Foto: Jr. Marins
Victor Garcia Peralta, um encenador que transita com a mesma excelência tanto no drama quanto na comédia, retoma a parceria com o ator Robson Torinni, apostando em outro dramaturgo latino-americano, o uruguaio Sergio Blanco
Ir ao teatro se compara a um ritual, com todas as sacralidades que lhe são inerentes. O ato de se assistir a um espetáculo carrega em si mesmo não um simples desejo de entretenimento. Assim como os artistas que estão no palco buscam os seus mais íntimos e verdadeiros sentimento e emoção a fim de dar vida aos seus personagens, almejando outrossim um crescimento pessoal e consequente evolução profissional, nós, espectadores, esperamos, com a experiência incomparável de testemunhar a reprodução cênica de uma dramaturgia, sair do espaço teatral diferentes, modificados, pensativos e reflexivos com o que acabamos de ver. Respeitando-se os conceitos brechtianos de distanciamento, de fato o que objetivamos é que sejamos tocados, mexidos, que nossas sensibilidades fiquem aguçadas. Todo este introito me serve para descrever as impressões que tive ao conferir a mais nova peça do diretor Victor Garcia Peralta, um dos mais respeitados e produtivos encenadores do cenário atual de produções teatrais. Victor está longe de ser um profissional que foge dos riscos e temeridades. Nunca se prendeu a um gênero específico. Suas vivências artísticas ultrapassam fronteiras, confirmadas com suas passagens por montagens calcadas em um humor desvairado e crítico, visto em “Alucinadas”, ou na densidade dramática e profunda de “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Em 2017, Victor Garcia iniciou uma parceria com o ator Robson Torinni, resultando na encenação de “A Sala Laranja: No Jardim de Infância”, da argentina Victoria Hladilo, um sucesso de público e crítica. Esta obra contribuiu para a valorização da boa dramaturgia latino-americana. No final do ano passado, Robson e Victor se juntaram novamente, e resolveram apostar numa proposta, pode-se dizer, mais ousada, prestigiando, uma vez mais, um texto sul-americano, “Tebas Land”, do uruguaio Sergio Blanco. A peça de Sergio, premiada com o Award Off West End de Londres, tendo recebido cinco indicações ao Prêmio Max espanhol, já foi montada em doze países (esta é a sua primeira vez no Brasil).
A fascinante e comovente história é pautada no encontro, e seus reveladores diálogos, entre um autor teatral e um detento acusado de parricídio, cuja trajetória servirá de tema para um futuro espetáculo
A trama de “Tebas Land” é centrada nos encontros entre um autor/diretor O. (Otto Jr.) e um jovem presidiário, Martin (Robson Torinni), condenado pelo crime de parricídio. O. pretende montar uma peça teatral baseada na trajetória trágica desse rapaz, enfrentando, para isso, uma série de obstáculos burocráticos, que servem como retrato de um sistema prisional voltado única e exclusivamente para a punibilidade do preso, sem quaisquer chances de uma possível ressocialização. Entre idas e vindas à cela de Martin, exímio jogador de basquete, o autor lhe faz várias perguntas a fim de desnudar aquela alma sofrida e amargurada, levando-o, desta forma, a rever as razões que o motivaram a praticar um crime tão bárbaro. Em paralelo, o diretor inicia o processo de montagem de seu espetáculo, começando com o teste que escolherá o intérprete que irá defender o personagem Martin. O ator selecionado é justamente personificado por Robson Torinni, cujo nome artístico é usado para o papel. “Tebas Land” se divide, com extrema sabedoria artística e cênica, entre os colóquios elucidativos e surpreendentes travados entre o autor e o detento, e o autor e o ator.
A sólida e inteligente dramaturgia de Sergio Blanco, escorada em referências literárias, metalinguagem e em sua conhecida utilização da autoficção, associada ao brilho da interpretação de Robson Torinni e Otto Jr., chega com impacto ao público
A dramaturgia de Sergio Blanco (traduzida impecavelmente por Esteban Campanela), com referências muito bem inseridas das obras de Sófocles, “Édipo Rei” e “Édipo em Colono”, impressiona pela sua sólida e inteligente construção textual, permeada por diálogos fortes, precisos e esclarecedores, sendo os mesmos de uma sensibilidade avassaladora (há momentos em que parece que estamos assistindo a um legítimo embate de pensamentos e palavras entre os personagens, como se fosse um “game” verbal/oral, tamanha a agilidade com que são feitos, um certame de opiniões, contestações, argumentos, ensinamentos e aprendizagens). Sergio, com máxima destreza, consegue o louvável feito de “manipular” o público, com o propósito de acionarmos a nossa capacidade, bastantes vezes latente, de praticar o exercício da empatia. O dramaturgo logra o prodígio de nós mesmos nos colocarmos no lugar de Martin, com o intento de melhor compreendermos as suas ações, sem que isso, claro, seja uma defesa destas, sendo tão somente um outro ponto de vista, talvez mais humanista, justo e compassivo. O escopo narrativo do autor, que são os complexos relacionamentos interpessoais dos indivíduos, não importando o quão diferentes sejam, nos níveis sociais, intelectuais e comportamentais, é magistralmente alcançado. As diferenças existentes entre o autor/detento e o autor/ator não são impeditivos para que haja a composição de um diálogo razoável, em que ambos cheguem a um lugar comum. A linguagem cartesiana, lógica e rasa semanticamente de Martin encontra acolhida na fala objetiva, clara e determinada do autor O.. Da mesma forma, percebem-se não poucas vezes conflitos de interpretação da montagem da obra cênica entre os personagens do ator e do diretor. Há uma tensão, em maior ou menor grau, entre os tipos, que, dependendo da condução do entendimento, é logo dirimida. Sergio, com habilidades, sem cair no didatismo fácil, incumbe a O. a função de ensinar (principalmente com relação a Martin) os significados de nomes/palavras e o resumo de histórias mitológicas, como as de Édipo, o que é um deleite para a plateia. Apenas a título de curiosidade, o nome do personagem de Otto Jr., resumido à sua letra inicial, é uma confessa homenagem a Franz Kafka e suas criações (aliás, o texto prima pelas referências literárias, como por exemplo, “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoiévski). Reconhecido por ser um seguidor do estilo autoficcional, Sergio se utiliza com distinta propriedade dos recursos da metalinguagem. Na montagem brasileira há alusões bem familiares ao público (locais, instituições, cargos etc), traduzidas na voz de O. com ampla espontaneidade, misturando realidade e ficção, o que nos leva naturalmente a acreditar em seu entrecho. A direção de Victor Garcia Peralta exalta todas as ótimas possibilidades cênicas ofertadas pela dramaturgia de Blanco. Victor se vale com inegável sucesso do processo interativo de comunicação ator/público. O encenador conduziu a peça com uma destreza espantosa, aproveitando com equilíbrio os espaços de ação propostos pelo texto, como a cela e uma espécie de sala de ensaios da futura montagem, cujo título é “Tebas Land”. O uso dos flancos da plateia, com diálogos à distância, rompe o formalismo teatral. O encenador cuidou da interpretação de seus atores com ampla sensibilidade, realçando todos os detalhes perceptíveis das personalidades dos três tipos apresentados, resultando em um trabalho altamente digno e louvável. Fica-nos visível o quanto as emoções dos intérpretes foram exploradas e esmiuçadas, em diferentes graus e camadas. Victor Garcia Peralta direcionou com exponencial precisão e sabedoria cênica tanto os momentos com tintas mais tensas e dramáticas quanto aqueles em que as pausas assumem uma atmosfera idílica/poética. O elenco, que junta pela primeira vez dois jovens atores com origens e trajetórias diferentes, é excepcional. Numa peça em que há apenas dois intérpretes em cena, faz-se obrigatória, para o seu caminho para o êxito, que haja entre ambos um mínimo de sintonia. O que vemos, entretanto, está bem acima disso. O que se vê é um perfeito e indissociável entendimento entre eles, com uma troca (essencial na arte da atuação) apaixonante. Robson Torinni revela com absurda sensibilidade ao público uma inacreditável capacidade de composição e construção de personagem (sua voz e respectivas gradações devem ser observadas). Martin é um rapaz simplório, iletrado, por vezes infantilizado, alternando instantes de agressividade e ternura. Com todos esses elementos definidores de seu caráter, Robson simplesmente carrega os espectadores nas mãos, sendo impossível não se comover com a dramática e trágica história de seu papel. Espantosamente, com sua performance meticulosa, atenta a todos os pormenores, o artista nascido em Pernambuco consegue com que não julguemos Martin pelo seu crime bárbaro (o que, óbvio, também são méritos da dramaturgia e da direção). Quanto à sua atuação como o “ator Robson Torinni” (uma enorme ousadia do texto), percebemos um grau de naturalidade extremamente adequado e condizente com as circunstâncias “reais”. Trabalhando com a sua espontaneidade, Robson encontra o ponto exato do personagem/ator que serve como peça contestatória e inquisidora das ideias do autor/diretor O.. Otto Jr. é um intérprete com um domínio cênico extraordinário. Sua natural e determinante vocação para se comunicar com o público com a mais admirável legitimidade, e principalmente credibilidade, indispensável para que possamos nos envolver com a sua narrativa, é um fator crucial para o sucesso de sua personificação. Otto se vale de um carisma próprio irresistível para que acompanhemos generosos sua jornada árida em busca da montagem de seu espetáculo. O autor/diretor ao qual dá vida é um homem, ao contrário de Martin, esclarecido, resoluto, convicto de seus objetivos, nem por isso menos sensível. Todavia, todas essas certezas são colocadas à prova, sendo esta mudança de perfil muito bem transmitida pelo artista. Há uma cena em particular em que Otto explode em emoção, deixando o público atônito, confuso, sem saber ao certo o que fazer, graças à desconcertante veracidade da mesma.
A cenografia impactante de José Baltazar se casa muito bem com a luz sempre elegante e inteligente de Maneco Quinderé
A cenografia de José Baltazar, impactante e bonita em seu conjunto, reveste-se de uma grande cela quadrada (assemelha-se a uma gaiola), com gradeados de aparência metálica, tendo ao seu fundo uma tabela de basquete (vale mencionar a intimidade com que Robson Torinni manuseia a bola). No alto, doze luminárias semicirculares, além de possuir em seu interior um banco com aspecto também metálico, em consonância com as grades. O lado direito da ribalta, segundo ambiente do cenário, constitui-se de uma lousa retangular, mesa e cadeira que seguem a textura metalizada, e uma filmadora sobre o seu tripé (as transmissões ao vivo de cenas da peça são interessantíssimas, funcionais, contribuindo amiúde para a vivacidade da composição estético/narrativa). A iluminação coube a um dos mais prestigiados e requisitados profissionais da área, Maneco Quinderé. Ao sabermos que a luz terá a sua assinatura, naturalmente já nos preparamos para um painel visual com o uso belo, elegante e inteligente de todas as possibilidades práticas que este recurso técnico/artístico oferece. Maneco esbanja criatividade ao se utilizar das luminárias citadas da cela, alternando as luminosidades e suas intensidades, ou apostando na iluminação coletiva de suas doze peças (há uma associação desta luz com outras ideias paralelas do iluminador). Maneco também aproveita os spots dispostos estrategicamente no piso da lateral direita do palco. Em sua quase totalidade, há uma atmosfera tênue luminosa, que nos parece fugir do realismo, com a exceção de alguns momentos nos quais se vê uma luz aberta, principalmente no proscênio. Com a sua já conhecida capacidade de imprimir beleza ao que faz, Maneco Quinderé não pretere a poesia que um foco no rosto pode causar, tampouco o ar fascinante e etéreo provocado por uma sombra.
Direção de movimento minuciosa de Cris Amadeo, trilha inspirada, com direito a pérolas musicais, de Marcello H., e figurinos adequados que se aproximam da universalidade
Cris Amadeo, com quem Victor Garcia e Robson haviam trabalhado em “A Sala Laranja…”, foi responsável pela direção de movimento. Cris demonstrou louváveis empenho, dedicação e pesquisa de detalhes nesta importante função. Com Robson, como Martin, Cris valorizou gestuais contorcidos, curvados, nervosos, que simbolizam bem a angústia e a insegurança existencial do rapaz detento. No que tange ao personagem “ator Robson Torinni”, parece-nos que sua orientação foi a de deixá-lo o mais natural e espontâneo possível. No que diz respeito a Otto Jr. e seu autor/diretor O., conduziu-o numa direção do mesmo modo próxima ao naturalismo, mas com uma postura levemente superior (devido à sua ocupação), persuasiva e autoconfiante. Marcello H., exímio conhecedor de várias vertentes musicais, incumbiu-se da trilha sonora. Marcello criou com elevada inspiração uma série de sons, ruídos e sequências de sonoridades (algumas delas percussivas) que cumprem um relevante e precípuo papel de idealizar um universo em que se imiscuem opressão, dualidades emocionais e um perceptível suspense. Houve escolhas de canções que calam fundo em nossas memórias e suscetibilidades musicais, como o célebre clássico sentimental de Agnaldo Timóteo, “Quem É?”, um arrepiante concerto para piano de Mozart, e o belo hino de Cat Stevens, “Father and Son”. Os figurinos são fruto de uma criação coletiva. De modo a não se fixar em uma localidade ou região específica, o que garante a universalidade de seu texto, os uniformes padrões dos detentos foram dispensados. Sendo assim, Martin nos é mostrado usando uma regata larga, um moletom com capuz, calça de ginástica e tênis esportivo (um acessório fundamental para a narrativa, sem dúvida, é o terço pendurado em seu pescoço). Já o personagem de Otto Jr. é vestido com sobriedade e elegância, com peças como uma blusa arroxeada e uma calça em tons mostarda.
“Tebas Land” é um espetáculo cheio de trunfos, sendo imprescindível sua conferência
“Tebas Land” possui uma série de trunfos para ser vista pelo público que, com certeza, sairá impressionado e tocado pela encenação. O fato do diretor Victor Garcia Peralta valorizar mais uma vez a rica, e às vezes pouco explorada no Brasil dramaturgia latino-americana, já é por si só um grande mérito. Victor também é um convite natural para se ir ao teatro. A dupla de atores Robson Torinni e Otto Jr. conquista a plateia irremediavelmente com sua intensa entrega aos papéis. A universalidade de seu enredo, a abordagem e análise sensível e meticulosa dos intricados labirintos da alma humana, suas emoções e contradições, além de um panorama bem construído dos complexos relacionamentos interssociais fazem com que a montagem se diferencie de tantas outras. “Tebas Land” é um terreno árido e poético transitado pelos seus “habitantes” Martin e O.. Muitas vezes, nós, para atingirmos um mínimo de evolução individual, necessitamos experimentar a aridez e a poesia dessa “Terra de Tebas”, preferivelmente com as faces iluminadas pela luz redentora de um tablet inesperado.