
Vera Holtz, atriz, Rodrigo Portella, dramaturgo e encenador, e Felipe Heráclito Lima, idealizador, provam-nos com “Ficções” que não existem obras literárias inadaptáveis para o teatro
Pode ser que algumas obras literárias sejam inadaptáveis para a linguagem teatral. Muito se disse sobre esta impossibilidade quanto a Guimarães Rosa, o que nos foi prontamente negado por Bia Lessa, por exemplo. O mesmo poderia ser dito acerca do best-seller do professor e filósofo israelense Yuval Noah Harari, “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, publicado em 2014, com 23 milhões de livros vendidos. Não para Felipe Heráclito Lima, Rodrigo Portella e Vera Holtz, respectivamente idealizador, dramaturgo e encenador e atriz da arrasadora e inteligentíssima peça “Ficções”.
Com atuação extraordinária de Vera Holtz, o espetáculo usa os pensamentos avançados de Yuval Noah Harari como referenciais para a sua costura narrativa, afastando-se criativamente da estrutura teatral clássica
Rodrigo com muita argúcia decidiu não construir propriamente uma dramaturgia clássica em cima dos avançados pensamentos de Yuval, mas sim tomá-los como referenciais para a costura narrativa do que é apresentado com bastante força criativa ao público (interlocução dramatúrgica de Bianca Ramoneda, Milla Fernandez e Miwa Yanagizawa). O texto, crítico, irônico, contemporâneo, interativo, analítico e sim, despudorado, serve como perfeita plataforma para Vera Holtz, atriz explosiva, carismática, com extraordinária presença de palco, ecoar em grau máximo o seu talento ímpar. Vera, com seu lindo sorriso e belos cabelos longos cor de prata, desdobra-se, tendo como colaboração as irretocáveis preparações corporais de Toni Rodrigues e vocais de Jorge Maya, em vários personagens, como um fóssil, um asno, um trigo ou a mulher de um tal de Harari, sempre com verve afiada, com o objetivo de nos falar sobre o começo do mundo, a evolução das espécies, o surgimento do Homo Sapiens (o único capaz de criar, inventar), a tecnologia, as relações humanas, o futuro do planeta. O que fica claro, respeitando-se a lógica filosófica do escritor, é de que tudo que está ao nosso redor, as crenças, o poder, o dinheiro etc, com exceção dos eventos naturais, não passa de ficções, de invenções do homem.
Em cena ao lado do brilhante músico e performer Federico Puppi, autor da trilha sonora original, com quem forma uma ótima parceria, a protagonista também é cercada por uma equipe técnica de primeira
Desenhando com maestria as cenas está a soberba trilha sonora original do músico e performer Federico Puppi. Sua parceria e entrosamento com Vera é um ponto alto da produção. Sob a sofisticada, rica e bela luz de Paulo César de Medeiros, com realce na sépia, nas sombras, nos amarelados, focos e planos gerais, a intérprete se deleita ao cantar, dançar e conversar diretamente com a plateia. Usando figurinos em tons de chumbo e bege, como vestes e sobretudos, do aclamado João Pimenta, passeando pelo impactante cenário de Bia Junqueira, a artista humaniza o texto de Rodrigo, consagrando em definitivo a excelência cênica de “Ficções”. Categorizar a montagem em questão não é uma tarefa fácil, tamanha a sua complexidade estrutural. Mas posso lhes garantir certamente de que se trata de uma de nossas mais felizes ficções, com o brilhantismo de Vera Holtz cada vez mais real.