sendo mortos, e a sua intuição lhe dizia que poderia ser o seguinte. Este foi o motivo crucial para que atravessasse as águas do Atlântico na busca por uma vida mais segura e digna. Gisberta conquista os portugueses e colegas de classe com as suas elogiadas performances artísticas, prestigiando alguns de seus intérpretes conterrâneos. Sua vida agitada e sem controle fez com que se perdesse em vícios, ficasse doente de SIDA, rumando para um fim que parecia iminente, mas que fora antecipado pelo ódio injustificado daqueles que estavam somente começando as suas existências (os jovens rapazes eram internos de uma instituição católica, a Oficina São José, hoje extinta, onde eram abusados sexualmente por um de seus funcionários). Jovens rapazes que destilaram todo o seu ódio em uma vítima inocente que nada tinha a ver com o que sofreram. Gisberta padeceu de contínuas sessões de tortura, dia após dia, em um prédio abandonado no qual se abrigava sob trapos, aos gritos de “Porrada, porrada!”, sem qualquer chance de defesa, já bastante debilitado e fraco pela enfermidade não tratada. O caso foi levado à Justiça, com sentença decepcionante. O juiz chegou à conclusão de que o óbito de Gisberta se deveu ao afogamento, agravado pelo estágio avançado de sua doença. Segundo os seus argumentos, as múltiplas lesões (em variadas e vitais partes do corpo de Gisberta), não contribuíram para o seu falecimento. Os rapazes foram condenados a pouco mais de um ano de detenção. As notícias publicadas em jornais não foram favoráveis à vítima. Gisberta foi levada ao Brasil a fim de receber as últimas homenagens de seus familiares, não mais com aquele sorriso que cativava a todos, tampouco o cabelo volumoso que chamava a atenção. A dramaturgia de Rafael Souza-Ribeiro, além de ser extremamente corajosa ao abordar um assunto tão árido em suas circunstâncias, é passível de admiração por sua notável habilidade em inserir a leveza do humor em muitas de suas passagens com o intento de não se pesar demais a ambiência do espetáculo (ainda mais tendo como autor de suas ações um intérprete associado à comédia, como Luis Lobianco). A peça é comovente por mostrar, sem apelar para emoções fáceis, o que não seria difícil levando-se em conta o seu contexto, o lado humano do personagem, principalmente em seu seio familiar. Sem panfletagens premeditadas, “Gisberta” possui um viés denunciativo de grande relevância o qual não podemos ignorar. Rafael, mais uma vez demonstrando a sua destreza com a forma narrativa, distribuiu com equilíbrio em seu bem acabado texto manifestações musicais e poéticas, em meio à dura realidade dos fatos (faz-se menção, inclusive, a aspectos políticos da época, como a era pós-ditadura salazarista). O dramaturgo imprimiu ao seu texto um tom de conversa direta de alguns personagens vividos por Lobianco com a plateia, num clima de narração de histórias, como se fosse um bate-papo espontâneo e natural com os seus interlocutores, às vezes até com respostas dos espectadores. A ideia de se dar contornos mais brandos à montagem, aproximando-a do coloquial e familiar, comprovou-se com a presença da irmã de Gisberta, enquanto contava uma história, preparando um fricassé, saindo do palco inúmeras vezes para ver o seu ponto. A direção de Renato Carrera, que foi responsável por um dos quatro solos (“Como Deixar de Ser”, com Kelzy Ecard) de um dos espetáculos de maior repercussão sobre o tema diversidade, “Ocupação Rio Diversidade”, conduziu “Gisberta” com elevada sensibilidade, procurando destacar a beleza em seu conjunto, extraindo ao máximo as potencialidades interpretativas do excelente ator protagonista. Renato conseguiu com inegável êxito um delicado equilíbrio entre o drama (na verdade, uma tragédia), a comédia respeitosa (afinal de contas, fala-se de uma história real com desdobramentos cruéis), a introdução alternada e meticulosa da musicalidade ao vivo, causando-nos um alumbramento inefável, além de desmistificar a figura do travesti/transformista/transexual como alguém desgarrado do mundo, sem apego aos valores mais intocados do círculo familiar. O diretor aproveitou todo o perímetro cênico de que dispunha (o cenário possui diferentes níveis, portas, degraus…), permitindo total liberdade a Lobianco de usar o espaço em seu entorno, promovendo consequente dinamismo à peça. Há momentos em que se privilegiam a pausa, a ausência de som, o instante reflexivo. Tudo isto corrobora uma inequívoca sintonia entre autor e diretor. Luis Lobianco, que passamos a conhecer no canal de humor “Porta dos Fundos”, surpreende-nos com a sua devastadora atuação, e impressionante aptidão de se transmutar em diferentes tipos, sem usar quaisquer recursos externos como apoios (apenas alguns adereços em certas ocasiões), somente com a sua potente voz, que pode atingir entonação suave e doce, e os agonizantes brados de dor e agonia de seu personagem ao sofrer as violências narradas. Luis, maquiado com elegância (sombras azuladas avivam seus olhos, e uma discreta camada de batom cobre os seus lábios), e os cabelos negros cuidadosamente penteados para trás, é capaz de fazer com a mesma qualidade uma mulher simples, como a irmã de Gisberta, contando-nos a sua história, o médico da família que se vê perdido ao diagnosticar o “problema” da criança, o seu irmão violento, um travesti mais velho e consagrado, um admirador português do artista, mantendo sempre um grau elevado de comunicação com o público, que fica à mercê de seu talento. Luis Lobianco, que se revelou um extraordinário ator dramático também, mostrou-nos ainda outra faceta até então desconhecida, a de cantor. Suas interpretações de canções como “Coração do Agreste”, de Fafá de Belém, “Swing da Cor”, de Daniela Mercury (numa versão mais lenta, romântica e envolvente), “Sonhos de um Palhaço”, de Vanusa, ostentam seus notórios recursos como artista da música. Ousa com brilho ao reviver Amália Rodrigues. Apoteoticamente, reinventa “Diamonds Are A Girl’s Best Friend”, eternizada na voz de Marilyn Monroe. Luis Lobianco tem o privilégio e a primazia de estar acompanhado em cena por músicos talentosíssimos, como Lúcio Zandonadi (piano e voz), Danielly Souza (flauta e voz) e Rafael Bezerra (clarineta e voz). Suas contribuições são riquíssimas e indispensáveis para a peça, deixando-nos invariavelmente embevecidos. O responsável pela poderosa trilha sonora e inspiradas e caprichadas músicas compostas foi Lúcio Zandonadi (Lúcio não poderia deixar de colocar, claro, em momento estratégico da montagem, “Balada de Gisberta”, de Maria Bethânia). A iluminação de Renato Machado exerce papel primordial na complementação estética do espetáculo. Renato elaborou com bastante sensibilidade e entendimento a ampla variação de texturas luminosas ambientais. Luis Lobianco e os músicos são bastante valorizados pela certeira luz de Renato, que não economiza em suas ideias de embelezamento. Há pequenos refletores superiores com luz branca pujante, que por vezes adotam uma coloração mais fraca, acompanhando o contexto do desenvolvimento narrativo. O iluminador usa focos circulares sobre Lobianco como aqueles que se fazem com um showman. Passeia-se por uma paleta diversificada de tonalidades, que vão do azul ao rosa, além do verde e vermelho (as cores de Portugal). Os músicos, que ficam separados, cada um em seu espaço específico, são iluminados de modo tênue, provocando um efeito etéreo (suas sombras assumem amplo poder imagético). Os focos diretos vindo de uma das laterais sobre o ator fortalecem a cena. Há ainda a bonita projeção de uma figura feminina com chapéu em uma das telas de tecido. O cenário em tons cinzas (ou gelo) de Mina Quental se constitui de grandes painéis/módulos retangulares, unidos, com duas entradas (uma central, com porta corrediça, e outra lateral). Dividido em três compartimentos forrados por um tecido transparente, diáfano, que permite que se vejam os três músicos presentes todo o tempo no palco, Mina também colocou à frente desta espécie de “pequeno templo de um artista” um tablado de dimensões médias. Com visível funcionalidade, pôs à disposição do protagonista um cubo (que serve de mesa e púlpito) e uma cadeira, ambos fáceis de serem deslocados. O cenário de Mina se presta com demasiada eficiência à encenação, casando-se com perfeição com a luz de Renato Machado. Os figurinos são de Gilda Midani, que buscou uma trilha de neutralidade, como se esta oferecesse com isenção ao intérprete as possibilidades de incorporar os vários tipos de pessoas que atravessaram a vida de Gisberta. Apostando no off-white, Gilda vestiu Lobianco, que passa quase a totalidade da encenação descalço, com um mantô sobre um macacão com botões e sem mangas, atingindo um harmonioso resultado, visto que o ator se vale da fluidez do tecido para realçar os seus expressivos movimentos. O artista ainda se utiliza de acessórios, como um vistoso leque, um lenço estampado e um escarpim com brilhos. A preparação vocal coube à atriz e cantora Simone Mazzer. Simone explorou com larga sabedoria as vastas capacidades de Luis de brincar com a sua voz. O ator encontra com facilidade o modo típico, em tom de conversa, da irmã de Gisberta, para se comunicar, como traduz com familiaridade o sotaque lusitano do frequentador dos shows de cabaré e do travesti sexagenário consagrado. Como já dissemos, as performances do intérprete como cantor, em todas as músicas, são surpreendentes, causando, cada uma, uma ótima impressão em nós. Marcia Rubin, encarregada pela direção de movimento, teve um papel essencial para que houvesse, por parte do ator, a personificação impecável de um homem com a completude de sua feminilidade, como pessoa e artista. Lobianco revela uma leveza inconteste ao transitar pela ribalta com os seus gestos estudados com denodo. A coreografia de “Diamonds Are A Girl’s Best Friend” exigiu maior complexidade de movimentações, cumpridas com brilho e espontaneidade pelo protagonista. “Gisberta” é uma montagem que carrega em si enormes responsabilidades, tendo em vista a nossa atualidade obscurantista, e as assume com nobreza e magnitude. A peça estrelada por um bravo Luis Lobianco, atuando como porta-voz de uma realidade alimentada por ódios injustificados, serve tanto à Arte por suas indiscutíveis qualidades como expressão cênica teatral, quanto a todos aqueles que lhe forem assistir, ao provocar em suas consciências um inescapável processo de reflexão quanto à aceitação do que é ser diferente, alertando-os no que concerne aos conceitos fundamentais da tolerância, indispensável para a concórdia social. Em “Gisberta”, a despeito da tragédia pessoal na qual culmina a trajetória de um artista, veem-se poesia, esperança, amor, afeto, música, choros e risos. Que o seu fim trágico represente duramente uma denúncia sobre a qual não se pode calar. Que o seu começo e o seu “durante” como artista dos palcos fiquem na lembrança daqueles que a viram brilhar. Luis Lobianco fez a sua parte. Agora é com a sociedade.

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