Blog do Paulo Ruch

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Foto: Igor Mota

A impressionante atualidade de “O Julgamento de Sócrates”

Em pleno século XXI, já passadas quase duas décadas, vivemos no mundo, especificamente no Brasil, tempos obscurantistas, nebulosos, marcados por movimentos impulsionados pela intolerância, em todos os seus aspectos, que grassam irrefreavelmente pela sociedade civil. Sinais de intolerância à sexualidade do indivíduo, às suas crenças religiosas, e às suas convicções políticas são cada vez mais constantes, assumindo um caráter de “normalidade”. Intolerância à ideia do outro. Com a proliferação das redes sociais, que vieram tanto para o bem quanto para o mal, esta cultura do ódio se tornou mais evidente. As pessoas, pertencentes a quaisquer segmentos sociais, tornaram-se detentoras da verdade absoluta, observada em opiniões sobre assuntos diversos. Pensar e se expressar individualmente hoje em dia é um ato de coragem. Assumir posições que não agradam à maioria requer a ciência das consequências nem sempre favoráveis. A liberdade geral está em xeque. O perigo real ao cerceamento da liberdade de expressão se revela inclusive nas manifestações artísticas. Artistas vivenciam involuntariamente experiências “kafkianas”. São acusados por crimes “inventados”. Faz-se necessário aos cidadãos de bem acenderem o sinal de alerta diante das políticas predatórias, discriminatórias e intolerantes alimentadas em cima da ignorância dos facilmente manipuláveis. Face a esta conjuntura, a montagem comemorativa dos 50 anos de carreira de Tonico Pereira, em seu primeiro monólogo, “O Julgamento de Sócrates”, de Ivan Fernandes, baseado na obra “Apologia de Sócrates”, de Platão (aproximadamente 399 a.C), impõe-se por suas incontestes atualidade e oportunidade, gerando, de modo imediato, sensação de empatia e identificação do público. A peça, dirigida por Tonico Pereira e Ivan Fernandes, contextualiza-se no fato histórico do julgamento do filósofo grego Sócrates (nascido, presume-se, em 470 a.C), acusado pelos crimes de incitar os jovens com ideias potencialmente subversivas, contrárias por conseguinte ao Estado, e por não respeitar e venerar os deuses da Grécia Antiga, e sua condenação à morte por envenenamento.

Um fato histórico para ser lembrado e relembrado

A encenação começa com o depoimento do próprio Tonico acerca dos “Sócrates” que conheceu em sua cidade natal, Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Pessoas comuns que o influenciaram como cidadão, e artistas, diretores como Luiz Mendonça e Amir Haddad, que foram fundamentais em sua formação e evolução como ator. A partir daí, o intérprete, já incorporado como Sócrates, no ambiente de um tribunal, em que os espectadores fazem as vezes de jurados, desfia a sua afiada oratória, como instrumento de defesa, entremeada por perguntas a si mesmo, questionamentos, elucubrações, ilações e aforismos. Sócrates, para os seus acusadores, é considerado o mais sábio dos sábios, pois assim asseverara o oráculo do Deus Apolo. Como pode um Deus conceder esta honraria a um homem sem fé? O filósofo, segundo ele, é vítima de reiteradas calúnias. Seus detratores não possuem qualquer espécie de provas que corroborem os crimes que lhe foram imputados, como as suas potenciais violações às regras e leis do Estado. Sócrates alega que uma das razões para que se tenha tanto ódio e inveja de sua condição de pensador se deve ao fato de conseguir por meio de sua habilidosa retórica desmascarar os pretensos sábios, fazendo-os enxergar a sua legítima ignorância. O acusado não se escusa ao defender as suas ideias até o fim, não temendo sequer a morte, que lhe parece tão próxima. Para o homem dotado de insigne sabedoria não há dúvida no que concerne à chance de escolha entre a morte, que lhe é desconhecida, e a manutenção ferrenha de suas convicções ideológicas, porquanto estas lhe são conhecidas e certas, garantindo-lhe a sua integridade moral, sobretudo ao não se submeter a condições, ajustes, tratos ou conluios propostos a fim de abjurar os pensamentos que o norteiam, e que servem de referência para os jovens sedentos de saber. Contraditoriamente, Sócrates solta, vez ou outra, a sua célebre sentença “Só sei que nada sei”, atestando a sua própria ignorância defronte aos grandes mistérios e conhecimentos sobre a vida, em oposição aos seus pares que se assoberbam ao ostentarem a sua duvidosa sabedoria.

A adaptação engenhosa de Ivan Fernandes de “Apologia de Sócrates”, de Platão

O texto de Ivan Fernandes nos chama a atenção pela sua notória comunicabilidade, inteligibilidade e fluidez narrativa. Um espetáculo teatral cuja figura central é o filósofo Sócrates poderia provocar nos incautos a falsa sensação de hermetismo dramatúrgico, o que, felizmente, não acontece. Ivan foi engenhoso e cuidadoso o suficiente ao fazer uma adaptação de “Apologia de Sócrates” que nos fosse bastante acessível. Há, por parte do autor, uma preocupação com a valorização das palavras e frases ditas pelo pensador. O dramaturgo buscou ao máximo uma linha direta entre o protagonista e a plateia, obedecida com êxito pela direção. Procurou-se outrossim, com resposta rápida e interação imediata dos espectadores, uma aproximação com a realidade atual, com os acontecimentos vigentes do país, sobretudo políticos. As associações de nomes conhecidos com pronúncias gregas causam a espontaneidade dos risos coletivos. A dramaturgia de Ivan Fernandes é redonda, fechada, enxuta, sem prolixidades, objetiva e certeira, mantendo o interesse do público em todas as suas fases.

Uma direção que aposta na força da palavra e no dinamismo cênico

A direção de Ivan Fernandes e Tonico Pereira se propõe, e logra com distinta propriedade, harmonizar-se com a estrutura do texto cênico. Tonico, como Sócrates, segue a orientação de traçar um desenho dinâmico de movimentação do personagem, com pausas pontuais e calculadas. O perímetro da ribalta, principalmente em seu centro, na lateral direita e na faixa do proscênio, é explorado com coerência, sem extrapolações de medidas. A adoção desta diretriz faz com que o espetáculo se desenvolva num tempo razoável, sem que a sua organicidade seja prejudicada. As vezes em que Tonico se dirige à plateia são demasiado bem-sucedidas, funcionando com perfeição. Propositalmente, há “saídas” do personagem, garantindo frescor e leveza à encenação.

Tonico Pereira, um artista que reafirma o seu imensurável talento

Tonico Pereira, um intérprete com enorme apelo junto às plateias, dotado de personalidade, popularidade e carisma únicos, dono de uma vasta coleção de papéis inesquecíveis e marcantes na TV, tendo trabalhado com alguns dos principais cineastas brasileiros, além de ser um artista genuinamente de teatro, pois foi nele que começou há cinco décadas, celebra com magnificência a sua merecida efeméride. Tonico, com a responsabilidade e o desafio de dar vida ao grande filósofo de Atenas, tão somente reafirma o seu imensurável talento ao criar e compor personagens, passeando com espantosa naturalidade e credibilidade por não poucos atalhos e caminhos de interpretação, margeados com níveis de emoção e dramaticidade oscilantes em seu nível de potência. Associado não raras vezes à sua infinita capacidade de construir tipos cômicos, o protagonista, sem preterir o seu irresistível humor nato, revelado nesta peça com apropriada discrição, esbanja admirável intimidade com o drama puro, realçado pela indignação, assombro e dúvidas que acompanham Sócrates acerca dos motivos que o levaram ao julgamento público. Sua postura incisiva e perscrutadora, confrontando as acusações sem alicerces sólidos com a sua balizada defesa se apresenta como ponto alto da montagem. Com gesticulações críveis e tom vocal próximo ao de um diálogo ou conversa (em outras ocasiões, indicando-nos um desabafo), Tonico Pereira, sempre com a resposta acolhedora e fiel de seus espectadores, realiza um primoroso e dignificante trabalho de atuação em seu primeiro monólogo, sempre um processo arriscado para qualquer artista, independente de sua experiência.

A valorização do ator por meio da economicidade certeira do cenário e figurinos

Os cenário e figurinos são de Palloma Morimoto. Palloma, tanto em um quanto em outro, optou pelo conceito da economicidade, entretanto, este mesmo conceito deveria cumprir os critérios de eficiência, congruência e praticidade, correspondentes às linhas e entrelinhas do contexto narrativo, o que foi indiscutivelmente promovido pela profissional. Há em seus objetivos um acerto inquestionável, que se vislumbra ao conferir mais valorização e destaque à figura solitária de Sócrates no universo de um tribunal, acompanhado somente de seus pensamentos e reflexões de defesa, com o intento de se livrar das acusações arbitrárias que lhe foram impostas. Com relação à cenografia, a visão que temos é a de uma cadeira de madeira toda trabalhada em suas formas, com respaldo comprido, posicionada bem no centro da ribalta, tendo em seu lado direito uma base (provavelmente de madeira), em formato cilíndrico, pintada com tintas pretas manchadas, servindo como suporte para um imponente cálice dourado no qual se encontra o veneno que seria sorvido pelo filósofo em caso de sua condenação. No fundo do espaço, uma extensa cortina negra. Quanto aos figurinos, Palloma vestiu Tonico Pereira com uma camisa folgada de cortes retos e uma calça de bainhas altas e largas em tons assumidamente crus e claros, calçando apenas um par de sandálias em consonância com o período histórico grego retratado.

Iluminação precisa e trilha sonora exuberante

A iluminação e a trilha sonora original ficaram sob o encargo de Frederico Eça. A iluminação de Frederico é elogiável, não se deixando levar por recursos que não complementassem a estruturação do quadro cênico. Bonita e precisa, a luz do espetáculo se caracteriza primordialmente por um plano aberto, deixando todos os detalhes da encenação à vista do público. Este plano aberto talvez traduza uma aproximação com a aridez da situação vivida por Sócrates, com a sua realidade nada fantasiosa tampouco onírica, e sim trágica. Utilizando-se de quatro refletores traseiros, Frederico se apropria também do azul forte para realçar algumas passagens. Usam-se focos bem pontuais sobre Tonico, além de uma iluminação com intensidade acima da média em um determinado episódio. A trilha sonora original é bastante convincente, desenhando com proficiência e impacto cenas relevantes da peça. Adotando acordes instrumentais com caráter majestoso, Frederico demarca etapas da narrativa com a tensão, o suspense e o clímax solicitados, atingindo com êxito o resultado esperado.

“Sócrates, presente!”

“O Julgamento de Sócrates” é uma encenação teatral com vastos méritos, essencialmente por colocar em pauta, tendo por base uma obra tão relevante quanto antiga, e nem por isso menos atemporal e universal, um tema presente com força em nossa atualidade, a intolerância à liberdade de expressão, de ideias e pensamentos. Num período em que vivemos sob a égide do que é supostamente certo ou errado de se dizer, esta proposta se torna eminentemente indispensável. Um momento no qual raro se escuta o outro. Em que o diálogo é aniquilado com a expressão órfã de argumentos “Não concordo, eu acho que…”. Além disso, temos em cena um de nossos mais representativos atores, em estado de graça nos palcos, soltando a sua voz em defesa de nossas liberdades. Que “O Julgamento de Sócrates” sirva de lição para que as nossas vozes não sejam silenciadas. Que os seus ecos se façam ouvir além-fronteiras. Que se respeite a democracia nascida nas terras socráticas. Calar uma voz, seja de que forma for, apenas faz com que surjam milhares de outras, tão indignadas como a de Sócrates. Mais atual, impossível. Sócrates, presente!.

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