
“Caranguejo Overdrive”, da Aquela Cia. de Teatro, ganhou mais força junto ao público após o cancelamento de suas apresentações em um importante centro cultural do Rio de Janeiro
Em 2015, sem muitas expectativas por parte de seus realizadores, estreava no Rio de Janeiro um espetáculo que viria a se tornar um fenômeno teatral, com extensões nacionais e internacionais. Conquistando os principais prêmios da área e elogios efusivos da crítica, a peça “Caranguejo Overdrive”, da prestigiada Aquela Cia. de Teatro, cofundada por Pedro Kosovski e Marco André Nunes, autor e diretor da montagem respectivamente, resiste com bravura e dignidade à passagem do tempo, com todas as suas transformações políticas, imperando nos palcos de origem cada vez mais atual e condizente com o momento em que vivemos. Vítima de um gesto arbitrário há pouco (o cancelamento de suas apresentações no Centro Cultural Banco do Brasil, CCBB Rio, dentro do projeto “30 Anos de Cias.”, na comemoração dos 30 anos do importante centro cultural, sem qualquer justificativa), “Caranguejo…” sai fortalecido deste episódio, recebendo do público um incondicional acolhimento, que lotou as últimas sessões de sua temporada no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto com um sentimento maior de comunhão.
A peça narra o périplo sofrido de um catador de caranguejos da região do mangue do Rio de Janeiro que é convocado para lutar na Guerra do Paraguai, e que ao retornar à sua cidade se defronta com mudanças urbanísticas irreversíveis que o farão passar por um surpreendente processo de transformação pessoal
A trama impressionantemente bem construída por Pedro, com riquíssima pesquisa histórica e alto teor crítico, tendo como fontes referenciais a obra do geógrafo Josué de Castro (autor de “Geografia da Fome”) e o revolucionário movimento musical manguebeat (fundado por Chico Science e pela banda Mundo Livre S/A), conta-nos a desoladora história de Cosme, um simplório catador de caranguejos da região do mangue do Rio de Janeiro, que após servir ao Exército brasileiro na sangrenta Guerra do Paraguai (1864 – 1870), vivenciando todos os horrores possíveis, retorna à sua cidade, totalmente irreconhecível, com o mangue que antes o alimentara aterrado por supostas obras de modernização. Cosme, com sequelas psicológicas acentuadas, testemunhando a nova realidade, sofrendo influências distantes do entendimento, transforma-se, respeitando um ciclo inexplicável, naquilo que sempre o sustentou como homem: um caranguejo e suas idiossincrasias.
A sintonia entre o arrojo da direção, a “pulsação” da direção musical e o fulgor e resistência de seu elenco faz com que “Caranguejo Overdrive” deixe a sua marca por onde quer que se apresente
Com a direção não raro arrojada de Marco André Nunes, a pulsante direção musical de Felipe Storino (os músicos em cena Pedro Nego, Maurício Chiari e Pedro Leal “enfurecem” melodicamente a narrativa com qualidade indizível), esta encenação, símbolo potente do Teatro Físico, tem ao seu dispor um elenco fulgurante, abnegado de suas limitações, indo sem temor até as fronteiras de seus irrefutáveis talentos, ou mesmo as transcendendo. Todos os louros e ovações são poucos para esse time de resistentes artistas, vitoriosos em suas vontades e amor ao que fazem, formado por Carolina Virgüez, Alex Nader, Eduardo Speroni, Matheus Macena e Fellipe Marques. “Caranguejo Overdrive” possui uma alma andante, sempre avante, perseverante, deixando por onde quer que passe uma marca de seu “mangue reflexivo e incômodo”.