Foto: Sergio Zalis/Rede Globo
Ontem à noite, o público cativo das 19h certamente se embeveceu e se inebriou com o primeiro capítulo de “Deus Salve o Rei”, a nova novela do horário na Rede Globo, marcando a estreia de Daniel Adjafre como autor titular na emissora. Jamais vimos na teledramaturgia brasileira, com o auxílio bem-vindo das tecnologias da computação gráfica, cenas tão grandiloquentes e exuberantes, somente vistas nas telas de cinema, servindo a uma trama medieval com todos os requintes que ela merece, com disputas entre reinos, casamentos prometidos, lutas entre príncipe e salteadores, belas princesa e plebeia, e reis em conflito. Tanta grandiosidade visual, associada naturalmente à Sétima Arte, fez com que este primeiro capítulo fosse exibido em seis capitais do país. Com direção artística de Fabrício Mamberti, a história começa com expressivas imagens congeladas de soldados em brutais e sangrentas batalhas campais (algo como a técnica “tableau vivant”, conferida no filme de Martti Helde, “Na Ventania”). Somos apresentados aos primórdios do enredo pela voz de Rosamaria Murtinho, a Rainha Crisélia, do Reino de Montemor. Segundo ela, durante 300 anos, o Reino sempre primou pela proteção de suas fronteiras, vivendo de suas conquistas, tendo fartura e bonança graças à extração de minério de ferro, à lavoura e ao gado. No entanto, não houve a preocupação com bem tão precioso: a água. O rio que o abastecia secou. A saída fora entrar em acordo com o reino mais próximo, Artena. Em troca da água, o minério de ferro. Objetivando a sua independência, é construído em Montemor o grande aqueduto, que demandou anos, e hordas de operários. Chega o dia em que a Rainha Crisélia, ao lado de seu neto, o Príncipe Afonso (Romulo Estrela), entrega aos seus súditos a água esperada, em uma portentosa cerimônia. Para decepção geral, seu jorro minguou. O lago que servia como fonte do aqueduto também secou, anunciou um soldado. Conhecemos o outro herdeiro do trono de Montemor: o atoleimado e mulherengo Príncipe Rodolfo, personificado por Johnny Massaro. Rodolfo é notificado por sua avó sobre o fracasso de sua obra. Numa reunião familiar na Sala do Trono, fica decidido pela Rainha que a paz existente entre os Reinos de Montemor e Artena, que já dura 50 anos, será mantida, e com isso, o seu acordo. Afonso se prontifica a realizar uma expedição às colinas em busca de uma nova fonte de água. Viajamos para o Reino de Artena, e nos deparamos com a linda e doce Amália (Marina Ruy Barbosa), dona de uma barraca de caldos. Independente, Amália resiste às pressões de seu futuro marido, o comerciante de tecidos Virgílio (Ricardo Pereira), para abandonar o trabalho, e se dedicar exclusivamente a ele. Nas dependências externas do castelo do Rei Augusto (Marco Nanini), ouvimos a composição poética, ao som das cordas de um alaúde, de Istvan, o Marquês de Córdona (Vinícius Calderoni), apaixonado pela bela e soberba Princesa Catarina (Bruna Marquezine), que nos deixa clara a sua rejeição pelo inocente rapaz. Catarina é avisada por Lucíola (Carolina Ferman), sua camareira e confidente, de que o seu pai, Augusto, quer falar com ela. Em sua sala, o Rei Augusto diz a sua filha o quanto preza o seu pretendente, até que são interrompidos pelo conselheiro Demétrio (Tarcisio Filho). Leal ao Rei, informa-lhe sobre o destino malsucedido do aqueduto. Neste momento, testemunhamos a ganância e a falta de ética de Catarina, ao propor ao pai que aproveitem a situação de fragilidade do Reino de Montemor para alterarem o acordo em favor de Artena, sendo imediatamente repreendida pelo justo e honrado Augusto. A cena termina com o Rei comentando: “ É como diz o ditado, Demétrio. Se quiser fazer Deus rir, faça planos. E eu acrescentaria. E se quiser fazê-lo gargalhar, faça planos para seus filhos”. Enquanto isso, em Montemor, após o afetado e fútil Príncipe Rodolfo determinar aos seus criados o que desejaria para a sua festa, uma importante conversa entre os irmãos reais ocorre, na presença do médico Lupércio (Pascoal da Conceição), que cuida de sua avó. Lupércio lhes afirma que os lapsos de memória da Rainha Crisélia estão evoluindo, e que se trata de uma doença desconhecida, sem tratamento (o que no futuro, viria a ser conhecido como o Mal de Alzheimer). Rodolfo revela a sua face mais feia, ao demonstrar friamente o seu desinteresse pela saúde da Rainha. Num colóquio particular, ciente de seu estado clínico, Crisélia comunica a Afonso que o seu desejo é que, quando volte da expedição, assuma o trono. Amália chega à sua casa, e como de costume, seus pais Martinho (Giulio Lopes) e Constância (Debora Olivieri) estão discutindo (o casamento deles foi arranjado). Amália tem um irmão, Tiago (Vinícius Redd). Ambos discorrem sobre o amor e o casamento. Neste instante, a moça deixa transparecer a sua porção romântica e idealista. Em seus aposentos, o Rei Augusto confessa a Demétrio que está na hora de sua filha se casar, e que o Marquês de Córdona seria o seu marido ideal, por ser um homem virtuoso. Assim, Catarina poderia se tornar uma pessoa melhor, mais indulgente, segundo o próprio rei. O Príncipe Afonso se despede de sua avó, e inicia, acompanhado de Cássio (Caio Blat), o Comandante do Exército de Montemor, a expedição em busca de água para o reino. Quinze dias depois, Afonso, um pouco desiludido, diz a Cássio que se não encontrarem água no vale próximo, dará por encerrada a expedição. Constantino, o Duque de Vicenza (José Fidalgo) lhes conta que encontrou restos de comida não muito longe, o que indica a presença de ladrões. Durante a cavalgada, são surpreendidos pelo bando de salteadores. Decorre uma violenta batalha entre os dois lados, com direito a lutas bem coreografadas, e difíceis de serem executadas, vale dizer. Numa sucessão de cenas de violência estetizada, em que corpos são perfurados de forma inclemente por lanças e flechas, sobram mortos e feridos. O Príncipe se afasta de seus aliados, e acaba sendo gravemente ferido por uma flecha. Em Artena, Augusto comunica a Catarina que o Marquês pediu o seu consentimento para se casar com ela, recebendo a sua aprovação, para desgosto da princesa. Amália sai pelo campo com o seu irmão para colher laranjas, rabanetes e manjericão. Tiago vai para um lado, e sua irmã para o outro. De repente, Amália cai com o seu cesto. Próximo dela, o Príncipe desfalecido e pálido. Os olhos da Princesa o miram com paixão. Ele, mesmo desacordado, aperta com força a sua mão, não a largando mais. Em uma bonita cena final, a câmera voa alto sobre o casal, fechando com uma estonteante paisagem de montanhas ao fundo. O texto escrito por Daniel Adjafre e Cláudia Gomes, com a colaboração de Angélica Lopes, Péricles Barros e Sérgio Marques é um primor. Não é fácil engendrar uma trama passada na Idade Média, em locais fictícios, criar personagens condizentes com aquela época, e que sejam ao mesmo tempo críveis, causando empatia nos telespectadores, construir elos entre os núcleos, tornando a fantasia próxima de nós. Tudo isso foi logrado pela equipe de autores, que se esmeraram na construção dos diálogos, inteligentes, sendo alguns muito bem-humorados, e outros emocionantes. Há espaço tanto para o romance, quanto para o drama e a comédia. A direção artística de Fabrício Mamberti e geral de Luciano Sabino, tendo como colaboradores os diretores João Boltshauser, Oscar Francisco, Pedro Brenelli e Bernardo Sá merece quantos elogios forem possíveis. Imaginamos a dificuldade em conduzir e comandar certas cenas, principalmente as de batalhas, e aquelas que necessitam de um considerável número de figurantes e elenco de apoio. Não menos complexas são as cenas entre dois ou três atores, como as com Marco Nanini, Bruna Marquezine e Tarcisio Filho, ou entre Rosamaria Murtinho e Romulo Estrela, que demandaram um intimismo maior, uma delicadeza em seu tempo. O elenco é um acerto indiscutível. A escalação optou por nomes jovens, alguns bastante queridos e admirados pelo público, apostou corajosamente em Romulo Estrela para ser o protagonista masculino, convocou atores experientes, e grandes representantes da arte nacional, como Marco Nanini e Rosamaria Murtinho. Bruna Marquezine, no alto de sua esbelteza, destila a empáfia de Catarina. Marina Ruy Barbosa abusa, para o nosso agrado, de sua formosura para compor Amália. Johnny Massaro, antes de tudo, possui uma veia cômica como poucos de sua idade, mas sabe, da mesma maneira, imprimir a dramaticidade perfeita ao seu personagem, como o fez com Rodolfo. Romulo Estrela tem todos os méritos para se tornar uma das opções de sua geração para protagonizar histórias com as quais o seu perfil se encaixe. O bonito ator, que já brilhou em outras produções da emissora, como “Liberdade, Liberdade”, e mais recentemente na minissérie “Entre Irmãs”, preferiu o caminho da sobriedade e do comedimento, convencendo indubitavelmente na postura e na voz de seu Príncipe Afonso. Caio Blat, Ricardo Pereira, Tarcisio Filho, Pascoal da Conceição, Debora Olivieri, Giulio Lopes, Vinícius Redd e Carolina Ferman defenderam com garbo as exigências dramáticas de seus papéis, enriquecendo cada cena de que participaram. José Fidalgo e Vinicius Calderoni, em suas aparições, já provaram que são garantias de bons momentos no folhetim. Marco Nanini, um de nossos maiores intérpretes, colecionador de personagens inesquecíveis em telenovelas, como “Gabriela” e “Brega e Chique”, além, é claro, do seriado “A Grande Família”, sem trocadilhos, é uma presença nobre em cena, com todo o seu conhecimento interpretativo e inteligência emocional, valorizando cada palavra, cada frase emitida pelo seu Rei Augusto, que já nos conquistou. Marco emprestou ao seu papel a severidade esperada de um soberano, mas também uma sensibilidade irresistível. Rosamaria Murtinho, outra insigne atriz de nossas Artes, faz parte da História de nossa TV, com carreira prodigiosa, assim como Marco Nanini, no cenário teatral, e o convite que lhe foi feito para dar vida à honrada Rainha Crisélia não poderia ter sido mais oportuno. Rosamaria nos transmite uma beleza de interpretação que transcende as telas, não nos poupando de sua vasta emoção ao desenhar os traços delicados e necessariamente austeros de sua Rainha. A cenografia de Keller Veiga e Pedro Equi é deslumbrante em sua amplidão, no que corresponde aos espaços palacianos, e charmosa e coerente no que se refere aos ambientes mais simples, como a casa de Amália. A cidade cenográfica, com suas fachadas e logradouros, impressiona. A cenografia virtual, que nos provoca alumbramento, coube a Marcio Fontes e Glaucio Lazaro. Nininha Médicis ficou encarregada da produção de arte impecável. Cada detalhe, como taças de metal, os elementos que ornamentam a feira de Artena, os aspectos domésticos da morada plebeia, os pontos caracterizadores do banheiro de Catarina nos causam assombro pelo seu capricho e pesquisa. Mariana Sued se incumbiu da confecção dos figurinos riquíssimos. A riqueza dos costumes não se restringe ao sentido literal do termo, com todos os enfeites, ornamentos e filigranas estilísticas das vestes nobres, mas na elegância simplória das vestimentas dos plebeus, e na eloquência estética dos uniformes dos soldados reais (a equipe de figurinistas assistentes e apoio ao figurino é enorme). A direção de fotografia ficou sob a batuta de Alexandre Fructuoso. Alexandre explorou bastantes possibilidades de texturas, filtros e luminosidades. Seu trabalho é irretorquivelmente magistral. Alexandre impingiu um colorido vívido às cenas de multidão, como na inauguração do aqueduto. Escolheu as sombras e meias-luzes nas dependências do palácio, como na conversa definitiva entre o Rei Augusto e a Princesa Catarina, e tonalidades azuladas nas noites do Reino de Artena. Os efeitos especiais de Federico Farfan, e os efeitos visuais de Marcelo Nicacio e Rafael Ambrosio, em associação com a avançada tecnologia da computação gráfica, podem ser definidos, sem hesitação, como excelentes, servindo para o ótimo acabamento estético da produção. A lindíssima abertura foi imaginada por Alexandre Romano, Flavio Mac, Fabricio Duque e Felipe Lobo. Este criativo e inspirado quarteto se utilizou de tons amarelos/dourados fortes (há uma evolução para outras cores, algumas mais escuras), e uma câmera em movimentos contínuos e circundantes que testemunha fatos que aludem ao enredo, com as pessoas simbolizadas por bonecos meticulosamente artesanais (parecem feitos de cobre). Há um séquito de cidadãos plebeus carregando baldes de água em direção a um castelo no alto de uma colina, um casal apaixonado, uma moça fugitiva, rosas e seus galhos retorcidos, chuvas de flechas em uma batalha, uma ave com olhos faiscantes, uma princesa sendo coroada, terminando com um soldado de costas para uma mulher. Uma pequena obra-prima com a voz divina da jovem norueguesa de 21 anos Aurora interpretando a canção folclórica “Scarborough Fair”. As magníficas músicas originais receberam a assinatura de Alexandre de Faria e Rodrigo Marsillac, com gerência musical de Marcel Klemm. As músicas, de caráter essencialmente épico, foram gravadas na República Tcheca pela Orquestra Filarmônica de Praga, no Smecky Music Studio, durante quatro dias (a orquestra está acostumada a fazer trilhas para filmes relevantes, como a trilogia de “O Poderoso Chefão”). O resultado ficou esplêndido. “Deus Salve o Rei”, definitivamente, levando-se em conta o seu inesquecível primeiro capítulo, já entrou para a história da TV brasileira. Muitos são os motivos para prender o telespectador, e fazê-lo acompanhar esta encantadora e mágica história. Por algumas dezenas de minutos, de segunda a sábado, iremos nos sentir como nobres ou plebeus, em Montemor ou Artena, isso não importa. O importante é embarcar nesta fascinante obra teledramatúrgica, cheia de sonhos e fantasia. Se Deus salvou o Rei, também salvou a luz criativa, a ousadia e o talento de toda a equipe da nova novela das 19h, “Deus Salve o Rei”.