
A envolvente e atualíssima peça de Gustavo Pinheiro serve como plataforma para que se discutam acidamente temas comuns a um pai moribundo atuante na ditadura militar e seus filhos
Quando um membro que assume papel de liderança em um núcleo familiar adoece a ponto de ser confinado em um quarto de hospital, poucos caminhos se apresentam para os seus entes próximos, a conciliação nesta contingência delicada ou a altercação generalizada com a rememoração de episódios marcantes. No caso da envolvente e atualíssima peça de Gustavo Pinheiro “A Tropa”, com direção de Cesar Augusto, evidentemente a segunda opção é eleita como uma rica plataforma de discussões, argumentações ácidas de lado a lado, enfim, um acerto de contas dilacerante entre o pai moribundo, um coronel viúvo aposentado atuante na ditadura militar e seus quatro filhos, cada um deles com suas questões mal resolvidas, passíveis do julgamento do outro.
Entre o drama e o humor, Otavio Augusto, numa marcação de difícil execução, prova com o seu talento e personalidade por que é um dos melhores e mais respeitados intérpretes do país
Temas como homossexualismo, dependência química, corrupção e correntes político/ideológicas são trazidas à tona com acentuada propriedade por Gustavo, autor com notória intimidade com a arquitetura dramatúrgica. Um dos muitos méritos de seu texto é a inserção de camadas de humor que em momento algum anulam a dramaticidade bem estruturada. Colaboradora inconteste para o resultado exitoso da montagem que estreou em 2016 está a esmerada direção de Cesar Augusto, um estudioso contumaz das sedutoras engrenagens teatrais. Cesar se alinha com sucesso às proposições cênicas do texto ao preencher todos os espaços (físicos e imateriais) possíveis, venerando silêncios e solilóquios relevantes. Otavio Augusto como o coronel reproduz com fidedignidade todo o sobejo talento e personalidade que o fizeram um dos melhores e mais respeitados intérpretes do país. Numa marcação de difícil execução, Otavio coloca toda a sua expressividade emotiva em sua face e braços (seja na comicidade ou no drama o artista extrapola os limites do admirável). Seus filhos Humberto, Artur, Ernesto e João Baptista são defendidos com verdade e valorosa compreensão de suas missões respectivamente por Alexandre Menezes, Daniel Villas (substituindo Alexandre Galindo), André Rosa e Daniel Marano. Suas interações e com Otavio são genuínas e potentes. A cenografia de Cesar Augusto abraça a esperada assepsia hospitalar na qual se sobressaem o verde e o branco (utilizam-se módulos que fazem as vezes de móveis, além da cama médica). Os figurinos de Ticiana Passos desenham com lealdade os perfis dos personagens (adotam-se estilos despojados e sóbrios). E a luz de Adriana Ortiz ganha o público pela sua coerência e beleza, com planos abertos que atendem a diferentes gradações e focos precisos e calculados. “A Tropa” é uma obra robusta e necessária que enfrenta e disseca as hipocrisias de nossa sociedade, combatendo-as onde geralmente nascem, os nossos próprios lares.