Foto: Matheus José Maria
A ousadia de Maitê Proença e Amir Haddad em montarem um texto do século XV, e a tradução impecável de José Francisco Botelho indicada ao Prêmio Jabuti
O teatro é um espaço artístico democraticamente aberto para a concretização de muitas possibilidades. Possibilidades que transcendem até mesmo o conceito universal compreendido como prática teatral. Imaginemos um texto literário publicado por um inglês, Geoffrey Chaucer, na segunda metade do século XV (1475), no final da Idade Média, dividido em contos, os “Contos da Cantuária”, sendo que, em um deles, “A Mulher de Bath”, a personagem principal, Alice, é uma mulher à frente de seu tempo, libertária, viúva em cinco casamentos, à procura de um sexto marido, defensora de suas escolhas numa relação matrimonial, incluindo-se a satisfação plena e absoluta de sua sexualidade, enfrentando, por intermédio de suas inteligentes artimanhas, os mandos e desmandos de seus cônjuges, três deles poderosos e endinheirados, quando sequer se poderia aventar o surgimento de movimentos propriamente feministas, que só viriam a tomar forma no distante século XX. Este mesmo texto com vieses progressistas serviu de base à época para a sedimentação, solidificação e consolidação da literatura inglesa como a conhecemos, seja na língua do país de origem, na poesia, na ficção e na oratória. Até William Shakespeare se valeu desses escritos como referência para a criação de suas clássicas peças. A atriz e escritora Maitê Proença se interessou por um dos contos de Chaucer (justamente “A Mulher de Bath”), tornando-se a idealizadora deste aparentemente difícil projeto, e convidou para dirigi-la nos palcos ninguém menos do que um de nossos mais respeitados e eminentes diretores brasileiros, Amir Haddad, fundador do célebre grupo Tá na Rua. O primeiro passo seria o de se fazer uma tradução que aproximasse o legado do escritor e filósofo inglês o máximo possível de uma experiência teatral convincente e aprazível, com uma linguagem que conquistasse as plateias, sem ferir o cerne da literatura de seu autor. A José Francisco Botelho coube a desafiadora missão de traduzir a obra de Chaucer. Não se pode ignorar o fato de que os seus contos foram imaginados no período medieval, com modos de tratamento diferenciados e vocabulário rebuscado. José Francisco, indicado ao Prêmio Jabuti por este trabalho, transpôs com avolumada destreza e habilidade os originais para uma linha de comunicação cênica que pudesse ser absorvida com facilidade pelo público. Sua grande sacada foi a de ter se inspirado, para tal feito, no rico cancioneiro popular nacional, na saborosa musicalidade dos repentes nordestinos, na tradição da trova gaúcha, e na poesia oral do interior do país. Sua tradução dimensiona a leveza e o humor de maneira que assumam lugar de destaque na peça. Não se pode considerar a literatura de Geoffrey Chaucer como um produto dramatúrgico com todos os elementos que o caracterizam. Mas em sua essência percebemos uma legítima teatralidade, o que justifica a sua transposição para o campo cênico. O próprio Amir Haddad diz: “O apelo teatral de sua narrativa é evidente e poderoso e serve muito bem a ideia de um teatro que se quer mais, o teatro para saber o que é isso, o teatro”. Maitê, mais uma vez movida pela sua paixão em encenar um dos “Contos da Cantuária”, traz para si a tarefa hercúlea de adaptar a tradução de José Francisco para a ribalta. Seu empenho, sua devoção e sua alegria ao realizar este sonho profissional são visíveis não só em sua cuidadosa adaptação, mas em sua total entrega à personificação da mulher que intitula o espetáculo. Segue o que disse a atriz: “Nunca estive tão segura da qualidade do que ofereço ao público. Em conteúdo e diversão.”
Alice, a “Mulher de Bath”, impressiona pelas suas ideias progressistas em plena Idade Média
A história se passa em 1380 durante uma peregrinação rumo ao túmulo de São Thomas Becket, na região da Cantuária (Canterbury), e dentre os peregrinos se encontra Alice. Há entre eles uma competição de contos, que deverão abordar diversos tempos e lugares. O vencedor, ou seja, o melhor narrador, teria direito a uma noite de excessos na mais famosa taverna do local. Alice passa a narrar então as suas aventuras e desventuras por que passou durante os seus cinco casamentos, tendo saído viúva de todos eles, como fora dito antes. Trata-se de uma mulher com um discurso fervoroso, acalorado, sem pudor, no qual desvela corajosamente seus sentimentos, desejos, emoções e escolhas. Uma retórica forte em defesa de sua condição feminina. A mulher de Bath (uma cidade da Inglaterra) discorre sobre fatos íntimos com espantosa naturalidade. Muitas questões são levantadas por Alice, levando-se em conta seus cinco matrimônios. O amor, a paixão, o sentido de pecado, a liberdade sexual feminina, a religiosidade, o poder e a hierarquia no casamento, e o dinheiro como mola de interesse da relação são objetos de reflexão deste indivíduo com ideias inacreditavelmente avançadas para o seu tempo. Toda a sua eloquente fala vem acompanhada por um autêntico humor. Entretanto, a despeito de se notar em suas palavras uma conotação pró-feminismo, constatamos que esta mesma mulher não se furta de nos confidenciar seus erros, defeitos, e ardis de que se valeu para enganar os seus maridos, principalmente os mais velhos e abonados. Alice não é contra os homens, muito pelo contrário. Julga importante sua união com eles por meio da instituição do casamento. A prova desta posição se evidencia pelas suas vontades de se casar novamente (esta circunstância a conduz aos vários matizes de suas reflexões e observações). Em determinado momento da montagem, a intérprete pede permissão aos espectadores para encenar um outro conto (cuja inserção foi aprovada pelo seu diretor), fabular, ambientado no reino fantasioso e lendário do Rei Arthur. A lição deste conto, que envolve um rapaz acusado de estupro e sua busca infatigável pela descoberta dos mistérios que encobrem o real desejo das mulheres, a mando da Rainha, a fim de que a sua punição não lhe seja imputada – a pena de morte, interliga-se com os conceitos e preconceitos associados à beleza, à velhice e ao amor incondicional.
Amir Haddad impõe ao espetáculo a liberdade artística que o consagrou
A direção de Amir Haddad confere ao espetáculo uma saudável liberdade artística. Esta liberdade é perceptível em bastantes situações e opções cênicas, como por exemplo as oportunidades concedidas à atriz em se conectar francamente com o seu público, como se estivesse em meio a um diálogo ou conversação. Logo no início da peça, Maitê, num tom coloquial, deixa-nos informados sobre do que se trata a história que irá nos contar, fazendo uma comparação entre aquele tempo em que se saía das trevas para se encontrar a luz e os atuais. O resultado é uma intimidade conquistada genuinamente com os espectadores graças ao seu grande poder de sedução artística. Amir optou pelo espaço cênico amplamente aberto, imiscuindo elementos cenográficos e coxias. As marcações definidas, variadas, foram pensadas de modo a ocupar a maior extensão possível do perímetro do teatro. O encenador também procurou dinamizar o desenvolvimento narrativo com estratégicas entradas e saídas de cena da protagonista. Houve de sua parte uma atenção especial em desenhar toda a montagem com as intervenções e pontuações musicais de Alessandro Persan (também assistente de direção), presente durante todo o espetáculo, fazendo as vezes, quando necessário, de intérprete.
Maitê Proença, uma intérprete cada vez mais luminosa
Maitê Proença, uma de nossas maiores estrelas da TV e do cinema, surgida no início da década de 80, com relevante trajetória no teatro também, possui, não há como negar, aquilo que os americanos costumam atribuir às suas atrizes com imensurável potencial de construir uma carreira de sucesso, somando a um só tempo beleza, talento e carisma, o “star quality”. Sua entrada discreta no palco, sem que a peça tivesse sequer começado, com as luzes do teatro ainda acesas e a plateia se acomodando, apenas com uma música sendo tocada por Alessandro Persan, posicionado no fundo esquerdo do palco, já causa um certo frisson nos espectadores. Ao introduzir sua conversa com o público, imediatamente nos damos conta de sua elevada capacidade de encantamento, uma avassaladora simpatia que se alia a uma irresistível naturalidade ao falar. Ou seja, Maitê consegue em poucos instantes o que já é um enorme ganho para a intérprete, dominar os que foram lhe assistir. No melhor dos sentidos. A artista pôde, com esta montagem, realizar um valioso exercício de atuação, pois muitos são os momentos em que tem que manifestar, de diferentes formas, as nuances de emoções de sua personagem, além dos que estão presentes na fábula, como a Rainha, o jovem e a idosa. Maitê, com uma postura empertigada e elegante invejável, movimenta-se com altivez por toda a ribalta, gesticula com graça, faz mesuras, deita-se, sempre com desenvoltura. Uma prova de sua elogiável expressividade corporal. Uma das características mais marcantes da performance de Maitê é a sua equilibrada frequência de humor. Sua comicidade é fina, concisa, no ponto certo. Nada do que diz nos soa ofensivo, independente do significado das palavras. Completando 40 anos de carreira, Maitê Proença não só continua belíssima, como o seu talento está cada vez mais lapidado.
Cenário baseado em símbolos da época, figurinos vivos e exuberantes, adereços delicados, iluminação objetiva, sem firulas estéticas, preparação corporal elogiável e trilha sonora coerente e fiel ao período
O cenário de Luiz Henrique Sá exerce a função de, com poucos, mais expressivos elementos, reportar-nos ao universo medieval em que decorrem os episódios do conto. Sua economicidade traduz uma escolha convicta por representar o período através de símbolos. Seus móveis de madeira possuem desenhos recortados (cadeiras, mesa com pés vazados, banqueta, uma espécie de confessionário com seu respectivo genuflexório com detalhes em azul-marinho – que terá outra missão, e um cortinado cor de areia ao fundo). O músico e ator Alessandro Persan conduz a sua trilha sonora tendo o seu instrumento de trabalho em cima de um suporte de madeira, em consonância com o que foi descrito. Há ainda como significativos complementos cálices e jarra prateados e livros com brochura antiga. Os figurinos são de Angèle Fróes, que se destacam pela vivacidade e exuberância de suas cores, e pelo respeito aos cortes usados neste tempo histórico. Maitê, na maior parte da obra, veste um bonito vestido em camadas com vermelhos distintos, no qual se veem bordados e transparências, calçando com harmonia sapatos de mesma tonalidade (assemelha-se a um escarpim), além de um cinto verde com um camafeu. A intérprete lança mão de um mantô bordeaux por vezes. Em outra ocasião, traja mais um vestido, seguindo a mesma linha de bordados e transparências, com texturas verde-água. E como arremate, numa cena imponente, apresenta-se com uma bela capa vermelha com capuz, realçada pela beleza da atriz. Alessandro Persan usa peças, camisa, calça e sapatos, pretas. Os delicados adereços são criação de Marcilio Barroco. A artista tem os seus cabelos presos por uma rede branca transparente ornada por pedras em formato de pérolas, assim como ostenta um marcante crucifixo sobre o colo do peito. Como a Rainha exibe a sua coroa cheia de brilhos ofuscantes. A iluminação de Vilmar Olos privilegia o plano aberto, com pequenas oscilações de intensidade, sempre se harmonizando com o andamento do entrecho cênico. Vilmar disponibiliza quatro refletores na reta do chão, numa geometria praticamente quadrangular, com seus feixes direcionados para a atriz no centro do tablado. Lança mão até mesmo da iluminação completa da plateia. Seu trabalho busca e consegue uma objetividade e precisão visuais, sem truques ou firulas estéticas, ofertando ao espetáculo e às suas variações narrativas o mais coerente e indispensável resultado. Marina Salomon ficou responsável pela preparação corporal da atriz. Marina realizou um ótimo trabalho, extremamente bem compreendido por Maitê. Como já mencionado anteriormente, a intérprete chama a atenção pela sua postura ereta, elegante, altiva, típica de uma fidalga. Em nenhum episódio, a artista se desgarra de sua consciência corporal. E são muitas as variantes de movimentações que lhe são exigidas. Como se trata de um solo artístico, a despeito das entradas necessárias de Alessandro Persan, este quesito é demasiado importante, pois todos os olhos estão voltados para a sua performance. A trilha sonora pertence a Alessandro Persan. O músico executa com impecável eficiência a sua incumbência de atribuir à encenação a ambiência identificável do período medieval por intermédio das melodias. Sejam elas incidentais/instrumentais, utilizando-se de instrumentos musicais da época, como a harpa, sejam com suportes vocais, como cantos gregorianos, o fato é que a sua música é praticamente um personagem do espetáculo, considerando-se a sua relevância no desenho do quadro narrativo.
Uma peça cujo tema reverbera nos tempos atuais
“A Mulher de Bath”, de Geoffrey Chaucer, possui inegáveis méritos. Trata-se de um retrato com registros históricos que carrega em si elementos conectivos com a realidade contemporânea. As ideias progressistas/feministas, avant-garde, sem ranços chauvinistas, de Alice reverberam na atualidade com os movimentos pós-feministas que grassam no final da segunda década dos anos 2000. “A Mulher de Bath” não é um espetáculo que se propõe a pôr em questão, de forma adversa, o papel do homem na sociedade. Nem desconsidera o estado de ser masculino. Longe disso. A peça tão somente abre um espaço, usando um termo presente, ao poder de fala da mulher. Não vamos cair no fácil clichê de que se trata de uma obra que faz apologia ao empoderamento feminino. Esta expressão criada recentemente serve sim ao poder da mulher. Ao poder da mulher que exige respeito e igualdade. “A Mulher de Bath” é uma peça sobre mulher, com a voz de uma mulher, dirigida por um homem, mas, prova de sua inquestionável significância, voltada para todos. Homens, mulheres… e mulheres de Bath.