
Celebrando os 125 anos da primeira encenação de “A Gaivota”, de Anton Tchekhov, a peça adaptada da obra de Mátei Visniec resgata os três personagens do clássico em um decisivo reencontro 15 anos depois do desfecho da história original
Relações humanas carregam em seu cerne níveis de complexidade expressivos. Quando há a interveniência do fator tempo nas mesmas, percebe-se com nitidez seus movimentos de transformação. Cabe assim ao indivíduo, paciente deste processo, adaptar-se aos desafios que lhe são impostos com as novas contingências. Mátei Visniec, dramaturgo romeno naturalizado francês, encenado em todo o mundo com notado prestígio, resolveu imergir no rico universo dramatúrgico de Anton Tchekhov, mais especificamente em um de seus clássicos, “A Gaivota” (comemoram-se os 125 anos de sua primeira encenação), tendo por fim escrever “Nina ou da Fragilidade das Gaivotas Empalhadas”, texto que motivou a atriz e produtora Bibiana Rozembaum e o diretor Fernando Philbert a idealizarem o projeto da peça “Gaivotas” (Fernando o adaptou com sobeja clareza). A história de Mátei já parte de uma premissa assaz original, a de que o escritor Konstantin (Sávio Moll) não teria se suicidado como na trama tchekhoviana, permitindo o seu reencontro 15 anos depois com a mulher que o abandonara, a atriz Nina (Bibiana Rozembaum), e Boris (Antonio Gonzalez), célebre escritor com quem ela fugira. O “acerto de contas emocional” é dissecado de forma instigante e tensa em um único local, a casa de Konstantin, cercada pelo frio impiedoso e pelos ruídos dos animais, onde todos os episódios determinantes do passado ocorreram. Vêm à tona ininterruptamente todos os ressentimentos, mágoas, dúvidas, recalques e desgostos dos personagens. Konstantin possui cicatrizes abertas pelo abandono que sofreu e pela carreira literária que não vingou, Nina atormenta-se com as incertezas acerca de seus reais sentimentos pelo primeiro companheiro e seu talento contestado e Boris se enerva com as suas inquietações políticas, sociais e culturais, sua união malograda com Nina e com o próprio sucesso.
A despeito de tratar das dores e conturbadas relações humanas, “Gaivotas” não deixa de mostrar sinais de esperança e renovação, tanto para a humanidade quanto para a arte
Fernando obteve inegável êxito ao criar a dinâmica das interligações constantes do trio, realçando a importância dos diálogos e solilóquios, silêncios e entradas e saídas dos atores, abrindo um nobre espaço para a delicada e sensível, às vezes soturna, trilha sonora de Marcelo Alonso Neves, pautada no piano e cordas. O elenco revela sintonia e entrosamento, formando um bonito conjunto, em que tanto Sávio Moll (atuação meticulosa, concentrada), Bibiana Rozembaum (com postura corporal destacada, aposta na contenção) e Antonio Gonzalez (numa performance mais insolente, desabrida e solta) se deixam absorver pela ambiência proposta por Visniec. Os protagonistas puseram em prática com sucesso os nortes oferecidos pela diretora de movimento Marina Salomon. O belo cenário de Natália Lana reproduz com inventividade uma cadeia montanhosa ao fundo do palco, valendo-se também de um móbile de acrílico giratório simbolizando um relógio e móveis de madeira que ocupam estrategicamente a cena. Por sinal, o cenário de Natália casa-se de modo admirável com a deslumbrante luz de Vilmar Olos, valorizada pelos matizes elegantes (azul, tons de lilás e rosa) incididos na montanha (os planos abertos com outros mais brandos também foram adotados com inteligência). Outro ponto alto do espetáculo são os figurinos de Marieta Spada, que se utiliza da beleza clássica dos vestidos de Nina, da rusticidade das vestes de Konstantin e da sobriedade com estilo do escritor Boris com sua calça e colete xadrezes. “Gaivotas” é teatro em estado puro, que tem por mérito juntar a contemporaneidade de Mátei Visniec com a majestosa e clássica dramaturgia de Tchekhov. É uma montagem que a despeito de tratar das dores natas às pessoas e de suas conturbadas relações, dos fantasmas do passado em conflito com a urgência e o entendimento do presente, não deixa de mostrar sinais de esperança e renovação para a humanidade e a arte. As gaivotas de “Gaivotas” são vivas, jamais empalhadas, e voam longe.